As ambições imperiais dos EUA e o Iraque
Oficialmente a actual política de Washington em relação ao
Iraque é provocar uma "mudança de regime" tanto
através de um golpe militar como por meio de uma invasão dos EUA,
justificada como um "ataque preventivo" contra um Estado bandido que
tende a desenvolver e preparar armas de destruição em massa
[1]
.
Mas uma invasão americana, se acontecer, não limitaria seus
objectivos à mera mudança do regime em Bagdade. O objectivo mais
vasto seria nada menos do que a projecção global do poder dos EUA
através da afirmação do domínio americano por todo
o Médio Oriente. O que o mundo está agora a enfrentar é
portanto a perspectiva de um grande novo desenvolvimento na história do
imperialismo.
O imperialismo de hoje já não é definitivamente o mesmo
daquele do fim do
século XIX. Nos dias primitivos da era moderna do imperialismo,
várias potências nomeadamente a Alemanha, o Japão e
os Estados Unidos vinham ao palco para desafiar a hegemonia
britânica em várias partes do globo. Havia um certo número
de características notáveis do imperialismo durante este
período: a luta entre as potências europeias para dividir a
África; intensa competição na Europa pelos mercados uns
dos outros; o crescente desafio alemão a Londres como o núcleo
do mercado internacional de dinheiro. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos
estavam tentando entrar na competição por mercados na Europa e
estavam a desenvolver suas próprias colónias e esferas de
influência na América Latina e na Ásia. As causas
primárias da Primeira Guerra Mundial incluíram tanto a feroz
competição entre as grandes potências por colónias e
mercados como a tentativa alemã de eliminar a Grã-Bretanha como o
centro dos mercados internacionais de dinheiro e de mercadorias.
O período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial representou uma
segunda fase do imperialismo moderno. O Tratado de Versalhes foi um processo
de os vencedores dividirem os ganhos, com um objectivo unitário global
a derrota do Bolchevismo. Thorstein Veblen escreveu que varrer o
Bolchevismo do mapa não era simplesmente uma cláusula secreta do
Tratado de Versalhes, era simplesmente a essência
("parchment")
do Tratado
(Essays in Our Changing Order, 1934, pg. 464)
. Contudo, o plano para isolar e deitar abaixo a União Soviética
foi interrompido pela Grande Depressão e pela Segunda Guerra Mundial, a
qual desenvolveu-se no âmbito das lutas das potências do eixo,
Alemanha, Itália e Japão, para obter espaços mais vastos
dentro do sistema mundial.
Uma terceira fase do imperialismo emergiu após a Segunda Guerra Mundial.
Durante a guerra, os Estados Unidos, como o novo Estado hegemónico no
interior do mundo capitalista, havia desenvolvido um plano para ganhar o
controle do que considerou serem os centros estratégicos da economia
mundial uma ambição que então só era
limitada pela existência da esfera de influência soviética.
Escrevendo neste espaço em Novembro de 1981, Noam Chomsky descreveu a
formação da estratégia geopolítica americana neste
período como se segue:
A estrutura geral de pensamento dentro da qual a política externa
americana evoluiu desde a Segunda Guerra Mundial é melhor descrita nos
documentos de planeamento produzidos durante aquela guerra pelos planeadores do
Departamento de Estado e pelo Council for Foreign Relations que reúnem
um período de seis anos no War and Peaces Studies Program, 1939-45.
Eles certamente sabiam, por volta de 1941-42, que a guerra iria acabar com os
Estados Unidos numa posição de enorme domínio global. A
questão levantada: "Como fazer para organizarmos o mundo?"
Eles redigiram um conceito conhecido como Planeamento de Grande Área
(Grand Area Planning)
, onde a Grande Área é definida como a área que, nos seus
termos, era "estrategicamente necessária para o controle
mundial". A análise geopolítica por trás disto
tentava calcular que áreas do mundo tinham de estar abertas
"abertas" abertas para investimento, abertas para a
repatriação de lucros. Abertas, ou seja, para a
dominação pelos Estados Unidos.
A fim de a economia dos Estados Unidos prosperar sem mudanças internas
(um ponto crucial que se destacava em todas as discussões deste
período), sem qualquer redistribuição do rendimento ou do
poder ou modificação de estruturas, o War and Peace Program
determinou que a área mínima estrategicamente necessária
para o controle do mundo incluía todo o hemisfério ocidental, o
antigo império britânico, que estava em processo de
desmantelamento, e o Extremo Oriente. Aquilo era o mínimo, e o
máximo era o universo.
Em algum lugar entre os dois vinha o conceito da Grande Área e a
tarefa de como organizá-la em termos de instituições
financeiras e planeamento. Esta é a estrutura que permaneceu constante
ao longo do período do pós-guerra.
A libertação das colónias europeias e a derrota das
ambições do Japão no Pacífico permitiu ao capital
dos EUA, apoiado na retaguarda pelo poder militar dos EUA, começar a
penetrar em mercados que eram anteriormente inacessíveis. Enquanto o
Acordo de Bretton Woods proporcionava uma nova estrutura económica para
os poderes imperialistas, operações americanas de força
militar e encobertas foram projectadas por todo o globo com frequência
crescente guerras na Coreia e no Vietname, derrubas de governos no
Irão, Guatemala e Chile, a tentativa de derrubar o governo cubano, e
interferência em numerosas guerras civis na América Central e na
África.
Crucial a toda a concepção da Grande Área era o controle
do Médio Oriente, o qual era encarado como parte do velho Império
Britânico, e absolutamente essencial para o controle económico,
militar e político do globo no mínimo porque era o
repositório da maior parte das reservas provadas de petróleo do
mundo. Os Estados Unidos começaram então uma longa série
de intervenções abertas e encobertas naquela região na
década de 1050, a primeira das quais foi a derrubada em 1953 do governo
democraticamente eleito de Mossadegh, no Irão, o qual havia
nacionalizado companhias petrolíferas estrangeiras. O êxito do
apetite americano ficou claro. Entre 1940 e 1967, as companhias dos EUA
aumentaram o seu controle das reservas de petróleo do Médio
Oriente de 10% para quase 60%, ao passo que as reservas sob controle
britânico diminuíram de 72% em 1940 para 30% em 1967 (H. Magdoff,
Age of Imperialism, pg. 43).
A significativamente muito atrasada integração da Europa
Ocidental, parcialmente devida aos efeitos da estagnação
económica, mostrava que esta não era capaz de tornar-se a
fortaleza contra os interesses dos EUA que os líderes europeus haviam
desejado. Com uma Europa fraca e um Japão incapaz de chegar a ser um
sério desafio aos interesses dos EUA na Ásia, a derrota do
socialismo realmente existente na Europa no princípio da década
de 1990 preparou o caminho para um período renovado de hegemonia
americana, a qual havia parcialmente murchado nas décadas de 1970 e 1980.
Encarado do ponto de vista da evolução histórica do
imperialismo, é claro que o motivo real por trás do presente
impulso de Washington para começar uma guerra com o Iraque não
é qualquer genuína ameaça militar daquele país, mas
ao invés disso o objectivo de demonstrar que os EUA agora estão
preparados para usar o seu poder à vontade. Como Jay Bookman, editor da
página editorial do Atlanta-Journal Constitution, observou naquele
jornal ("The President's Real Goal in Iraq", 29/Set/2002):
A estória oficial sobre o Iraque nunca fez sentido... Esta [a
ameaça de invasão do Iraque] não é sobre armas de
destruição em massa, ou terrorismo, ou Saddam, ou
resoluções da ONU. Esta guerra, se acontecer, é
pretendida para marcar a emergência oficial dos Estados Unidos como um
império global plenamente emplumado, detendo a responsabilidade
única e a autoridade como polícia planetária. Seria a
culminação de um plano de 10 anos ou mais de
construção, executada por aqueles que acreditam que os Estados
Unidos devem agarrar a oportunidade para a dominação global,
mesmo se isto significar que se tornem os "imperialistas americanos"
que os nossos inimigos sempre afirmaram que éramos... Roma não
se inclinava à contenção, ela conquistava. E assim
deveríamos fazer.
A defesa da Europa
As guerras de expansão imperial, por mais injustificáveis que
pudessem ser, sempre exigiram alguma espécie de
justificação. Muitas vezes isto foi cumprido por meio da
doutrina da guerra defensiva. No seu ensaio de 1919, "The Sociology of
Imperialism", Joseph Schumpter escreveu sobre Roma durante os seus anos de
maior expansão,
Não havia qualquer canto do mundo conhecido em que não fosse
alegado algum interesse estar em perigo ou sob ataque real. Se os interesses
não fossem romanos, eram aqueles dos aliados de Roma; e se Roma
não tinha aliados, então aliados seriam inventados. Quando era
absolutamente impossível arranjar um tal interesse justificativo
então era a honra nacional que fora insultada. O combate era sempre
revestido de uma aura de legalidade. Roma estava sempre a ser atacada por
vizinhos malignos, sempre a combater por um espaço para respirar. O
mundo todo estava impregnado por um conjunto de inimigos, e era manifestamente
o dever de Roma defender contra os seus desígnios indubitavelmente
agressivos.
[2]
Naturalmente para muitas (se não a maior parte) das aventuras imperiais
do século XIX não havia muita margem para pretender que os
motivos era defensivos. As Guerras do Ópio foram combatidas não
contra uma China agressiva, mas sim para impor o livre comércio do
ópio. A luta entre as potências europeias para dividir a
África não estava voltada contra uma África beligerante
mas foi racionalizada como "o fardo do homem branco".
A pretensão de que uma infindável série de guerras
defensivas era necessária para contrariar forças malignas
inclinadas à agressão em todos os cantos do mundo conhecido
não morreu com o Império Romano, mas foi parte da racional para a
expansão do Imperialismo Britânico no século XIX e do
Imperialismo Americano no século XX.
[3]
Esta mesma mentalidade
impregna a nova National Security Strategy dos Estados Unidos, recentemente
transmitida do poder executivo ao Congresso (New York Times, 20/Set/2002).
Este documento estabelece três princípios chave da política
estratégica americana: (1) a perpetuação do não
rivalizado domínio militar global dos EUA, de modo que a nenhuma
nação será permitido rivalizar ou ameaçar os
Estados Unidos; (2) a prontidão americana para envolver-se em ataques
militares "preventivos" contra Estados ou forças em qualquer
parte do globo que sejam consideradas uma ameaça à
segurança dos Estados Unidos, suas forças e
instalações no exterior, ou seus amigos ou aliados; e (3) a
imunidade dos cidadãos americanos quanto a processos no Tribunal
Criminal Internacional. Ao comentar esta nova Estratégia de
Segurança Nacional, o senador Edward M. Kennedy declarou que, "A
doutrina da administração é um apelo ao imperialismo
americano no século XXI que nenhuma outra nação poderia ou
deveria aceitar" (07/Out/2002).
A ambição de Washington de estabelecer um império global
muito além de qualquer coisa que mundo já tenha visto só
é comparável ao seu temor paranóico de inumeráveis
inimigos a espreitarem em todos os cantos do globo e prontos a ameaçarem
a segurança da própria "terra natal". Estas
ameaças externas somente servem para justificar, a seus olhos, a
extensão do poder americano. Os inimigos apontados dos Estados Unidos
no presente estão convenientemente localizados no terceiro mundo, onde a
possibilidades para a expansão directa do imperialismo americano
são maiores.
O Iraque, sob a brutal ditadura de Saddam Hussein, é apresentado como
principal estado bandido, o inimigo global número um. Embora o Iraque
ainda não esteja armado com as mais temidas armas de
destruição em massa as armas nucleares é
afirmado pela administração Bush que ele pode obte-las em breve.
Além disso, devido à pretensa loucura absoluta do seu
líder, diz-se que o Iraque é tão irracional a ponto de ser
imune à dissuasão nuclear. Em vista disso, não há
escolha, dizem-nos, senão golpear este regime maligno rapidamente, antes
mesmo de ele obter as armas temidas. O processo de inspecção das
Nações Unidas é em grande parte inútil nesta etapa,
insistiu a administração Bush (embora rejeitado quanto a isto
pelos outros membros do Conselho de Segurança). Saddam Hussein,
é argumentado, sempre descobrirá um meio de esconder suas
principais operações com armas críticas em algum lugar dos
extensos complexos dedicados à sua segurança pessoal, os quais
não serão abertos plenamente aos inspectores da ONU, embora
muitos iraquianos possam concordar com as inspecções
incondicionais. Não há escolha real senão a
"mudança de regime" (instalando um regime fantoche) por meio
do uso da força seja golpe militar ou invasão.
É pela instilação do medo num público americano
já preparado pelos eventos do 11 de Setembro de 2001 que a
administração tem procurado arrastar o país e o mundo para
a guerra. Se um presidente dos EUA e sua administração podem
erguer-se dia após dia e insistir em que os Estados Unidos estão
vulneráveis a um ataque iminente com armas de destruição
em massa (levantando a questão de um ataque surpresa envolvendo uma
"nuvem em cogumelo" mesmo num caso em que a nação em
causa não tem tais capacidades armamentistas), uma grande parte da
população é forçada a acompanhar. A
repetição incessante destas sombrias advertências sob algo
como o grande princípio da mentira, acoplado à câmara de
eco proporcionada pelos mass media, gradualmente vai desgastando o cepticismo
popular. "Se o apoio público é fraco no
início", escreveu o ministro da Defesa Donald Rumsfeld a respeito
do convencimento da população para apoiar uma guerra impopular,
então "a liderança americana deve estar apta a investir o
capital político para organizar o apoio a fim de sustentar o
esforço durante qualquer período de tempo que seja
necessário" (New York Times, 14/Out/2002).
Tão desvairados têm sido os apelos emanados do Gabinete Oval, nos
seus esforços para urdir os menores retalhos de
justificação para uma invasão que até o Director da
CIA George J. Tenet foi obrigado a dar um passo fora e desafiar as falsas
afirmações do presidente. Assim, Tenet contrariou abertamente a
afirmação do presidente de que o Iraque constitui uma
ameaça nuclear imediata aos Estados Unidos, salientado que o Iraque
levaria pelo menos dez anos para produzir suficiente material de cisão
(fissile material)
para uma única arma nuclear. A administração tentou
contornar a fraqueza das suas alegações a respeito de armas
nucleares por meio de mais ênfase sobre as ameaças de armas
químicas e biológicas do Iraque. Num discurso proferido em
Cincinatti a 7 de Outubro o presidente disse que Bagdade pode a qualquer
momento atacar objectivos nos Estados Unidos com estas armas se for ajudado por
redes terroristas quanto à remessa das armas aos seus objectivos.
Também aí a CIA, numa carta ao Congresso assinada por Tenet
naquele mesmo dia, contraditou tal avaliação, argumentando que o
Iraque não mostra sinais de desenvolver armas químicas e
biológicas excepto para propósitos de dissuasão e que se
poderia esperar que se refreasse quanto a patrocinar ataques terroristas no
futuro previsível se os Estados Unidos não o atacassem primeiro.
"Bagdade por agora parece estar traçar um limite curto quanto
à condução de ataques terroristas ou CBW [chemical and
biological weapons] contra os Estados Unidos", lê-se na carta.
Contudo, "se Saddam concluísse que uma ataque conduzido pelos EUA
não podia mais ser detido", continuava a carta, "ele
provavelmente tornar-se-ia muito menos constrangido quanto à
adopção de acções terroristas" (New York
Times, 10/Out/2002).
O cavalo de Tróia
O facto é que o Iraque de hoje provavelmente não possui
capacidades de guerra química e biológica funcionais uma vez que
estas foram efectivamente destruídas durante o processo de
inspecção da ONU em 1991-1998. Suas anteriores capacidades
quanto a isso datam da década de 1980 quando o Iraque sob Saddam Hussein
era um aliado dos Estados Unidos. No período 1985-1989, sobrepondo-se
à Guerra Irão-Iraque de 1980-1988, e após o uso pelo
Iraque em 1984 de armas químicas contra o Irão, companhias
americanas, com a aprovação das administrações de
Reagan e do primeiro Bush, enviaram numerosas culturas biológicas
fatais, incluindo o antrax, para o Iraque. Oito carregamentos de culturas
foram aprovados pelo Departamento de Comércio, as quais foram
posteriormente classificadas pelos Centers for Disease Control como tendo
"significância em guerra biológica". Em conjunto, o
Iraque recebeu pelo menos 72 (setenta e dois) carregamentos de clones, germes e
produtos químicos dos EUA com potencial para guerra química e
biológica nestes anos.
[4]
Os Estados Unidos continuaram a enviar tais
substancias mortais para o Iraque mesmo depois de o Iraque ter confirmadamente
utilizado armas químicas contra os curdos no norte do país no ano
de 1988.
Não é segredo que os Estados Unidos são o país que
tem de longe as maiores capacidades para armas de destruição em
massa e a mais avançada tecnologia nesta área. Não
é surpreendente portanto que Washington seja encarada por grande parte
do mundo como estando a operar com duplos padrões, ao confrontar
nações como o Iraque. Como o antigo chefe dos inspectores de
armas das Nações Unidas no Iraque, Richard Butler, salientou:
"Minha tentativa de ter americanos na discussão sobre duplos
padrões falhou miseravelmente mesmo com pessoas altamente
educadas e comprometidas. Por vezes senti que estava a falar-lhes em marciano,
tão profunda era a sua incapacidade para entender". Na visão
de Butler, "Aquilo que a América não consegue de todo
entender é que suas armas de destruição em massa
constituem um problema da mesma forma que as do Iraque". A visão
de que há "armas boas de destruição em massa e outras
que são más" é falsa. Como inspector de armas da
ONU, Butler encontrava-se confrontado com esta contradição todos
os dias.
Dentre os meus momentos mais duros em Bagdade foi quando os iraquianos pediram
que eu explicasse porque eles deveriam ser perseguidos pelas suas armas de
destruição em massa quando, ali do outro lado da estrada, Israel
não era, apesar de ser conhecido que possuía umas 200 ogivas
nucleares... Confesso, também que hesitei quando ouvi
fulminações americanas, britânicas e francesas contra armas
de destruição em massa, ignorando o facto de que eles são
orgulhosos possuidores de maciças quantidades destas armas, insistindo
sem pedir desculpas em que elas são essenciais para a sua
segurança nacional, e assim permanecerão... Isto é porque
os seres humanos não engolirão tais falsidades (Sydney Morning
Herald, 03/Out/2002).
Longe de se opor consistentemente à proliferação das armas
de destruição em massa, os Estados Unidos, que têm mais
vastos interesses em tais tipos de armas do que qualquer outro país,
frequentemente bloquearam tentativas internacionais para limitá-las.
Exemplo: em Dezembro de 2001, dois meses após os ataques do 11 de
Setembro, o presidente Bush chocou a comunidade internacional ao liquidar o
proposto mecanismo de aplicação e verificação da
Convenção das Armas Biológicas e Tóxicas com a
espúria argumentação de que se as inspecções
de armas biológicas fossem executadas nos Estados Unidos elas poderiam
ameaçar os segredos tecnológicos e os lucros das companhias
americanas de biotecnologia.
Os objectivos de Washington no Iraque nos anos que se seguiram à Guerra
do Golfo foram inconsistentes com o processo de inspecção e
desarmamento da ONU, o qual era destinado a livrar aquele país de armas
de destruição em massa. De acordo com Scott Ritter, a um antigo
inspector de armas da ONU no Iraque em 1991-1998, isto era evidente com a
subversão unilateral dos EUA do processo de inspecção.
[5]
Em 1998, 90% a 95% da capacidade de armas proscritas que se considerava estar
no Iraque fora contada e havia sido destruída em resultado do processo
de inspecção da ONU. O ponto de fricção nas
inspecções relacionou-se com o extenso conjunto de estruturas
dedicado à segurança pessoal de Saddam Hussein e à
segurança do Partido Baath. Um procedimento, conhecido como
"Modalidades para inspecção de sítios
sensíveis", foi portanto acordado pelo qual quatro inspectores
da ONU podiam entrar imediatamente e investigar aquelas
instalações. Ainda assim, no caso da inspecção da
sede do Partido Baath em Bagdade em Dezembro de 1998, os Estados Unidos, ao
invés de simplesmente permitirem que a ONU enviasse os seus quatro
inspectores, actuaram por si próprios, insistindo no envio de oficiais
de inteligência adicionais. O objectivo era penetrar no aparelho de
segurança de Hussein, não relacionado com a
inspecção de armas de destruição em massa e
provocar um incidente internacional. Toda a operação, segundo
Ritter, foi dirigida pelo U.S. National Security Council, o qual deu ordens
directamente a Richard Butler, que era então o chefe da equipe de
inspecção da ONU.
O Iraque protestou contra esta infracção grosseira das
"Modalidades para a inspecção de sítios
sensíveis" e os Estados Unidos usaram isto como o pretexto, segundo
conta Ritter, para uma "crise fabricada", ordenando aos inspectores
da ONU que saíssem e dois dias depois iniciando uma campanha de
bombardeamento de 72 horas, conhecida como Operation Desert Fox, dirigida ao
aparelho de segurança pessoal de Saddam Hussein. A espionagem aos
esconderijos do Partido Baath obtida através das violações
americanas do processo de inspecção de armas da ONU foi utilizada
para guiar os bombardeamentos. Depois disso o Iraque recusou-se a readmitir
inspectores em sítios sensíveis, objectando que estas
inspecções estavam a ser usadas para espionar o governo
iraquiano, e o processo de inspecção da ONU caiu de lado.
Desta forma, Washington efectivamente torpedeou a etapa final do processo de
inspecção da ONU e tornou claro que o seu objectivo real era a
"mudança de regime" ao invés do desarmamento. Utilizou
o processo de inspecção como um cavalo de Tróia nas suas
tentativas para destruir o regime iraquiano.
Hegemonia do petróleo
Os aspectos militares, políticos e económicos estão
entrelaçados em todos os estágios do imperialismo, bem como do
capitalismo em geral. Entretanto, o petróleo é o mais importante
factor individual a governar as ambições americanas no
Médio Oriente. Além do lucro potencial de todo aquele
petróleo para as grandes corporações, o facto de que os
Estados Unidos, com cerca de 2% da reservas conhecidas de petróleo do
mundo utiliza 25% da produção anual mundial dá um impulso
acrescido à tentativa de exercer controle sobre as ofertas. Não
pode haver qualquer dúvida de que os Estados Unidos procuram controlar a
produção de petróleo iraquiana e as segundas maiores
reservas provadas do mundo (a seguir às da Arábia Saudita),
consistentes em mais de 110 mil milhões de barris, ou 12% da oferta
mundial. O Médio Oriente como um todo contem 65% das reservas provadas
de petróleo do mundo (ver mapa). Dos 73 campos descobertos no Iraque
até então, apenas cerca de um terço estão a
produzir actualmente. O U.S. Energy Department considera que também tem
tanto quanto 220 mil milhões de barris em reservas
"prováveis e possíveis", tornando o total estimado
suficiente para cobrir as importações americanas anuais de
petróleo aos seus níveis actuais durante 98 anos. Calcula-se que
o Iraque poderia elevar a sua produção de petróleo de
três milhões para seis milhões de barris por dia dentro de
sete anos após o levantamento das sanções. Números
mais optimistas admitem que a produção de petróleo do
Iraque eleve-se até a 10 milhões de barris por dia.
[6]
O U.S. Department of Energy projecta que a procura global de petróleo
poderia crescer dos actuais 77 milhões de barris por dia para até
120 milhões de barris por dia nos próximos 20 anos, com os
aumentos mais abruptos na procura verificando-se nos Estados Unidos e na China.
No presente, cerca de 24% das importações de petróleo
americanas vem do Médio Oriente e espera-se que estas elevem-se
rapidamente à media que as fontes alternativas sequem. A OPEP sob a
liderança da Arábia Saudita, entretanto, tem mantido as ofertas
de petróleo baixas a fim de manter preços altos. A
produção de petróleo do Médio Oriente estagnou nos
últimos 20 anos, com a capacidade de produção total da
OPEP (apesar das reservas maciças) mais baixa hoje do que em 1980
(Edward L. Morse e James Richard, "The Battle for Energy Dominance",
Foreign Affairs, Março/Abril 2002). Por esta razão a
segurança e disponibilidade das ofertas de petróleo tornou-se uma
questão importante para as corporações americanas e os
interesses estratégicos dos EUA. Como um sábio da extrema
direita e professor em Yale, Donald Kagan, declarou: "Quando temos
problemas económicos, isto está a ser causado por
interrupções na nossa oferta de petróleo" (citado em
Bookman, "The President's Real Goal in Iraq"). As
corporações petrolíferas americanas já estão
a posicionar-se para o dia em que poderão retornar ao Iraque e ao
Irão. Segundo Robert J. Allison Jr, presidente da Anadarko Petroleum
Corporation, "Nós comprámos no Qatar e no Oman para ter um
pé no Médio Oriente... Precisamos posicionar-nos no Médio
Oriente para quando o Iraque e o Irão se tornarem outra vez parte da
família das nações" (New York Times, 22/Out/2002).
No momento o gigante petrolífero francês Total-Fina-Elf tem a
maior posição no Iraque, com direitos exclusivos de negociar para
desenvolver campos nas regiões de Majnoon e Bin Umar. Os maiores
negócios posteriores que são aguardados vão para a ENI da
Itália e para um consórcio russo dirigido pela LukOil. Se as
forças armadas dos EUA entrarem e estabelecerem um governo fantoche ou
uma
missão americana, tudo isto ficará em causa. Pelas companhias de
que país deveríamos então esperar que fizessem a
negociação por novos contratos assim como obter uma fatia
vantajosa do petróleo agora possuído pelos franceses e outras
companhias não-americanas?
Contudo, o acesso directo dos EUA ao petróleo e os lucros das
corporações petrolíferas americanas não são
suficientes por si próprios para explicar completamente os interesses
americanos no Médio Oriente. Os Estados Unidos vêm, de
preferência, toda a região como uma parte crucial da sua
estratégia de poder global. A ocupação do Iraque e a
instalação de um regime sob controle americano deixaria o
Irão (ele próprio uma potência petrolífera e parte
do "Eixo do Mal" de Bush) quase completamente cercado por bases
militares americanas na Ásia Central ao norte, Turquia e Iraque a oeste,
Kuwait, Arábia Saudita, Qatar e Oman a sul, e Paquistão e
Afeganistão a leste. Ficaria mais fácil para os Estados Unidos
protegerem os oleodutos planeados para se estenderem do Mar Cáspio na
Ásia Central através do Afeganistão e do Paquistão
para a Arábia Saudita. Isto daria a Washington uma base militar muito
mais sólida no Médio Oriente, onde já tem dezenas de
milhares de soldados localizados em dez países. Aumentaria a
alavancagem americana em relação à Arábia Saudita e
outros Estados do Médio Oriente. Fortaleceria os esforços da
superpotência global para forçar termos favoráveis à
expansão de Israel, e o desapossar dos palestinos, por todo o
Médio Oriente. Tornaria o crescente poder económico da China,
assim como da Europa e do Japão, cada vez mais dependente de um regime
petrolífero dominado pelos EUA no Médio Oriente para as suas
necessidades energéticas mais vitais. O controle do petróleo
através da força militar traduzir-se-ia então em maior
poder económico, político e militar, numa escala global.
Um mundo unipolar
No princípio da década de 1970, em resultado da perda de terreno
económico para a Europa e para o Japão no decorrer do quarto de
século anterior, e devido ao desligamento do dólar do ouro em
1971, acreditava-se generalizadamente que os Estados Unidos estavam a perder
sua posição como a potência capitalista hegemónica.
Contudo, na década de 1990 o colapso da União Soviética, a
qual deixou os Estados Unidos como a única superpotência, e o
crescimento mais rápido dos EUA do que da Europa e do Japão,
revelou subitamente uma realidade muito diferente. Nos círculos
estratégicos dos EUA ascendeu a ideia de um império americano,
muito além de qualquer coisa já vista na história do
capitalismo ou do mundo, uma verdadeira Pax Americana. Os analistas de
política externa americanos agora referem-se a isto como a
ascensão de um "mundo unipolar". A consolidação
de um tal mundo unipolar numa base permanente emergiu como o objectivo
explícito da administração Bush um ano após os
ataques do 11 de Setembro. Nas palavras de G. John Ikenberry, professor de
geopolítica na Georgetown University e colaborador regular da Foreign
Affairs, publicada pelo Council on Foreign Relations:
A nova grande estratégia [iniciada pela administração
Bush]... começa com um compromisso fundamental de manter um mundo
unipolar no qual os Estados Unidos não têm um competidor à
sua altura. A nenhuma coalizão de grandes potências sem os
Estados Unidos será permitido alcançar hegemonia. Bush fez deste
ponto a peça central da política de segurança americana no
seu discurso durante a cerimonia de distribuição de diplomas em
West Point, em Junho: "A América tem, e pretende manter,
forças militares para além dos desafios e através
disso tornando despropositadas as desestabilizadores corridas armamentistas de
outras eras, e limitando as rivalidades ao comércio e outras
ocupações pacíficas". ... Os Estados Unidos cresceram
mais rapidamente do que os outros grandes Estados durante a década [de
1990], reduziram os gastos militares mais vagarosamente, e controlaram o
investimento no avanço tecnológico das suas forças. Hoje,
contudo, o novo objectivo é tornar estas vantagens permanentes um
facto consumado que levará a que outros Estados nem mesmo tentem
alcançar-nos. Alguns pensadores descreveram a estratégia como
uma "escapada"
("breakout")
, em que os Estados Unidos movem-se tão rapidamente no desenvolvimento
de vantagens tecnológicas (em robótica, lasers, satélites,
munições de precisão,. etc) que nenhum Estado ou
coalizão poderia em tempo algum desafiá-lo como líder
global, protector e polícia
(enforcer)
("America's Imperial Ambition", Foreign Affairs, Outubro 2002).
Tal sanha pelo domínio imperial ilimitado está destinada ao
fracasso
no longo prazo. O imperialismo sob o capitalismo tem tendências
centrífugas, bem como centrípetas. O domínio militar
não pode ser mantido sem manter o domínio económico
também, e este último é inerentemente instável sob
o capitalismo. A realidade imediata, entretanto, é que o Estados Unidos
estão a mover-se muito rapidamente para aumentar o seu controle a
expensas tanto de rivais potenciais como do Sul global. O resultado
provável é uma intensificação da
exploração numa escala mundial, juntamente com um ressurgimento
de rivalidades imperialistas uma vez que outros países
capitalistas naturalmente procurarão impedir os Estados Unidos de terem
êxito na sua estratégia de "escapada".
O objectivo de um império americano em expansão é encarado
pela administração não só como uma
estratégia para estabelecer os Estados Unidos permanentemente como a
potência suprema do mundo mas também como uma saída para a
crise económica da nação que no momento não mostra
indícios de se afastar. A administração acredita
claramente que pode estimular a economia através dos gastos militares e
do aumento das exportações militares. Mas gastos militares
elevados associados com uma guerra também podem contribuir para
problemas económicos, pois sem dúvida cortará mais uma vez
nas despesas com programas sociais que não só ajudam o povo como
também criam a procura por bens de consumo que os empresários
precisam desesperadamente para estimular o crescimento económico.
Historicamente, tentativas de usar a expansão imperial como um meio de
contornar mudanças económicas e sociais necessárias no
plano interno quase sempre fracassaram.
Finalmente, aquilo que é mais importante entender é que a nova
doutrina americana do domínio mundial é um produto não de
uma administração particular (muito menos de alguma cabala dentro
da administração), e sim o culminar de desenvolvimentos da fase
mais recente do imperialismo. Reverter o impulso para aumentar o
império não será fácil. Mas a vontade do povo pode
desempenhar um papel crítico sobre quão longe Washington
será capaz de avançar nas suas ambições imperiais.
Por esta razão, a mobilização da população
tanto nos Estados Unidos como no estrangeiro numa luta militante contra a
guerra e o imperialismo é da máxima importância para o
futuro da humanidade.
NOTAS
[1] Recentemente a administração Bush também disse que a
"mudança de regime" poderia ser estendida a fim de incluir um
governo iraquiano sob Saddam Hussein que cooperasse plenamente com
inspecções da ONU e o desarmamento, em termos aceitáveis
para os Estados Unidos. Mas a administração declarou que isto
era altamente improvável, e sua posição a respeito pode
portanto ser interpretada como parte de uma estratégia
diplomática-legal para reunir apoios para a sua ameaça de
invasão, no caso de o Iraque ser declarado como não-cumpridor no
processo de inspecção da ONU.
[2] Joseph Schumpeter, Imperialism and Social Classes, editado e apresentado
por Paul M. Sweezy (New York: Augustus M. Kelley, 1951), p. 66
[3] Naturalmente para muitas (se não a maior parte) das aventuras
imperiais do século XIX nunca houve muito espaço para pretender
que os motivos fossem defensivos. As Guerras do Ópio foram combatidas
não contra uma China agressiva, mas sim para impor o livre
comércio do ópio. A luta entre as potências europeias para
dividir a África não foi dirigida contra uma África
beligerante, mas foi racionalizada como "o fardo do homem branco".
[4] Senate Committee on Banking, Housing and Urban Affairs, United States
Dual-Use Exports to Iraq and their Impact on the Health of the Persian Gulf War
Veterans, 103rd Congress, 2nd sess., May 25, 1994, pp. 26476; Buffalo
News, September 23, 2002.
[5] Ver William Rivers Pitt com Scott Ritter, War on Iraq (New York: Context
Books, 2002); Newsday, July 30, 2002; The Guardian, October 7, 2002.
[6]
http://www.eia.doe.gov/emeu/cabs/iraq.html
; Middle East Report, Fall 2002;San Francisco Chronicle, September 29, 2002.
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O original deste artigo encontra-se em
http://www.monthlyreview.org/1202editor.htm
Tradução de J. Figueiredo
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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