Para além do rufar dos tambores:
Iraque, guerra preventiva, 'velha Europa'

por Arno J. Mayer [*]

Arno J. Mayer A carta de apoio, assinada em Janeiro último por dirigentes de oito países europeus [NR] , à implacável pressão para a guerra ao Iraque feita pela administração Bush foi singularmente tanto ideológica como míope. A lista de valores que os signatários afirmam partilhar com os Estados Unidos é irrepreensível: "democracia, liberdade individual, direitos humanos e a regra da lei". Mas há uma omissão gritante: capitalismo de livre mercado. Esta omissão é mais notável uma vez que não é possível aprofundar o infame ataque terrorista de 11 de Setembro de 2001 sem levar em consideração que o seu principal objectivo era o World Trade Center, um símbolo destacado e um centro do capitalismo globalizador.

Não é menos notável que os signatários ainda abracem, nesta data tardia, a consagrada mas altamente discutível interpretação da Guerra Fria acerca do presumível lugar indispensável dos Estados Unidos na história recente da Europa: "Graças em grande parte à bravura americana, generosidade e visão de longo alcance, a Europa foi libertada de duas formas de tirania que devastaram nosso continente no século XX: nazismo e comunismo". O factual é que em ambas as guerras mundiais Washington foi um aliado de última instância. Tanto em 1914-1918 como em 1941-1945, o sacrifício de sangue da Europa foi imensamente maior e mais punitivo do que o da América. Sem dúvida, os Aliados podiam não ter vencido sem a intervenção do Tio Sam; mas talvez alguém devesse recordar que a contribuição de Washington foi primariamente material, financeira e ideológica.

Durante a 2ª Guerra Mundial o Exército Vermelho certamente contribuiu com infinitamente mais "sangue, suor e lágrimas" do que os militares americanos para a virar a tendência da guerra contra as potências do Eixo na Europa. Se o Exército Vermelho não tivesse desbaratado a retaguarda da Wehrmacht em 1942-43, muito provavelmente a invasão conduzida pelos americanos na Normandia em Junho de 1944 ter-se-ia tornado um trágico banho de sangue. Além disso, durante aquela guerra, ao contrário dos não combatentes europeus e soviéticos que morreram aos milhões, as mortes de civis dos Estados Unidos foram comparativamente infinitesimais. Esta anomalia explica muito o furor vingativo dos americanos na sequência do 11 de Setembro, que deu cabo da percepção de inocência do excepcionalismo americano. Protegido, como sempre, por dois oceanos, os Estados Unidos pretendem manter suas próprias baixas num mínimo absoluto. Pode-se mesmo dizer que estão à procura, talvez a exigir ou mesmo a comprar, carne de canhão (e força física para a guerra e a ocupação) tanto entre os cautelosos governos que o secretário da Defesa Donald Rumsfeld etiquetou como "velha Europa" como entre os países europeus do leste que podemos chamar a "nova-velha Europa".

Na medida em que os oito signatários implicitamente subscrevem a ruidosamente trombeteada e não tão original doutrina da administração Bush da guerra preventiva, eles poderão recordar que a lógica da guerra preventiva desempenhou um papel central em dois pontos de viragem da Guerra dos Trinta Anos do século XX: em Julho-Agosto de 1914 o kaiser Guilherme II e os seus conselheiros precipitaram a guerra para impedir a mudança do equilíbrio do poder militar em favor da Entente em 1917, quando se esperava que a Rússia Czarista completasse a modernização e preparação das suas forças armadas; na Primavera de 1941, Hitler precipitou-se na guerra contra a União Soviética para evitar ter de enfrentar Stalin na Primavera de 1942, quando se esperava que o Exército Vermelho completasse sua modernização e preparação. Uma vez que esta história é bem conhecida dos "novos-velhos" europeus — que procuram demonstrar lealdade para com os seus novos amigos americanos — tal como o é para os cautelosos cismáticos da "velha", ambas as Europas podem querer recordar aos seus colegas de Washington que a lógica da guerra preventiva também informou significativamente a preparação e o momento do ataque japonês a Pearl Harbor. E podem ainda recordar a Bush e seus estrategistas que todas estas três meticulosamente planeadas guerras preventivas tiveram enormes consequências inesperadas: Verdun, Stalingrado, Auschwitz, Dresden, Hiroshima.

É um truísmo dizer que o Conselho de Segurança das Nações Unidas deve, para "manter a sua credibilidade", "assegurar o pleno cumprimento das suas resoluções". Mas tal "credibilidade" deve certamente exigir rectificação num outro registo em que tem havido uma omissão ou silêncio gritantes: desde pelo menos 1967 o Conselho de Segurança fechou os olhos às constantes violações de Israel, se não foi mesmo indiferente, a sucessivas resoluções da ONU. Poder-se-ia dizer que tal como os governos da nova-velha Europa — particularmente os governos da Polónia, Hungria, Roménia e Itália, talvez num excesso de caridade estilo Novo Testamento, cegamente apoiaram Israel contra os palestinos como expiação do seu nefando papel no judeucídio? É desnecessário dizer que, por razões políticas e geopolíticas próprias, os Estados Unidos apoiam, para não dizer que impõem, esta incongruência evidente, se não mesmo duplicidade.

Não há, naturalmente, negação ou minimização do despotismo de Saddam Hussein e do seu regime. Mas a América é conhecida por ter alimentado tais monstros Frankenstein no passado, e hoje o planeta acomoda-se com não poucos de tais déspotas no terceiro mundo. Isto levanta a questão de porque a América, que renova a missão de Woodrow Wilson de "tornar o mundo seguro para a democracia", obsessivamente enfoca Saddam Hussein, retractando-o como um cruzamento de Stalin, Hitler, bin Laden e Satã. É certamente um desvio hiperbólico clamar que "o regime do Iraque e as suas armas de destruição em massa representa uma clara ameaça à segurança mundial". Tal caracterização ecoa a demonização de ontem de sucessivos líderes soviéticos e do seu regime. Comparado com o super poder da Rússia Soviética, que entre 1945 e 1989 foi contido sem o recurso à guerra, em termos militares e ideológicos o Iraque é um pigmeu.

Se a base económica do Iraque fosse o cultivo de tulipas para exportação, ao invés da segunda maior reserva de petróleo do mundo, os Estados Unidos fingiriam não ver o arsenal de armas de Bagdade, que não é realmente muito fora do comum. Desde sempre, antes do estalar da guerra em 1914, o controle dos campos de petróleo da Mesopotamia e da Arábia foi um ponto importante na diplomacia das Grandes Potências. Durante e imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha e a França dividiram os maiores depósitos de petróleo do Médio Oriente entre si próprios, o acordo Sykes-Picot de Maio de 1916 serviu como um roteiro. Criado do dia para a noite logo após a Grande Guerra, o Iraque era o grande prémio, e coube à Grã-Bretanha. Em compensação, Londres cedeu cerca de um quarto da produção petrolífera da região iraquiana de Mosul à França, a qual ficou com a Síria que não tinha petróleo. A hegemonia regional de Londres era reforçada pelo seu controle contínuo do Canal de Suez e pelo domínio da Palestina.

A Grande Guerra confirmou que em tempos de guerra e de paz o petróleo é, nas palavras do então primeiro-ministro francês Georges Clemenceau, "tão necessário como o sangue", particularmente para a Europa imperial e os Estados Unidos — aquilo que conhecemos como o "primeiro mundo". Após a Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos suplantaram a Grã-Bretanha como potência dominante na maior parte do Médio Oriente. A incapacidade de Londres e Paris para impedir a tomada pelo Egipto do Canal de Suez em 1956 não confirmou só as suas mortes como potências mundiais — confirmou também a consolidação da hegemonia militar e económica da América na Mesopotamia e Arábia. Com os recursos petrolíferos desta região, hoje de maior importância do que nunca, a Casa Branca não permite quaisquer desafios ao seu domínio do Médio Oriente, o qual é vital para o objectivo imperial de Washington, incluindo seu alçamento sobre as demais economias do primeiro mundo e também sobre a da China. Como parte dos novos arranjos de poder, Washington pretende dar acesso privilegiado ao petróleo do Médio Oriente ao Reino Unido, em detrimento da França e da Alemanha que, juntamente com a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo são o núcleo da autêntica "Nova Europa", cuja economia ameaça um dia desafiar o primado da economia americana e do dólar.

Há um sopro de afinidade ideológica entre os membros do "eixo da virtude" emergente que se propõe a combater o "eixo do mal" emergente, especialmente desde que o apoio ao "Novo Trabalhismo" de Tony Blair é mais forte entre os conservadores (Tories) da Grã-Bretanha — e da Austrália(!). De facto, a Casa Branca, imitando talvez a relação do Kremlin soviético com os seus clientes, pretende presidir uma agregação de governos de tendências semelhantes e regimes submissos (uma verdadeira "quinta internacional"), e qualquer país que se recuse a alinhar será excomungado — ou pior — por ser desviante ou companheiro de viagem do inimigo. Nesta perspectiva, no caso (não demasiado provável?) de permanecerem na corrida, ao procurarem um terceiro caminho a Alemanha de Schroeder e a França de Chirac poderão bem tornar-se o equivalente funcional da Jugoslávia de ontem (a qual foi comunista mas fora do Pacto de Varsóvia), dizendo isto em traços grossos e fortes. Tito ressuscitado!

Nesta conjuntura, o Iraque não é um fim em si mesmo:    para os Estados Unidos o Iraque é um pião, uma estação do caminho em que evolui a geopolítica e a geo-economia da sua potência imperial. Mas para a Nova Europa genuína é um teste e a medição da sua crescente autonomia política e económica e do seu músculo no sistema mundial.

É natural para a América tentar impedir ou atrasar a emancipação da Europa através da arregimentação, em particular dos países do ex-Pacto de Varsóvia cujo débito primário e cuja lealdade é para com a NATO e não para com a União Europeia. Entretanto, não é menos natural para esta União, que recentemente lhes deu as boas-vindas, exigir-lhes que assumam suas responsabilidades e façam o seu juramento. (Assim como a Inglaterra talvez não fosse desencorajada de apresentar candidatura para tornar-se o 51º estado da União Americana).

Enquanto isso os europeus, todos demasiado familiares com a guerra, deveriam recordar a Washington que as guerras clássicas de cruzamento de fronteiras, à moda de von Clausewitz, são coisa do passado. Tal como Israel está a aprender por experiência própria, uma guerra ao terror(ismo) não pode ser vencida pelo bombardeamento de uma sede de governo, pela derrocada de um regime, nem pelo desmantelamento de um arsenal. Ao pensar e preparar a guerra híbrida e não cartografada de amanhã, as elites estratégicas da União Europeia podem enfatizar a importância de combinar uma nova geração de armas e de tácticas militares com uma nova geração de políticas sociais e culturais sem as quais será difícil, se não impossível, conter a praga do terror.

[*] O autor é Professor Emérito de História na Universidade de Princeton e autor de numerosas obras, inclusive "Why Did the Heavens Not Darken?: The 'Final Solution' in History" (Pantheon Books, 1988) e "The Furies: Violence and Terror in The French and Russian Revolutions" (Princeton University Press, 2000). Este artigo é dedicado pelo autor à memória do seu editor e amigo Angus Cameron. Tradução de J. Figueiredo.

[NR]: LÍDERES OU LIDERADOS?
A iniciativa deste documento dos "líderes europeus" coube ao sr. Paul Gigot, do 'Wall Street Journal'.

"Quisemos expor o carácter fraudulento das afirmações de que a França e a Alemanha falavam pela Europa. (...) Assim, solicitámos um depoimento aos dirigentes da Itália, da Espanha e do Reino Unido. Estes dirigentes encarregaram-se por sua vez de reunir as assinaturas das nações da nova Europa (...). Se esta carta permitiu ajudar a diplomacia do sr. Bush e nos faz vender mais jornais, tanto melhor" (citado por Serge Halimi em Le Monde Diplomatique , Março/2003).

Verifica-se assim que a dita cuja iniciativa "europeia" coube ao jornal do capital financeiro dos EUA. É o caso de perguntar aos tais oito dirigentes europeus se eles são líderes ou liderados. No que se refere a Portugal, o primeiro-ministro Durão Barroso tomou uma posição que não corresponde à do Presidente da República e nem à esmagadora maioria do povo português, que se opõe maciçamente à guerra.

Este episódio permite ainda avaliar o estado em que anda a deontologia jornalística do 'Wall Street Journal'. Até agora a função dos jornais era sobretudo noticiar acontecimentos. Mas, graças à visão empresarial do esperto sr. Gigot, aquela publicação americana passa a fabricá-los e tenta com isso aumentar as suas vendas.

resistir.info


O original deste artigo encontra-se em http://www.monthlyreview.org/0303mayer.htm .

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
10/Mar/03