Stephen Jay Gould O que significa ser radical?
por Richard C. Lewontin e Richard Levins
[*]
No início deste ano, Stephen Jay Gould desenvolveu um cancro no
pulmão que se alastrou tão rapidamente que já não
havia
qualquer esperança de sobrevivência. Faleceu em 20 de Maio de
2002, aos 60 anos. Vinte anos antes escapara à morte por um
mesotelioma, induzido, como supomos, por alguma exposição ao
amianto. Ainda que a sua cura tenha sido completa, nunca perdeu a
consciência da sua mortalidade dando a sensação, pelo menos
aos seus amigos, de uma quase bem disposta aceitação do
inevitável. Tendo sobrevivido a um cancro que foi provavelmente
consequência de um envenenamento ambiental, sucumbiu a outro.
A vida pública, intelectual e política de Steve Gould foi
extraordinária, senão única. Primeiro, foi um
biólogo evolucionário e historiador da ciência cujo
trabalho intelectual teve um impacto maior na nossa visão do processo
evolutivo. Segundo, foi, de longe, o divulgador científico mais
amplamente conhecido. Terceiro, foi um activista político consistente
no apoio ao socialismo e na oposição a todas as formas de
colonialismo e opressão. A figura que mais se lhe aproxima neste
aspecto foi a do o biólogo britânico da década de 30, J. B.
S. Haldane, um dos fundadores da moderna teoria genética da
evolução, um maravilhoso ensaísta sobre ciência para
o público genérico, e um marxista peculiar, colunista no
Daily Worker
que acabaou por se afastar do Partido Comunista devido à
exigência de que o seu trabalho científico seguisse a doutrina
partidária.
O que caracteriza o trabalho de Steve Gould é o seu radicalismo
consistente. A palavra
radical
tornou-se sinónimo de
extremista
no uso corrente: a
Monthly Review
é uma publicação
radical
para os leitores do
Progressive
; Steve Gould submeteu-se a uma cirurgia
radical
quando os tumores foram removidos do seu cérebro; e um
radical
é alguém que está abertamente no campo da esquerda (ou da
direita). Mas uma breve incursão ao
Oxford English Dictionary
recorda-nos que a origem da palavra radical é, de facto,
radix
, a palavra latina para
raiz.
Ser radical é considerar as coisas desde a sua raiz, ir à
origem do paradigma, tentar reconstituir a acção e as ideias
desde os primeiros princípios. O impulso para ser radical é o
impulso para perguntar, Como sei aquilo? e Porque estou a
seguir este percurso ao invés de outro? Steve Gould possuia esse
impulso radical e seguia-o onde era importante.
Primeiro, Steve era radical na sua ciência. A sua mais conhecida
contribuição para a biologia evolucionária foi a teoria do
equilíbrio pontuado
que desenvolveu com o seu colega Niles Eldridge. A teoria padrão da
mudança da forma de organismos no tempo evolutivo é que ela
ocorre constantemente, paulatinamente e gradualmente com mudanças mais
ou menos iguais a acontecerem em iguais intervalos de tempo. Esta parece ter
sido a visão de Darwin, embora a prosa de Darwin no século XIX
admita quase qualquer leitura. A genética moderna mostrou que qualquer
mudança hereditária no desenvolvimento que seja provável
sobreviver causará apenas uma ligeira alteração no
organismo, que tais mutações ocorrem a uma taxa razoavelmente
constante em períodos de tempo longos e que a força da
selecção natural devidas a essas pequenas mudanças
são também de pequena magnitude. Todos estes factos apontam para
uma mudança mais ou menos constante e lenta nas espécies durante
longos períodos.
Quando olhamos para registos fósseis, no entanto, as mudanças
observadas são muito mais irregulares. Verificam-se maiores ou menores
mudanças abruptas na forma entre fósseis que se sucedem no tempo
geológico sem muita evidência dos supostos registos
intermédios entre eles. A explicação usual é a de
que os fósseis são relativamente raros e estamos apenas a
observar instantâneos ocasionais da evolução real dos
organismos. Esta é uma teoria perfeitamente coerente, mas Eldridge e
Gould recuaram ao paradigma e questionaram se a taxa de mudança sob a
selecção natural seria realmente constante como todos assumiam.
Examinando algumas séries de fósseis com um registo temporal mais
completo do que o normal, encontraram evidência de longos períodos
de virtualmente nenhuma mudança pontuados por curtos períodos
durante os quais parecia ocorrer a maior parte da mudança na forma.
Eles generalizaram esta descoberta numa teoria em que a evolução
ocorre repentina e abruptamente e apresentaram várias possíveis
explicações, incluindo aquela em que muito da
evolução verificou-se após súbitas grandes
alterações no ambiente. Steve Gould foi mesmo mais longe na sua
ênfase acerca da importância de grandes acontecimentos irregulares
na história da vida. Deu grande importância às
súbitas extinções em massa de espécies após
colisões de grandes cometas com a Terra e na subsequente
repovoação do mundo vivo a partir de um grupo restrito de
espécies sobreviventes. Deve-se resistir à
tentação de ver alguma conexão simples entre a teoria de
Gould da evolução episódica e a sua adesão à
teoria marxista das etapas históricas. A conexão é muito
mais profunda. Ela reside no seu radicalismo.
Outro aspecto do radicalismo de Gould em ciência foi a forma da sua
abordagem geral à explicação evolucionária. A
maioria dos biólogos preocupados com a história da vida e a sua
actual distribuição geográfica e ecológica assume
que a selecção natural é a causa de todas a
características dos organismos vivos ou extintos sendo que a tarefa do
biólogo, na medida em que tem de fornecer explicações,
é aparecer com uma narrativa razoável da razão
porquê certas características particulares de uma espécie
foram favorecidas pela selecção natural. Se, quando a
espécie humana perdeu a maior parte do seu pelo corporal ao evoluir dos
seus ancestrais macacos, ainda assim manteve olhos castanhos, então
olhos castanhos deve ser uma coisa boa. Uma grande ênfase dos escritos
científicos de Steve Gould era no sentido de rejeitar este
adaptacionismo Panglossiano simplista e voltar à diversidade fundamental
dos processos biológicos na busca das causas da mudança
evolutiva. Ele argumentou que a evolução foi resultado tanto de
forças aleatórias como selectivas e que as características
podem ser subprodutos físicos da selecção por outros
atributos. Também argumentou fortemente a favor da contingência
histórica da mudança evolutiva. Alguma coisa pode ser
seleccionada por alguma razão num determinado momento, e depois por uma
razão completamente diferente em outro momento, de modo que o produto
final é o resultado de toda a história de uma linha evolutiva e
não pode tornar-se compreensível pelo seu significado adaptativo
no presente. Deste modo, por exemplo, os humanos são como são
porque os vertebrados terrestres reduziram muitas formas de barbatanas a quatro
membros, os corações dos mamíferos tendem a poscionar
à esquerda, enquanto os dos pássaros à direita, os ossos
do ouvido interior eram parte do maxilar dos nossos antepassados
reptilínios, e aconteceu uma seca na África oriental num tempo
crucial da nossa história evolutiva. Portanto, se uma vida inteligente
nos visitar vinda de algures do universo, não devemos esperar que tenham
forma humana ou sofram de uma hierarquia sexista, ou tenha um posto de comando
nas suas naves espaciais.
Gould enfatizou igualmente a importância de relações de
desenvolvimento entre diferentes partes de um organismo. Um caso famoso foi o
seu estudo do alce irlandês, enorme e extinto, com enormes chifres, muito
maiores em proporção relativamente ao tamanho do animal do que
é visto no moderno veado. A história adaptacionista inventada
foi que os chifres de veados machos estão sob constante
selecção natural para o seu aumento pois os machos usam-nos em
combate com outros quando competem para aceder às fêmeas. O alce
irlandês impulsionou a evolução desta forma de machismo
demasiado longe e os seus chifres tornaram-se tão pesados que não
puderam cumprir as tarefas da sua vida diária e extinguiu-se. O que
Steve mostrou foi que para o veado em geral, espécies com um corpo maior
possuem chifres que são mais do que proporcionais no tamanho uma
consequência da taxa de aumento diferencial do tamanho do corpo e do
tamanho dos chifres durante o desenvolvimento. De facto, o alce irlandês
tinha chifres exactamente do tamanho que seria de prever para a dimensão
do seu corpo e nenhuma história especial de selecção
natural é requerida.
Nenhum dos argumentos de Gould sobre a complexidade da evolução
rejeita Darwin. Não existe nenhum novo paradigma mas sim uma
perfeitamente respeitável ciência normal que
acrescenta excelência ao esquema original darwiniano. Eles tipificam a
sua regra radical para a compreensão: ir sempre aos processos
biológicos básicos e ver aonde isso conduz.
A maior fama de Steve Gould não foi como biólogo mas como
divulgador da ciência para o público leigo, em
lições, ensaios e livros. A relação entre
conhecimento científico e acção social é
problemática. O conhecimento científico é
esotérico, possuído e compreendido por uma pequena elite, ainda
que o uso e controlo desse conhecimento pelos poderes privados e
públicos tenham enormes consequências para todos. De que modo
pode existir nem que seja uma ilusão de um estado democrático
quando conhecimento vital está nas mãos de uns poucos? A
resposta imediata é que existem instrumentos de
popularização da ciência, principalmente o jornalismo
científico e os textos de divulgação científica,
que criam um público informado. Mas essa popularização
é em si mesma um instrumento de ofuscação e de
pressão das agendas das elites.
Os jornalistas da ciência sofrem de uma dupla deficiência:
primeiro, não importa o quanto são educados, inteligentes e
motivados, eles têm que, no fim, acreditar no que os cientistas lhes
dizem. Mesmo um biólogo tem que confiar no que um físico afirma
sobre a mecânica quântica. Grande parte da reportagem
científica começa com uma conferência de imprensa ou uma
nota produzida por uma instituição científica.
Cientistas do Blackleg Institute anunciaram hoje a descoberta do gene da
susceptibilidade à lesão motora. Segundo, os média
para os quais os repórteres científicos trabalham fazem imensa
pressão para que escrevam notas dramáticas. Onde estará o
editor que concede preciosos centímetros de coluna para um artigo sobre
ciência cuja mensagem seria a de que é tudo muito complicado, que
não é possível fazer previsões, que existem
sérias dificuldades experimentais no caminho que se percorre para a
descoberta da verdade, e que podemos nunca vir a saber a resposta? Terceiro, a
natureza esotérica do conhecimento científico coloca barreiras
retóricas quase insuperáveis entre mesmo o mais sábio
jornalista e o leitor. Não é geralmente percebido que uma
explanação transparente em termos acessíveis ao leitor
leigo requer o mais profundo conhecimento possível do assunto por parte
do redactor.
Os cientistas, e os seus biógrafos, que escrevem livros para um
público leigo estão usualmente preocupados em abraçar
acriticamente o romance da vida intelectual, as maravilhas da sua
ciência, e a propagandear um ainda maior apoio ao seu trabalho. Onde
está o coração empedernido que não possa ser
cativado por Stephen Hawking e a sua aventura intelectual? Mesmo quando a
intenção é simplesmente informar o público leigo
sobre uma área do conhecimento científico, as
complicações do actual estado da compreensão são
tão grandes que a pressão para contar uma história simples
e apelativa são irresistíveis.
Steve Gould foi uma excepção. Os seus trezentos ensaios sobre
questões científicas, publicados na sua coluna mensal da
Natural History Magazine
, muitos dos quais amplamente divulgados em livros, combinam uma exacta e
subtil explicação dos problemas e achados científicos, com
uma técnica de exposição que nem condescende com os seus
leitores nem super-simplifica a ciência. Ele disserta sobre a verdade
complexa de um modo que os seus leitores leigos o possam compreender, enquanto
envolve a sua prosa com referências ao basebol, música coral, e
arquitectura de templos. Claro que quando consideramos a escrita para uma
audiência popular, temos que ser claros sobre o que queremos dizer por
popular
. O escritor uruguaio Eduardo Galeano pergunta o que queremos dizer com
escrever para o povo quando a maior parte do nosso povo é
iletrado. No norte há menor iliteracia formal, mas Gould escrevia para
uma audiência altamente educada, mesmo que não especialista, para
a qual música coral ou arquitectura de templos fornece metáforas
mais cheias de significado do que as próprias ideias científicas.
A maior parte dos assuntos que Steve aborda pretende ser ilustrativo da
complexidade e diversidade dos processos e produtos da evolução.
Apesar da imensa diversidade de matérias sobre as quais ele escreveu,
existiu uma linha unificadora: que a complexidade do mundo vivo não
pode ser tratada como uma manifestação de algum grande
princípio geral, mas que cada caso deve ser entendido por um exame
completo e da compreensão das suas muitas relações causais.
Na sua vida política Steve fez parte do movimento geral da esquerda.
Foi activo no movimento contra a guerra no Vietname, no trabalho da
Ciência para o Povo, e na Escola Marxista de Nova York
(New York Marxist School)
. Identificava-se a si mesmo como marxista, mas, tal como o darwinismo, nunca
é certo o que essa identificação implica. Apesar da nossa
camaradagem estreita em muitas coisas ao longo de muitos anos, nunca tivemos
uma discussão sobre a teoria marxista da história ou de economia
política. Essencialmente, ao insistir na sua adesão a um ponto
de vista marxista, ele aproveitou a oportunidade que lhe era oferecida pela sua
imensa fama e legitimidade como um intelectual público para fazer uma
difusão pública acerca da validade de uma análise marxista.
Ao nível das lutas políticas reais, a sua mais importante
actividade foi no combate ao o criacionismo e na campanha para destruir a
legitimidade do determinismo biológico, incluindo a sociobiologia e o
racismo. Argumentou perante o poder legislativo do estado do Arkansas (
Arkansas State Legislature
) que diferenças entre evolucionistas ou problemas evolucionistas
não resolvidos não punham em causa a demonstração
da evolução como um princípio organizador para entender a
vida. Foi um dos autores originais do manifesto desafiando a pretensão
da sociobiologia de que existe uma natureza humana derivada e determinada pela
evolução que garante a perpetuação da guerra, do
racismo, da desigualdade de sexos e do capitalismo empresarial. Através
de toda a sua carreira continuou a atacar esta ideologia e mostrou a
superficialidade das suas supostas raízes na genética e na
evolução. A sua mais significativa contribuição
para deslegitimação do determinismo biológico, no entanto,
foi a sua muitíssimo lida exposição do racismo e da
desonestidade de proeminentes cientistas,
A falsa medida do homem
(The Mismeasure of Man).
Aqui, mais uma vez, Gould mostrou a importância de voltar ao paradigma.
Não contente simplesmente em evidenciar o preconceito de classe e o
racismo expressos por biólogos, antropólogos e psicólogos
americanos, ingleses e europeus anteriores à Segunda Guerra Mundial, ele
examinou de facto os dados sobre os quais se baseavam as suas pretensões
de cérebros maiores e mentes superiores dos europeus nórdicos.
Em todos os casos as amostras haviam sido deliberadamente enviesadas, ou os
dados mal representados ou mesmo inventados ou ainda as conclusões mal
retiradas. Os dados consistentemente fraudulentos sobre o QI produzidos por
Cyril Burt já haviam sido expostos por Leo Kamin, mas isto poderia ter
sido rejeitado como uma patologia isolada num corpo saudável de
investigação. A evidência produzida por Gould de dados
difusos cozinhados por um conjunto de proeminentes investigadores mostrou
à evidência que Burt não foi um caso aberrante mas antes
típico. É amplamente aceite que compromissos ideológicos
podem ter um efeito inconsciente nas direcções de
investigação e conclusões dos cientistas. Mas fraude
deliberada e generalizada no interesse de uma agenda social? Que ataque mais
radical sobre as instituições da ciência
objectiva poderia ser imaginado?
Ser um radical no sentido que enforma este memorial não é
fácil pois envolve um constante questionamento das bases das
pretensões e acções, não apenas dos outros, mas
também de nós próprios. Ninguém, nem mesmo Steve
Gould, pôde reivindicar o sucesso em ser consistentemente radical, mas,
como escreveu Rabbi Tarfon, Não é nossa
obrigação ter sucesso, nem tão pouco somos livres de
desistir da luta.
[*]
Richard C. Lewontin e Richard Levins são colegas e camaradas há
40 anos. São autores de
The Dialectical Biologist
(Harvard University Press, 1987), e
Biology as Ideology: The Doctrine of DNA
(HarperCollins, 1992). Lewontin é
Research Professor
de Biologia em Harvard e deu um curso conjunto com Steve Gould. Levins
é responsável pelo programa de Ecologia Humana na
Harvard School of Public Health
.
O original deste artigo encontra-se em
http://www.monthlyreview.org/1102lewontin.htm
Tradução de Paulo Maurício.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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