Os herdeiros do austro-marxismo
na batalha ideológica
[*]
por Miguel Urbano Rodrigues
Está na moda em determinados meios intelectuais a campanha para
renovação do marxismo. Sendo o marxismo, na fidelidade ao
pensamento de Marx, um sistema que exige permanente renovação
para manter as suas potencialidades criadoras, esse debate deveria ser saudado
como positivo.
Muitos dos que participam nessa campanha perseguem, entretanto, um objectivo
oposto ao enunciado. Na pratica assume um ostensivo caracter anticomunista,
sobretudo em países onde existem partidos comunistas com forte
implantação entre as massas.
A leitura de textos dessa vaga de «renovadores» europeus e
latino-americanos, supostamente empenhados em dar um novo impulso ao marxismo e
reformar partidos em que alguns ainda militam, fez-me voltar à leitura
de textos que lera na juventude.
As analogias históricas na analise política, erigidas em
método, sempre se me afiguraram perigosas. Mas o conhecimento das
grandes lutas revolucionarias do inicio do século XX, no quadro em que
elas se desenvolveram, bem como as ideias e a personalidade dos protagonistas
é indispensável à compreensão do presente.
Vem isto a propósito da releitura que fiz há dias de um livro em
que Trotski se pronuncia sobre a fina flor dos intelectuais marxistas que
conheceu em Viena pouco antes da Primeira Guerra Mundial.
Pertenço a uma geração de velhos comunistas muito
distanciados das polémicas teses de Trotski sobre a
Revolução Permanente. Admirando o escritor e respeitando o
revolucionário, identifico na sua visão voluntarista e
prospectiva da historia e na sua concepção administrativista do
partido uma atitude idealista, desajustada do marxismo tal como o assimilei. O
meu distanciamento de Trotski e uma opinião desfavorável sobre o
trotskismo nunca me impediram de considerar uma estupidez e uma iniquidade
ética e política o apagamento na URSS do nome e da obra do
ex-presidente do Soviete de Petrogrado e ex-Comissário da Guerra.
Para mim nunca foi crime citar Trotski ao encontrar nos seus escritos
lições úteis. É o caso do capítulo do seu
ensaio autobiográfico [1] em que relata o efeito de choque produzido
pelo descobrimento dos principais dirigentes da social democracia
austríaca, que na época se assumia como marxista.
Em meia dúzia de paginas retracta Otto Bauer, Carlos Renner, Max Adler e
Victor Adler.
«Eram escreve pessoas extraordinariamente cultas, que sabiam
bastante mais do que eu de muitas coisas».
Na primeira reunião em que participou com eles no Café Central de
Viena, a sua sensação foi de deslumbramento. Acompanhou a
conversa quase com «devoção». Mas depois o interesse
foi superado pelo assombro. Percebeu que aqueles talentosos intelectuais
não eram revolucionários: «encarnavam o tipo de homem que
é precisamente o oposto ao revolucionário».
Os austro-marxistas eram narcisos que se contemplavam com orgulho; vibravam com
o esforço teórico produzido. Conhecedores profundos das obras de
Marx e Engels, exegetas de «O Capital», os marxistas vienenses eram
«completamente incapazes de aplicar o método de Marx aos grandes
problemas políticos e sobretudo ao seu aspecto
revolucionário». Escreviam magníficos artigos, reveladores
da sua erudição, mas não iam alem da
assimilação passiva do sistema.
Trotski é quase cruel ao tentar defini-los: «Estes
austro-marxistas não passavam em geral de uns bons senhores burgueses
que se dedicavam a estudar esta ou aquela parcela da teoria marxista como
podiam estudar a carreira do Direito, vivendo agradavelmente dos juros de
O Capital
».
Diferentes, coincidiam num sentimento: todos temiam a revolução
cuja apologia faziam nos seus brilhantes trabalhos.
Nos anos que precederam a guerra começaram a sentir-se mal quando a
possibilidade de ruptura da velha ordem que combatiam com palavras deixou de
ser encarada como utopia. A guerra secou-lhes as gargantas e desviou-lhes o
rumo e o significado dos escritos. Depois, a Revolução Russa
assustou-os. Tomaram dela prudente distancia.
Que diferença, comenta Trotski, entre aqueles senhores, aristocratas do
pensamento, que gostavam de ser tratados pelos operários por
«camarada herr doktor» e a simplicidade revolucionaria de Marx e
Engels, que «sentiam um sereno desprezo por tudo o que fosse brilho
aparente, pelos títulos, pelas hierarquias». Nada do que era
humano os deixava indiferentes, mas pairavam acima das ambições
temporais, do circunstancial da política, das contingências da
historia.
Em Berlim, Trotski registou que a social democracia alemã diferia da
austríaca. Fazia-se ainda sentir o peso de personalidades como Rosa
Luxemburgo, Karl Liebknecht e mesmo o velho Bebel. Mas Kautsky, o «papa
da II Internacional », como lhe chamava a direita, envelhecera,
acomodara-se. Tratava de vulgarizar o marxismo como um mestre-escola,
impondo-se já como única missão conciliar o reformismo
com a revolução. Não escondia «a sua aversão
orgânica a tudo o que significasse transplantar métodos
revolucionários para solo alemão».
O processo de revisão manipulatória do marxismo, iniciado por
Edward Bernstein (Cavaco Silva confessou ser seu grande admirador), assente na
premissa de que o movimento é tudo pelo que a revolução
seria desnecessária e aberrante, contaminava muitos dos dirigentes,
contendo o ímpeto do partido, tornando-o quase inofensivo. O velho SPD
exibia ainda uma imagem revolucionária, mas nele estava em rápida
ascensão a corrente reformista que viria a ser liderada por Ebert, o
futuro presidente da Republica de Weimar, o carrasco dos espartaquistas que
após a Guerra viria a afogar em sangue a revolução
alemã.
Trotski recorda que enquanto Rosa e ele participaram como militantes numa
grande manifestação de massas em Berlim, Kautsky optou por
assistir como mero espectador. Entre ele e o sentir do proletariado
revolucionário surgira um abismo .
XXX
Durante a ditadura dos generais, trabalhei no Brasil com duas ou três
gerações de intelectuais de esquerda que então se diziam
marxistas. A maioria galopou para a direita. Actualmente, muitos defendem a
globalização capitalista, como o Presidente Fernando Henrique
Cardoso, o ex-príncipe da Sociologia Marxista, pai, com o chileno Enzo
Faletto, da teoria da dependência, hoje por ele renegada.
Na Europa pululam entre os críticos do neoliberalismo sacralizado e do
hegemonismo imperial dos EUA reformadores da sociedade capitalista cujo
único denominador comum é uma aversão insuperável
ao comunismo como projecto, mesmo remoto, de um mundo futuro, longínquo.
Uns dizem ser marxistas, outros não.
Faz oito anos, fui em Pontevedra, com Boaventura Sousa Santos, um dos
participantes num Seminário promovido pela Aula Castelao de Filosofia.
O tema era a Democracia no mundo que emergia da Guerra Fria, da
Descolonização, do desaparecimento da União
Soviética.
Recordo que Boaventura, numa mesa redonda final, depois de expressar a sua
inaceitação do leninismo, sublinhou que a postura crítica
que assumia perante a obra teórica de Lenine e a
intervenção na historia do grande revolucionário russo
não implicava uma rejeição global do marxismo. Para ser
mais explícito informou que admirava os austro-marxistas.
Foi breve a minha réplica. Lembrei-me dos Adler, de Otto Bauer e
também do alemão Bernstein. Achei oportuno o esclarecimento;
demonstrava, afinal, óbvio.
Você, Boaventura comentei deixou tudo muito claro. Em
Lenine não aprecia o revolucionário. Aqui poucos dos presentes,
admito, leram os austro-marxistas. Mas por que os admira você? Porque
não foram revolucionários, porque nunca constituíram
ameaça para o sistema. Eram inofensivos».
XXX
Incontáveis vezes ao longo da vida, sobretudo durante os anos do
exílio brasileiro, nas décadas em que a América Latina foi
um efervescente laboratório ideológico, intervim no debate
travado em torno do binómio antinómico
reforma-revolução.
O tema voltou a ser actual, embora o interesse da discussão seja
inseparável da recusa de paralelos descabidos e da consciência
de que o contexto histórico é profundamente diferente do
anterior. Não será com citações de Rosa Luxemburgo
e Bernstein, fundamentando o discurso em situações
históricas e sociais da época, que o debate poderá
adquirir hoje significado e utilidade.
O mundo contemporâneo, hegemonizado pelas globalização
neoliberal, é uma herança do capitalismo reformado. Mas neste
início do século XXI a ideia de revolução, a
fronteira entre o reformismo revolucionário e as reformas de defesa do
capitalismo são outros, inimagináveis na época da
Revolução de Outubro.
A correlação de forças existente na Terra, submetida a um
sistema de poder que desenvolve uma estratégia fascistizante, agressiva
e irracional, de dominação planetária não permite
sequer prever como e quando surgirão condições para
rupturas revolucionarias que ponham fim ao flagelo do capitalismo
desumanizante. Mas a nossa incapacidade para definir sequer os contornos que
assumirá o socialismo futuro, não impede, antes exige, a
condenação firme das campanhas desenvolvidas por aqueles que,
invocando farisaicamente a necessidade de renovar o marxismo, se empenham,
através de um discurso confusionista, imitando o que aconteceu na
Itália e está a ocorrer em França se
esforçam, repito, não para renovar, mas na pratica para dividir
partidos que não renunciaram ao marxismo-leninismo, criando
condições para o lançamento de pontes que levem à
sua descaracterização e posterior assimilação pelo
sistema dominante.
Portugal é, no momento, exemplo desse fenómeno político
como palco de um espectáculo no qual não faltam cenas de
estridências shakespeareanas, que os revolucionários de outros
países, por desinformação, acompanham mal.
Modernas caricaturas dos austro-marxistas do começo do século, os
encenadores portugueses da peça em exibição (não
me refiro aos militantes que são arrastados e confundidos pela sua
pregação) têm de comum com os Adler, os Bauer e os Renner
sem o seu talento, cultura, desambição pessoal e sentido
da ética política a aceitação inconfessada
da ordem capitalista, a recusa de identificar no povo o sujeito da historia e
o temor mal consciencializado da intervenção das massas rumo a
rupturas (embora distantes) que abalem os alicerces da engrenagem capitalista.
Não são marxistas esses dirigentes com rotulo de
«renovadores». Nunca foram comunistas. Não é o
cartão de um partido que faz o dirigente revolucionário, sequer
a passagem pela Comissão Política do seu Comité Central.
É minha convicção que aquilo que está em
discussão nestas semanas no Partido Comunista Português merece ser
acompanhado com atenção pelos partidos,
organizações e movimentos de esquerda de todo o mundo.
_____________
[1] Leon Trotski, Mi Vida , pags 217 a 225, Compañia General de
Ediciones SA, México, 1960.
[*]
Publicado originalmente em vários sítios web
hispano-americanos, em
Rebelion
e no jornal brasileiro
Correio da Cidadania
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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