Aqueles que não têm nenhuma parte da fortuna dos poderosos,
normalmente têm uma parte das suas desgraças.
Bertolt Brecht, O Círculo de Giz Caucasiano.
Apenas há alguns anos sugeria-se generalizadamente que a economia
capitalista havia entrado numa nova era económica. O rápido
crescimento económico verificado durante um breve período dos
finais dos anos 90, disseram-nos, tornar-se-ia virtualmente sem fim,
estimulado pelo aumento da produtividade comandada pela alta tecnologia e a
Nova Economia. As circunstâncias que agora enfrentamos na
sequência da explosão da bolha especulativa não podem ser
mais diferentes. O País está novamente atolado na
estagnação económica. Na presente
recuperação se realmente se pode chamar isso
os novos empregos mantém-se poucos e raros. Das quatro fontes de
procura que criam actividade económica consumo privado,
investimento empresarial, despesa pública e exportações
líquidas é principalmente o consumo, suportado pelo
aumento da dívida, que está neste momento a impedir a economia de
deslizar mais profundamente na estagnação. Na verdade, muitos
empresários e economistas receiam o regresso da recessão
referindo-se a ela como a probabilidade de um "duplo mergulho"
(double dip)
. Por trás deste medo está o excesso da capacidade de
produção em quase todas as indústrias, a ausência de
novos estímulos ao crescimento, crescimento lento ou recessão na
maior parte do resto do mundo e os efeitos secundários da
explosão da bolha especulativa nas bolsas. Tudo isto sugere que o que
está em causa é mais do que o ciclo económico normal.
Há, no mínimo, razões para esperar a
continuação da tendência para a estagnação.
O QUADRO DO DESEMPREGO
O principal indicador desta lamentável situação pode ser
encontrado no âmbito da contratação, que está na sua
pior queda dos últimos vinte anos. Desde que a recessão
começou, em Março de 2001, a economia americana perdeu mais de
dois milhões de empregos (
New York Times
, 06/Fev/2003), com muitas das perdas de emprego a ocorrerem como
despedimentos permanentes em massa nas maiores companhias. Apesar de os
números de desemprego oficiais terem estabilizado nos 6% durante o
ano passado, muitos trabalhadores foram lançados no desemprego por
períodos muito extensos, enquanto muitos outros desistiram de procurar
trabalho activamente e não estão a ser contabilizados nos
números oficiais do desemprego, embora estejam sem trabalho e desejosos
de emprego.
Nas quatro recessões que precederam a do início dos anos 90, a
proporção de desempregados que perderam os seus empregos de uma
forma permanente era praticamente igual à dos que perderam os seus
empregos de uma forma temporária. Os trabalhadores que perdiam os seus
empregos, de forma permanente, atingiam os 51% na fase inicial das quatro
recessões anteriores ao início dos anos 90, enquanto na
recessão do início dos anos noventa a percentagem dos
trabalhadores que foram despedidos permanentemente aumentou para 70%. Na
fase inicial da recessão de 2001, a taxa de desempregados permanentes
aumentou ainda mais, atingindo os 87%. Este quase desaparecimento dos
despedimentos temporários como um factor no desemprego significa
dificuldades acrescidas para os trabalhadores que são despedidos,
aumentando o medo daqueles que continuam empregados e fazendo
pressão para rebaixar os salários.
Outra indicação da terrível situação do
emprego deste momento é o registo de despedimentos em massa
(despedimentos envolvendo pelo menos 50 pessoas numa só empresa).
Só em Novembro de 2002, houve 2.150 despedimentos em massa, envolvendo
240 mil trabalhadores. No quarto trimestre de 2000, 58% dos indivíduos
que perderam o seu trabalho através de despedimentos em massa estavam
associados a despedimentos por tempo superior a trinta dias. No segundo
trimestre de 2002 (o último trimestre com registos conhecidos), mais de
dois terços (68%) dos trabalhadores associados a despedimentos em massa
ficaram sem emprego por mais de trinta dias.
[1]
Tem havido uma tendência generalizada para a subida das taxas de todos os
desempregados (não só aqueles referentes aos despedimentos em
massa) que estão fora do trabalho por um período extenso. A
média decenal daqueles desempregados que estiveram sem emprego durante
mais de 15 semanas passou de menos de 20% no princípio da década
de 1970 para 26% no início dos anos 80, 28% no início dos anos 90
e 30% em 2003 (Bureau of Labor Statistics, U.S. Dept. of Labor).
Os trabalhadores que enfrentam o sofrimento de longos períodos de
desemprego com limitadas expectativas de encontrar um trabalho geralmente
abandonam a procura activa de emprego e assim deixam de figurar nas
estatísticas oficiais do desemprego. Por outras palavras, caem mais
profundamente naquilo a que Marx chamou o exército industrial de
reserva. Depois de vários anos de críticas dos sindicatos
e dos progressistas, o Departamento de Estatística do Trabalho
finalmente reconheceu o problema no número de Outubro de 1995 da sua
Monthly Labor Review
e já traz um relatório sobre medições alternativas
de subutilização do trabalho. Em Janeiro de 2003, o desemprego
oficial (definido como o número total de desempregados como uma
percentagem da soma daqueles à procura de emprego mais aqueles
presentemente a trabalhar) cifrava-se em 6,5% (sem o ajustamento sazonal).
Contudo, quando aqueles que foram recentemente colocados fora da força
de trabalho, tal como oficialmente definida, e aqueles que estão a
trabalhar em tempo parcial mas desejam um emprego a tempo inteiro, são
acrescentados ao número oficial de desempregados, o nível de
desemprego começa a ser visto nas suas verdadeiras
proporções. Por esta medida (sem o ajustamento sazonal), havia
uma taxa real de desemprego de 11% em Janeiro de 2003, comparativamente com os
10,5% registados um ano antes (
ver tabela 1
). Isto significa que há mais de 6 milhões de pessoas que
não têm empregos e querem um trabalho a tempo inteiro, embora elas
não sejam oficialmente considerados como desempregadas!
O fardo do desemprego recai invariavelmente de uma forma desproporcionada nas
pessoas de cor. Como mostra a tabela 2, a taxa de desemprego oficial para
homens e mulheres negros com 20 anos ou mais, no último trimestre de
2002, foi mais do dobro da registada entre os seus homólogos brancos.
Para os homens negros os níveis oficiais de desemprego, no final do ano
passado foi de 10%. Como os trabalhadores negros ganham de uma forma
desproporcional em relação aos brancos durante os anos de baixas
taxas de desemprego (um facto celebrado no último
Economic Report of the President
), o agudo aumento do desemprego negro ainda é mais óbvio agora.
Uma taxa de desemprego para os cidadãos negros que era o dobro da taxa
de desemprego para os cidadãos brancos foi uma das principais
manifestações de racismo institucional no início dos anos
60, antes das vitórias principais dos Direitos Civis. Pouco mudou
quanto a isso nas décadas intermediárias.
[2]
O aumento de desemprego e a estagnação de salários
reflectem-se no número crescente de indivíduos e famílias
sem abrigo e com fome. Na Conferência Americana de Presidentes de
Municipalidades relatou-se que ...durante o ano passado os pedidos de
emergência para assistência alimentar aumentaram a um ritmo de 19%,
com 100% das cidades americanas registando um aumento.
(A Status Report on Hunger and Homelessness in America's Cities 2002, December
2002).
Em relação aos sem abrigo, a Reunião de presidentes de
municipalidades concluiu igualmente que durante o último ano os
pedidos para protecção de emergência, aumentaram nas
cidades inspeccionadas, a uma percentagem de 19%, tendo sido registado um
aumento de 88% de cidades afectadas por esta situação. Em
relação aos sem abrigo a Conferência também
descobriu que "Durante o ano passado os pedidos para abrigos de
emergência aumentaram nas cidades inquiridas numa média de 19%,
com 88% das cidades a registarem um aumento". Uma história recente
de New Hampshire mostra de algum modo a dimensão humana da assim chamada
recuperação de desempregados associada à
diminuição da assistência federal aos pobres:
aumento do despedimento, dos alugueres e do preço dos
combustíveis significa tempos difíceis para as despensas
domésticas de New Hampshire. Mais pessoas estão a pedir ajuda e
cada vez menos a contribuir com doações (in
Burlington Free Press,
com notícia da Associated Press, 02/Mar/2003). Como o director do Bem
Estar Social de Pittsfield, New Hampshire afirma: Os pedidos totais de
ajuda ao Bem Estar triplicaram... no ano passado. Eu recebo aqui gente que
está desempregada e no final dos seu período de subsídio
de desemprego, eles vêm cá com os filhos e a mulher e perguntam-me
o que posso fazer. Bem, a única coisa que posso fazer é
alimentá-los.
COMO A ECONOMIA SE MANTÉM EM ANDAMENTO
A grande ironia nestas circunstâncias é que a economia americana
está a ser impulsionada para a frente na fraca recuperação
actual em grande parte pelo crescimento do consumo pessoal, apesar de os
salários reais estarem a diminuir. O principal factor a estimular este
consumo é o empréstimo com base no aumento do valor das
habitações a chamada bolha imobiliária. Com o
mercado de acções e muitas outras oportunidades de investimentos
a tornarem-se pouco atractivas, grandes quantias de dinheiro são
deslocadas para o imobiliário, aumentando os seus preços. A
Reserva Federal, que cortou as taxas de juro 12 vezes nos últimos dois
anos a fim de incentivar o investimento, estimulou esta tendência. Como
reconheceu
The Economic Report of the President, 2003
, Os preços das habitações ...aumentaram muito mais
depressa do que a mediana dos rendimentos familiares em 2001, o que deixa
o rácio entre os preços das habitações e o
rendimento familiar no nível mais alto das últimas décadas
(pg. 44). Muitos dos candidatos a proprietários são incapazes de
comprar casas devido ao seu elevado preço, e são confrontados com
alugueres muito altos. Enquanto isso, os proprietários de
habitações responderam à conjugação do
aumento do valor das casas com a baixa das taxas de juro tomando
empréstimos maciços com a hipoteca dos seus lares, basicamente
para manter o seu padrão de consumo. O refinanciamento totalizou 2,5
triliões de dólares só nos últimos dois anos. Foi
estimado que no terceiro trimestre de 2002, numa base anualizada, os americanos
retiraram 320 mil milhões de dólares mais com a hipoteca das suas
casas do que aquilo que reinvestiram no imobiliário. Apenas 39% dos
lares nos Estados Unidos estão inteiramente pagos e os restantes
proprietários estão a suportar cargas médias de
dívida que excedem em 80% o valor das suas casas. Isto significa que
muitos americanos têm pouca margem de segurança se o
nível de preços das habitações cair, ou no
mínimo se a sua redução não fosse superior a 20%,
como aconteceu em muitas áreas superaquecidas no fim dos anos 80.
(Jonathan Laing, The Debt Bomb,
Barron's
, 20/Jan/2003). Na verdade, a bolha do imobiliário pode muito bem ser
esticada ainda mais sem que arrebente. Stephen Roach, economista chefe e
director para a economia global da Morgan Stanley, pormenorizou recentemente
os perigos desta situação:
O valor líquido
(equity)
da bolha [no mercado de acções] ajudou a criar outras bolhas
a mais notável foi a do mercado imobiliário e em gastos do
consumidor. A sua existência continuada coloca uma séria
ameaça para a expansão ulterior... Há boas razões
para acreditar que as bolhas tanto da propriedade [imobiliário] como do
consumidor irão arrebentar num futuro não muito distante. Se
isto acontecer, há uma possibilidade bem real de que os Estados Unidos,
tal como aconteceu com o Japão durante os anos 90, venha a sofrer uma
série de recaídas recessionárias nos próximos anos.
Por agora a negação desta realidade continua a ser profunda, tal
como acontecia quando o índice composto do Nasdaq estava a recuar 5.000
pontos. Poucos querem acreditar que esta expansão económica
possa ser construída sobre uma base económica tão
vacilante. (The Cost of Bursting Bubbles,
New York Times
, 22/Set/2002, op-Ed page).
Mesmo sem a quebra nos preços das casas, há
indicações de que as pessoas esticaram de tal maneira os seus
créditos que a expansão da dívida do consumidor pode
não ser capaz de continuar no mesmo ritmo. Um indicador é que o
fardo do serviço da dívida com habitação (os
pagamentos do serviço da dívida com habitação como
percentagem do rendimento familiar total [taxa de esforço]), aumentaram
de 12% há uma década atrás no início da fase de
recuperação do ciclo económico, para cerca 14% hoje na
mesma fase do ciclo.
[3]
Uma coisa é certa: o montante da dívida em
relação à capacidade de pagar não pode continuar a
aumentar indefinidamente. O reflexo disto é o recente aumento das
bancarrotas pessoais, as quais atingiram um número recorde de mais de um
milhão e meio em 2002. (
New York Times
, 15/Fev/2003).
Esta dependência da economia em relação às bolhas do
imobiliário e aos
gastos do consumidor torna-se mais alarmante no momento em que se reconhece que
outras fontes de procura estão a vacilar. A verdadeira locomotiva da
economia capitalista é a acumulação de capital e o
investimento. Contudo, o investimento fixo nos Estados Unidos caiu a uma taxa
anual de 3% nos três primeiros trimestres de 2002, devido em grande parte
a um declínio precipitado no investimento em estruturas, que caiu quase
18%. Este colapso do investimento em estruturas resulta principalmente de um
excesso de construção em edifícios comerciais
(edifícios de escritórios, hotéis, centros comerciais,
etc) durante o período da bolha financeira dos anos 90.
Contudo, não é só de edifícios para
escritórios que há excesso de oferta, mas também de
edifícios industriais e de equipamento. Muitos observadores,
conta-nos
The Economic Report of the President, 2003
, põem em relevo a questão de que a economia está a ser
confrontada com uma capacidade produtiva ociosa"
("capital overhang")
, assente num excessivo investimento nos anos imediatamente anteriores à
recessão de 2001 (p. 35). O que é inegável,
é que tem havido um aumento do excesso de capacidade nas fábricas
e nos equipamentos a uma escala nunca vista nas últimas décadas.
As estimativas preliminares para a capacidade industrial utilizada em 2002
colocam-na em 78%, o seu nível mais baixo desde 1983 (ibid., p. 339). O
investimento em novas capacidades produtivas é orientado pela
expectativa de lucros futuros quando as novas capacidades estiverem em
funcionamento.
Quando as expectativas de futuros lucros sobre o investimento são
baixas, devido a limitações do mercado ou a qualquer outra
razão, o investimento simplesmente cessa. As empresas são
particularmente cautelosas quanto a investir quando já enfrentam grande
capacidade produtiva ociosa, porque o novo investimento só irá
aumentar uma montanha já existente de excesso de capacidade.
Normalmente o investimento só ganha ímpeto se um aumento firme do
consumo final parecer bem assegurado. Mas se o consumo está hesitante
ou tem fundamentos precários, e a capacidade produtiva existente
já é suficiente para mais do que satisfazer as necessidades
actuais e previsíveis, as oportunidades de investimento são
extremamente limitadas.
Não há dúvida de que o novo investimento pode resultar
daquilo que Keynes chamou espíritos animais ambiente
irracionais e voláteis muitas vezes induzem o fervor especulativo
[4]
. Mas osespíritos animais, neste sentido, não devem
ser tomados em conta e podem desaparecer tão rapidamente como surgiram.
Isto é evidente no
gráfico 2
, que mostra a enorme volatilidade do capital de risco durante a bolha
tecnológico-financeira do final dos anos 90 e as consequências
quando a bolha rebentou. O resultado foi o desemprego em massa nos sectores
informático-tecnológico e financeiro e um enorme excesso de
capacidade nas telecomunicações e outras industrias de
alta-tecnologia. Apesar dos contínuos avanços
tecnológicos associados à revolução digital, o
investimento nestas áreas mantém-se vulnerável aos mesmos
problemas de excesso de capacidade que infectaram toda a história da
acumulação capitalista.
A revolução keynesiana na ciência económica ensina
que quando há uma inversão no ciclo económico os gastos
governamentais deveriam avançar para estimular a economia. Numa
extensão limitada isto tem estado a acontecer. O governo federal,
devido principalmente ao
boom
de gastos militares associados à sua Guerra ao Terrorismo a
nível global, aumentou as suas compras reais em bens e serviços a
uma taxa de 6% nos três primeiros trimestres de 2002. As compras dos
governos central e locais só aumentaram, no entanto, a uma taxa anual de
2% no mesmo período. Como forma de estimulo fiscal, o aumento total
vindo do governo é ainda demasiado pequeno para produzir efeitos na
economia em geral. As compras do Estado e locais, em particular, provavelmente
cairão drasticamente nos próximos meses pois muitos estados e
municipalidades estão a tentar evitar a falência.
Durante muitos anos as importações excederam de longe as
exportações americanas, o que deu como resultado um problema
potencialmente sério para a economia americana. Em 2002 as
importações de bens e serviços aumentaram muito mais
rapidamente do que as exportações, resultando num recorde do
défice comercial de 435 mil milhões de dólares (77 mil
milhões de dólares acima do ano anterior). O
défice americano em conta corrente, uma boa parte do qual resulta do
défice no comércio de bens e serviços, era aproximadamente
de 400 mil milhões de dólares em 2001 e é provável
que alcance bem mais de 500 mil milhões de dólares em 2002. Por
mais de uma década a tendência sido em direcção a
défices cada vez maiores em conta corrente.
[gráfico 3]
Os desequilíbrios no comércio interno e em conta corrente
não são novidade. Mas eles assumem diferentes formas em
diferentes países. Os défices são mais comuns nas
economias do terceiro mundo devido à exploração dos
países ricos. O serviço das dívidas do terceiro mundo e a
transferência de lucros das corporações multinacionais para
o núcleo dos países desenvolvidos tem de ser pago em divisa
internacional. Por isso, há uma tendência para estimular as
exportações ou tomar novos empréstimos para obter
dólares ou outras divisas internacionalmente aceites. O simples fluxo
de investimento e de ajuda dos países desenvolvidos, incluindo o FMI e o
Banco Mundial, conduz a uma maior dependência dos países
subdesenvolvidos aos centros de poder e à escravidão pela
dívida
(debt peonage)
.
Assim, como podem os Estados Unidos sair dos enormes défices nas suas
relações económicas com o resto do mundo? Não se
pode conseguir isso imprimindo mais dólares. (Isso poderia causar uma
inflação desenfreada e desencadear o caos no país e no
estrangeiro). Ao invés disso, é a posição
hegemónica dos Estados Unidos na economia mundial, o papel condutor
desempenhado pelo dólar americano, o mercado de acções em
disparada e os derivados financeiros que tem permitido emprestar pesadamente e
atrair grandes investimentos do resto do mundo. Como se vê no
[gráfico 3]
, um influxo líquido de capital para os Estados Unidos da ordem
das centenas de milhares de milhões de dólares por ano tem
sido necessário para equilibrar o seu défice em conta corrente.
Quanto tempo mais será capaz de continuar a funcionar desta maneira
é uma questão em aberto, e depende de relações de
poder que não estão fixadas para a eternidade
dentro da economia capitalista mundial como um todo.
O défice em conta corrente tem sido pago pelos investidores estrangeiros
que compram títulos do tesouro americano, especulam no mercado de
acções e em criações financeiras artificiais como
os derivados
(derivatives)
, compram imóveis e fundem-se com empresas americanas ou adquirem-nas,
ou montam
o seu próprio negócio nos EUA. Mas em 2001, segundo
a
Business Week Online
(18/Mar/2002), os estrangeiros passaram a comprar títulos, o que
colocou um fardo mais pesado sobre os EUA porque exigiam o pagamento de juros.
No último ano, 97% do défice americano em conta corrente
americana foi financiado com compras líquidas estrangeiras de outros
títulos sem ser os do Tesouro". Isto está a criar uma nova
fonte de fragilidade à economia americana, pois a natureza cada vez de
mais curto prazo do crédito que financia o défice significa que
ele provavelmente se tornará mais volátil. O que é certo
é que o andamento da expansão do império americano, o que
inclui guerras e a propagação de bases militares e compromissos
americanos no estrangeiro, podem resultar numa maciça saída
adicional de dólares do país. Se isso acontecer, o resultado
provável será um novo enfraquecimento da conta corrente
americana, e uma mais precária situação financeira
internacional tanto para os Estados Unidos como para a restante economia
mundial.
A natureza cruzada dos problemas que a economia americana atravessa é
evidente pelo facto de que uma grande parte dos
Treasury Securities
emitidos pelo governo americano quando gasta mais do que aquilo que
recebe em impostos é comprada por fontes estrangeiras. De 1992
até 2001, os estrangeiros aumentaram a sua participação na
propriedade da dívida americana de 17% para 31%
(Federal Reserve Board, Flow of Funds Accounts, Table L.209)
. As actuais políticas da administração americana
(primariamente a construção militar) estão a causar
aumentos maciços nos défices orçamentais, obrigando
à emissão de grandes quantidades de novos Títulos do
Tesouro. Em consequência, a disposição dos estrangeiros em
comprar e manter esses títulos tornou-se crítica para a
estabilidade da economia americana.
Outros países industrializados também podem experimentar
períodos de défice, mas habitualmente nunca por espaços de
tempo longos, e após um curto período eles geralmente oscilam
entre o défice e o excedente. Isto pode ser visto no
gráfico 4
que lida com os centros do imperialismo. Nos anos 70, a balança de
transações correntes pairou numa linha horizontal próxima
de zero. Durante a década seguinte, houve maiores
flutuações, associadas a uma intensa luta por mercados mundiais
que envolveram um aumento das concentrações de capital e uma
maior penetração nos países subdesenvolvidos. Contudo,
uma nova era de flutuações surgiu nos anos 90. O grande
défice em conta corrente dos Estados Unidos neste período
não foi só um sinal de aumento do desequilíbrio na
economia global. Foi também uma indicação de uma nova
fase de incerteza na economia americana. Como a economia americana representa
25% da economia global, um aumento da fragilidade na primeira assinala a
possibilidade da generalização de deslocações
económicas no futuro.
A administração Bush tem apenas uma resposta (além da
escalada nos gastos militares) para todo este pântano económico:
cortes maciços nos impostos das corporações e dos ricos.
Baseando sua abordagem numa teoria do investimento pelo lado da oferta que
agora deveria agora estar absolutamente desacreditada, a
administração acredita que ao aumentar o excedente
económico disponível para o capital e redistribuir rendimento e
riqueza dos pobres para os ricos abrirá as portas para uma
inundação de investimento e criará as
condições para um novo período de rápido
crescimento. Apesar disso, actualmente não há qualquer escassez
de excedente à procura de investimento dentro dos sectores ricos da
sociedade. O que estão a faltar são oportunidades de
investimento lucrativo para a absorção destes excedentes. O
problema principal tem a ver com uma super-acumulação de capital
monetário juntamente com uma insuficiente procura do consumidor. As
tendências existentes em relação ao consumo, em particular,
não são bons presságios para aqueles que procuram investir
em nova capacidade produtiva. Os cortes maciços nos impostos agora
propostos pela administração só irão enriquecer os
ricos a expensas da maior parte da população. Tirar recursos da
massa da população, que os gastariam em bens de consumo, e
dá-los aos ricos, que não os vão gastar em bens de
consumo, significa um novo enfraquecimento do consumo. Ao mesmo tempo,
aumentar o capital monetário nas mãos dos investidores não
os convencerá a investir a menos que eles considerem ser lucrativo
fazê-lo, o que significa que tem de haver uma expectativa de um
crescimento futuro da procura que utilizará a capacidade existente e
justificará a expansão. Neste momento isto é simplesmente
uma má aposta do ponto de vista dos negócios. Apesar dos doze
cortes nas taxas de juro nos últimos dois anos, que trouxeram as taxas
de fundos federais nos empréstimos
overnight
entre bancos abaixo dos 1.25%, o seu mais baixo nível dos
últimos 41 anos, o Federal Reserve Board não foi capaz de
estimular o investimento (
New York Times
, 01/Mar/2003).
O facto de que há pouca noção nos círculos do
establishment
acerca dos problemas subjacentes enfrentados pelas economias capitalistas
não é nada surpreendente. Peritos económicos e
sábios debatem infindavelmente acerca do défice orçamental
do governo federal, do défice em conta corrente, da fraqueza do
investimento, da explosão da bolha financeira, sem no entanto
considerarem a possibilidade de que estes podem ser meros sintomas de uma
doença inesperada chamada estagnação. Desde que a
visão prevalecente é de que uma economia capitalista tende
naturalmente para altos níveis de investimento,
crescimento rápido e prosperidade económica, a ideia de uma
tendência à estagnação, intrínseca à
economia capitalista madura, é excluída quase por
definição. Na medida em que se reconhece que a taxa de
crescimento da economia americana declinou desde a década de 1960, isto
é visto como o resultado de uma política governamental inadequada
ao invés de uma vasta tendência endémica do moderno
processo de acumulação.
No nosso ponto de vista, só se torna possível uma abordagem mais
realista se se adoptar a hipótese de que a estagnação
é
normal
no capitalismo avançado. Desta perspectiva, são os
períodos relativamente isolados de crescimento rápido, tais como
as décadas de 1950 e 1960, que precisam ser explicados ao invés
daqueles período de crescimento mais lento que dominaram a segunda
metade do século XX e os anos iniciais do século XXI.
O forte crescimento dos anos 50 e 60 pode ser explicado por factores
históricos como o aumento da liquidez do consumidor durante a Segunda
Guerra Mundial, a segunda grande onda de automobilização da
economia americana (também acompanhada pela expansão do
aço, vidro, indústrias da borracha e a construção
do sistema de auto-estradas interestaduais), o estímulo proporcionado
por duas guerras regionais na Ásia e o aumento maciço do
esforço de vendas associado ao moderno sistema de marketing. A maior
parte destes factores desvaneceram-se completamente (como no caso da liquidez
do consumidor) ou foram tão rebaixados que já não
representam factores de crescimento para a economia. Nos anos 1980 e 1990 o
principal estímulo era o crescimento da superestrutura financeira da
economia. Isto foi associado, especialmente nos últimos anos, ao
crescimento do sector da alta tecnologia bem como ao desenvolvimento da
Internet. Estes factores também levaram ao rebentamento da bolha no
mercado de acções e ao declínio do investimento em altas
tecnologias. Consequentemente, à economia falta agora a espécie
de factores históricos necessários para gerar um crescimento
rápido. A escalada de gastos militares associada à Guerra ao
Terrorismo proporcionou algum estímulo económico mas não
ainda num escala em relação ao PIB global comparável
às guerras das décadas de 1950 e 1960.
O que os representantes do capital
pensam
ser bom sob estas circunstâncias é redistribuir os efeitos do
crescimento lento para assegurar que os custos da desaceleração
incidam em primeiro lugar sobre os trabalhadores e os pobres (e sobre os
países do terceiro mundo). Os salários reais estão a cair
e ao mesmo tempo estão a ser feitos cortes drásticos em programas
do governo que beneficiam a população da base da sociedade. Os
benefícios com cuidados de saúde (Medicare) estão a ser
cortados e a administração está a fazer tentativas para
privatizar tanto a Segurança Social como a Saúde.
Como em tudo no capitalismo, isto é no fim da contas uma questão
de luta de classe (cruzadas por lutas raciais e de género). O que
é mais necessário sob estas condições é uma
revolta dos de baixo para combater a política predominante de
desigualdade económica. O espectro de uma tal revolta é talvez
aquilo que mais preocupa aqueles que estão actualmente a se tornar
mais ricos à custa da toda a sociedade.
NOTAS
1- Bureau of Labor Statistics, Mass Layoffs in November 2002,
December 24, 2002
www.bls.gov/mls/
. Não aparecerão novos dados
nesta série porque a administração Bush cortou todo o
financiamento ao Mass Layoff Statistics Program do Bureau of Labor Statistics a
partir de 31 de Dezembro de 2002.
2- Ver Paul Baran e Paul Sweezy,
Monopoly Capital
(Nova York: Monthly Review Press, 1966), p.261.
3- Direcção da Reserva Federal, Divida Interna
encargos com os serviços Cálculo de
Flutuações dos Fundos
www.federalreserve.gov/releases/housedebt/default.htm
.
4- John Maynard Keynes,
The General Theory of Employment, Interest and Money
(Nova York: Harcourt, Brace and Company, 1936), p.161.
__________
Os gráficos estão disponíveis apenas na edição em
papel.
O original encontra-se em
http://www.monthlyreview.org/0403editors.htm
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.