As ambições imperiais dos EUA e o Iraque

Pelos editores da Monthly Review

Médio Oriente Oficialmente a actual política de Washington em relação ao Iraque é provocar uma "mudança de regime" — tanto através de um golpe militar como por meio de uma invasão dos EUA, justificada como um "ataque preventivo" contra um Estado bandido que tende a desenvolver e preparar armas de destruição em massa [1] . Mas uma invasão americana, se acontecer, não limitaria seus objectivos à mera mudança do regime em Bagdade. O objectivo mais vasto seria nada menos do que a projecção global do poder dos EUA através da afirmação do domínio americano por todo o Médio Oriente. O que o mundo está agora a enfrentar é portanto a perspectiva de um grande novo desenvolvimento na história do imperialismo.

O imperialismo de hoje já não é definitivamente o mesmo daquele do fim do século XIX. Nos dias primitivos da era moderna do imperialismo, várias potências — nomeadamente a Alemanha, o Japão e os Estados Unidos — vinham ao palco para desafiar a hegemonia britânica em várias partes do globo. Havia um certo número de características notáveis do imperialismo durante este período: a luta entre as potências europeias para dividir a África; intensa competição na Europa pelos mercados uns dos outros; o crescente desafio alemão a Londres como o núcleo do mercado internacional de dinheiro. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos estavam tentando entrar na competição por mercados na Europa e estavam a desenvolver suas próprias colónias e esferas de influência na América Latina e na Ásia. As causas primárias da Primeira Guerra Mundial incluíram tanto a feroz competição entre as grandes potências por colónias e mercados como a tentativa alemã de eliminar a Grã-Bretanha como o centro dos mercados internacionais de dinheiro e de mercadorias.

O período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial representou uma segunda fase do imperialismo moderno. O Tratado de Versalhes foi um processo de os vencedores dividirem os ganhos, com um objectivo unitário global — a derrota do Bolchevismo. Thorstein Veblen escreveu que varrer o Bolchevismo do mapa não era simplesmente uma cláusula secreta do Tratado de Versalhes, era simplesmente a essência ("parchment") do Tratado (Essays in Our Changing Order, 1934, pg. 464) . Contudo, o plano para isolar e deitar abaixo a União Soviética foi interrompido pela Grande Depressão e pela Segunda Guerra Mundial, a qual desenvolveu-se no âmbito das lutas das potências do eixo, Alemanha, Itália e Japão, para obter espaços mais vastos dentro do sistema mundial.

Uma terceira fase do imperialismo emergiu após a Segunda Guerra Mundial. Durante a guerra, os Estados Unidos, como o novo Estado hegemónico no interior do mundo capitalista, havia desenvolvido um plano para ganhar o controle do que considerou serem os centros estratégicos da economia mundial — uma ambição que então só era limitada pela existência da esfera de influência soviética. Escrevendo neste espaço em Novembro de 1981, Noam Chomsky descreveu a formação da estratégia geopolítica americana neste período como se segue:

A estrutura geral de pensamento dentro da qual a política externa americana evoluiu desde a Segunda Guerra Mundial é melhor descrita nos documentos de planeamento produzidos durante aquela guerra pelos planeadores do Departamento de Estado e pelo Council for Foreign Relations que reúnem um período de seis anos no War and Peaces Studies Program, 1939-45. Eles certamente sabiam, por volta de 1941-42, que a guerra iria acabar com os Estados Unidos numa posição de enorme domínio global. A questão levantada: "Como fazer para organizarmos o mundo?"

Eles redigiram um conceito conhecido como Planeamento de Grande Área (Grand Area Planning) , onde a Grande Área é definida como a área que, nos seus termos, era "estrategicamente necessária para o controle mundial". A análise geopolítica por trás disto tentava calcular que áreas do mundo tinham de estar abertas "abertas" — abertas para investimento, abertas para a repatriação de lucros. Abertas, ou seja, para a dominação pelos Estados Unidos.

A fim de a economia dos Estados Unidos prosperar sem mudanças internas (um ponto crucial que se destacava em todas as discussões deste período), sem qualquer redistribuição do rendimento ou do poder ou modificação de estruturas, o War and Peace Program determinou que a área mínima estrategicamente necessária para o controle do mundo incluía todo o hemisfério ocidental, o antigo império britânico, que estava em processo de desmantelamento, e o Extremo Oriente. Aquilo era o mínimo, e o máximo era o universo.

Em algum lugar entre os dois vinha o conceito da Grande Área — e a tarefa de como organizá-la em termos de instituições financeiras e planeamento. Esta é a estrutura que permaneceu constante ao longo do período do pós-guerra.

A libertação das colónias europeias e a derrota das ambições do Japão no Pacífico permitiu ao capital dos EUA, apoiado na retaguarda pelo poder militar dos EUA, começar a penetrar em mercados que eram anteriormente inacessíveis. Enquanto o Acordo de Bretton Woods proporcionava uma nova estrutura económica para os poderes imperialistas, operações americanas de força militar e encobertas foram projectadas por todo o globo com frequência crescente — guerras na Coreia e no Vietname, derrubas de governos no Irão, Guatemala e Chile, a tentativa de derrubar o governo cubano, e interferência em numerosas guerras civis na América Central e na África.

Crucial a toda a concepção da Grande Área era o controle do Médio Oriente, o qual era encarado como parte do velho Império Britânico, e absolutamente essencial para o controle económico, militar e político do globo — no mínimo porque era o repositório da maior parte das reservas provadas de petróleo do mundo. Os Estados Unidos começaram então uma longa série de intervenções abertas e encobertas naquela região na década de 1050, a primeira das quais foi a derrubada em 1953 do governo democraticamente eleito de Mossadegh, no Irão, o qual havia nacionalizado companhias petrolíferas estrangeiras. O êxito do apetite americano ficou claro. Entre 1940 e 1967, as companhias dos EUA aumentaram o seu controle das reservas de petróleo do Médio Oriente de 10% para quase 60%, ao passo que as reservas sob controle britânico diminuíram de 72% em 1940 para 30% em 1967 (H. Magdoff, Age of Imperialism, pg. 43).

A significativamente muito atrasada integração da Europa Ocidental, parcialmente devida aos efeitos da estagnação económica, mostrava que esta não era capaz de tornar-se a fortaleza contra os interesses dos EUA que os líderes europeus haviam desejado. Com uma Europa fraca e um Japão incapaz de chegar a ser um sério desafio aos interesses dos EUA na Ásia, a derrota do socialismo realmente existente na Europa no princípio da década de 1990 preparou o caminho para um período renovado de hegemonia americana, a qual havia parcialmente murchado nas décadas de 1970 e 1980.

Encarado do ponto de vista da evolução histórica do imperialismo, é claro que o motivo real por trás do presente impulso de Washington para começar uma guerra com o Iraque não é qualquer genuína ameaça militar daquele país, mas ao invés disso o objectivo de demonstrar que os EUA agora estão preparados para usar o seu poder à vontade. Como Jay Bookman, editor da página editorial do Atlanta-Journal Constitution, observou naquele jornal ("The President's Real Goal in Iraq", 29/Set/2002):

A estória oficial sobre o Iraque nunca fez sentido... Esta [a ameaça de invasão do Iraque] não é sobre armas de destruição em massa, ou terrorismo, ou Saddam, ou resoluções da ONU. Esta guerra, se acontecer, é pretendida para marcar a emergência oficial dos Estados Unidos como um império global plenamente emplumado, detendo a responsabilidade única e a autoridade como polícia planetária. Seria a culminação de um plano de 10 anos ou mais de construção, executada por aqueles que acreditam que os Estados Unidos devem agarrar a oportunidade para a dominação global, mesmo se isto significar que se tornem os "imperialistas americanos" que os nossos inimigos sempre afirmaram que éramos... Roma não se inclinava à contenção, ela conquistava. E assim deveríamos fazer.

A defesa da Europa

As guerras de expansão imperial, por mais injustificáveis que pudessem ser, sempre exigiram alguma espécie de justificação. Muitas vezes isto foi cumprido por meio da doutrina da guerra defensiva. No seu ensaio de 1919, "The Sociology of Imperialism", Joseph Schumpter escreveu sobre Roma durante os seus anos de maior expansão,

Não havia qualquer canto do mundo conhecido em que não fosse alegado algum interesse estar em perigo ou sob ataque real. Se os interesses não fossem romanos, eram aqueles dos aliados de Roma; e se Roma não tinha aliados, então aliados seriam inventados. Quando era absolutamente impossível arranjar um tal interesse justificativo — então era a honra nacional que fora insultada. O combate era sempre revestido de uma aura de legalidade. Roma estava sempre a ser atacada por vizinhos malignos, sempre a combater por um espaço para respirar. O mundo todo estava impregnado por um conjunto de inimigos, e era manifestamente o dever de Roma defender contra os seus desígnios indubitavelmente agressivos. [2]


Naturalmente para muitas (se não a maior parte) das aventuras imperiais do século XIX não havia muita margem para pretender que os motivos era defensivos. As Guerras do Ópio foram combatidas não contra uma China agressiva, mas sim para impor o livre comércio do ópio. A luta entre as potências europeias para dividir a África não estava voltada contra uma África beligerante mas foi racionalizada como "o fardo do homem branco".

A pretensão de que uma infindável série de guerras defensivas era necessária para contrariar forças malignas inclinadas à agressão em todos os cantos do mundo conhecido não morreu com o Império Romano, mas foi parte da racional para a expansão do Imperialismo Britânico no século XIX e do Imperialismo Americano no século XX. [3] Esta mesma mentalidade impregna a nova National Security Strategy dos Estados Unidos, recentemente transmitida do poder executivo ao Congresso (New York Times, 20/Set/2002). Este documento estabelece três princípios chave da política estratégica americana: (1) a perpetuação do não rivalizado domínio militar global dos EUA, de modo que a nenhuma nação será permitido rivalizar ou ameaçar os Estados Unidos; (2) a prontidão americana para envolver-se em ataques militares "preventivos" contra Estados ou forças em qualquer parte do globo que sejam consideradas uma ameaça à segurança dos Estados Unidos, suas forças e instalações no exterior, ou seus amigos ou aliados; e (3) a imunidade dos cidadãos americanos quanto a processos no Tribunal Criminal Internacional. Ao comentar esta nova Estratégia de Segurança Nacional, o senador Edward M. Kennedy declarou que, "A doutrina da administração é um apelo ao imperialismo americano no século XXI que nenhuma outra nação poderia ou deveria aceitar" (07/Out/2002).

A ambição de Washington de estabelecer um império global muito além de qualquer coisa que mundo já tenha visto só é comparável ao seu temor paranóico de inumeráveis inimigos a espreitarem em todos os cantos do globo e prontos a ameaçarem a segurança da própria "terra natal". Estas ameaças externas somente servem para justificar, a seus olhos, a extensão do poder americano. Os inimigos apontados dos Estados Unidos no presente estão convenientemente localizados no terceiro mundo, onde a possibilidades para a expansão directa do imperialismo americano são maiores.

O Iraque, sob a brutal ditadura de Saddam Hussein, é apresentado como principal estado bandido, o inimigo global número um. Embora o Iraque ainda não esteja armado com as mais temidas armas de destruição em massa — as armas nucleares — é afirmado pela administração Bush que ele pode obte-las em breve. Além disso, devido à pretensa loucura absoluta do seu líder, diz-se que o Iraque é tão irracional a ponto de ser imune à dissuasão nuclear. Em vista disso, não há escolha, dizem-nos, senão golpear este regime maligno rapidamente, antes mesmo de ele obter as armas temidas. O processo de inspecção das Nações Unidas é em grande parte inútil nesta etapa, insistiu a administração Bush (embora rejeitado quanto a isto pelos outros membros do Conselho de Segurança). Saddam Hussein, é argumentado, sempre descobrirá um meio de esconder suas principais operações com armas críticas em algum lugar dos extensos complexos dedicados à sua segurança pessoal, os quais não serão abertos plenamente aos inspectores da ONU, embora muitos iraquianos possam concordar com as inspecções incondicionais. Não há escolha real senão a "mudança de regime" (instalando um regime fantoche) por meio do uso da força — seja golpe militar ou invasão.

É pela instilação do medo num público americano já preparado pelos eventos do 11 de Setembro de 2001 que a administração tem procurado arrastar o país e o mundo para a guerra. Se um presidente dos EUA e sua administração podem erguer-se dia após dia e insistir em que os Estados Unidos estão vulneráveis a um ataque iminente com armas de destruição em massa (levantando a questão de um ataque surpresa envolvendo uma "nuvem em cogumelo" mesmo num caso em que a nação em causa não tem tais capacidades armamentistas), uma grande parte da população é forçada a acompanhar. A repetição incessante destas sombrias advertências sob algo como o grande princípio da mentira, acoplado à câmara de eco proporcionada pelos mass media, gradualmente vai desgastando o cepticismo popular. "Se o apoio público é fraco no início", escreveu o ministro da Defesa Donald Rumsfeld a respeito do convencimento da população para apoiar uma guerra impopular, então "a liderança americana deve estar apta a investir o capital político para organizar o apoio a fim de sustentar o esforço durante qualquer período de tempo que seja necessário" (New York Times, 14/Out/2002).

Tão desvairados têm sido os apelos emanados do Gabinete Oval, nos seus esforços para urdir os menores retalhos de justificação para uma invasão que até o Director da CIA George J. Tenet foi obrigado a dar um passo fora e desafiar as falsas afirmações do presidente. Assim, Tenet contrariou abertamente a afirmação do presidente de que o Iraque constitui uma ameaça nuclear imediata aos Estados Unidos, salientado que o Iraque levaria pelo menos dez anos para produzir suficiente material de cisão (fissile material) para uma única arma nuclear. A administração tentou contornar a fraqueza das suas alegações a respeito de armas nucleares por meio de mais ênfase sobre as ameaças de armas químicas e biológicas do Iraque. Num discurso proferido em Cincinatti a 7 de Outubro o presidente disse que Bagdade pode a qualquer momento atacar objectivos nos Estados Unidos com estas armas se for ajudado por redes terroristas quanto à remessa das armas aos seus objectivos. Também aí a CIA, numa carta ao Congresso assinada por Tenet naquele mesmo dia, contraditou tal avaliação, argumentando que o Iraque não mostra sinais de desenvolver armas químicas e biológicas excepto para propósitos de dissuasão e que se poderia esperar que se refreasse quanto a patrocinar ataques terroristas no futuro previsível se os Estados Unidos não o atacassem primeiro. "Bagdade por agora parece estar traçar um limite curto quanto à condução de ataques terroristas ou CBW [chemical and biological weapons] contra os Estados Unidos", lê-se na carta. Contudo, "se Saddam concluísse que uma ataque conduzido pelos EUA não podia mais ser detido", continuava a carta, "ele provavelmente tornar-se-ia muito menos constrangido quanto à adopção de acções terroristas" (New York Times, 10/Out/2002).

O cavalo de Tróia

O facto é que o Iraque de hoje provavelmente não possui capacidades de guerra química e biológica funcionais uma vez que estas foram efectivamente destruídas durante o processo de inspecção da ONU em 1991-1998. Suas anteriores capacidades quanto a isso datam da década de 1980 quando o Iraque sob Saddam Hussein era um aliado dos Estados Unidos. No período 1985-1989, sobrepondo-se à Guerra Irão-Iraque de 1980-1988, e após o uso pelo Iraque em 1984 de armas químicas contra o Irão, companhias americanas, com a aprovação das administrações de Reagan e do primeiro Bush, enviaram numerosas culturas biológicas fatais, incluindo o antrax, para o Iraque. Oito carregamentos de culturas foram aprovados pelo Departamento de Comércio, as quais foram posteriormente classificadas pelos Centers for Disease Control como tendo "significância em guerra biológica". Em conjunto, o Iraque recebeu pelo menos 72 (setenta e dois) carregamentos de clones, germes e produtos químicos dos EUA com potencial para guerra química e biológica nestes anos. [4] Os Estados Unidos continuaram a enviar tais substancias mortais para o Iraque mesmo depois de o Iraque ter confirmadamente utilizado armas químicas contra os curdos no norte do país no ano de 1988.

Não é segredo que os Estados Unidos são o país que tem de longe as maiores capacidades para armas de destruição em massa e a mais avançada tecnologia nesta área. Não é surpreendente portanto que Washington seja encarada por grande parte do mundo como estando a operar com duplos padrões, ao confrontar nações como o Iraque. Como o antigo chefe dos inspectores de armas das Nações Unidas no Iraque, Richard Butler, salientou: "Minha tentativa de ter americanos na discussão sobre duplos padrões falhou miseravelmente — mesmo com pessoas altamente educadas e comprometidas. Por vezes senti que estava a falar-lhes em marciano, tão profunda era a sua incapacidade para entender". Na visão de Butler, "Aquilo que a América não consegue de todo entender é que suas armas de destruição em massa constituem um problema da mesma forma que as do Iraque". A visão de que há "armas boas de destruição em massa e outras que são más" é falsa. Como inspector de armas da ONU, Butler encontrava-se confrontado com esta contradição todos os dias.

Dentre os meus momentos mais duros em Bagdade foi quando os iraquianos pediram que eu explicasse porque eles deveriam ser perseguidos pelas suas armas de destruição em massa quando, ali do outro lado da estrada, Israel não era, apesar de ser conhecido que possuía umas 200 ogivas nucleares... Confesso, também que hesitei quando ouvi fulminações americanas, britânicas e francesas contra armas de destruição em massa, ignorando o facto de que eles são orgulhosos possuidores de maciças quantidades destas armas, insistindo sem pedir desculpas em que elas são essenciais para a sua segurança nacional, e assim permanecerão... Isto é porque os seres humanos não engolirão tais falsidades (Sydney Morning Herald, 03/Out/2002).


Longe de se opor consistentemente à proliferação das armas de destruição em massa, os Estados Unidos, que têm mais vastos interesses em tais tipos de armas do que qualquer outro país, frequentemente bloquearam tentativas internacionais para limitá-las. Exemplo: em Dezembro de 2001, dois meses após os ataques do 11 de Setembro, o presidente Bush chocou a comunidade internacional ao liquidar o proposto mecanismo de aplicação e verificação da Convenção das Armas Biológicas e Tóxicas com a espúria argumentação de que se as inspecções de armas biológicas fossem executadas nos Estados Unidos elas poderiam ameaçar os segredos tecnológicos e os lucros das companhias americanas de biotecnologia.

Os objectivos de Washington no Iraque nos anos que se seguiram à Guerra do Golfo foram inconsistentes com o processo de inspecção e desarmamento da ONU, o qual era destinado a livrar aquele país de armas de destruição em massa. De acordo com Scott Ritter, a um antigo inspector de armas da ONU no Iraque em 1991-1998, isto era evidente com a subversão unilateral dos EUA do processo de inspecção. [5] Em 1998, 90% a 95% da capacidade de armas proscritas que se considerava estar no Iraque fora contada e havia sido destruída em resultado do processo de inspecção da ONU. O ponto de fricção nas inspecções relacionou-se com o extenso conjunto de estruturas dedicado à segurança pessoal de Saddam Hussein e à segurança do Partido Baath. Um procedimento, conhecido como "Modalidades para inspecção de sítios sensíveis", foi portanto acordado pelo qual quatro inspectores da ONU podiam entrar imediatamente e investigar aquelas instalações. Ainda assim, no caso da inspecção da sede do Partido Baath em Bagdade em Dezembro de 1998, os Estados Unidos, ao invés de simplesmente permitirem que a ONU enviasse os seus quatro inspectores, actuaram por si próprios, insistindo no envio de oficiais de inteligência adicionais. O objectivo era penetrar no aparelho de segurança de Hussein, não relacionado com a inspecção de armas de destruição em massa — e provocar um incidente internacional. Toda a operação, segundo Ritter, foi dirigida pelo U.S. National Security Council, o qual deu ordens directamente a Richard Butler, que era então o chefe da equipe de inspecção da ONU.

O Iraque protestou contra esta infracção grosseira das "Modalidades para a inspecção de sítios sensíveis" e os Estados Unidos usaram isto como o pretexto, segundo conta Ritter, para uma "crise fabricada", ordenando aos inspectores da ONU que saíssem e dois dias depois iniciando uma campanha de bombardeamento de 72 horas, conhecida como Operation Desert Fox, dirigida ao aparelho de segurança pessoal de Saddam Hussein. A espionagem aos esconderijos do Partido Baath obtida através das violações americanas do processo de inspecção de armas da ONU foi utilizada para guiar os bombardeamentos. Depois disso o Iraque recusou-se a readmitir inspectores em sítios sensíveis, objectando que estas inspecções estavam a ser usadas para espionar o governo iraquiano, e o processo de inspecção da ONU caiu de lado.

Desta forma, Washington efectivamente torpedeou a etapa final do processo de inspecção da ONU e tornou claro que o seu objectivo real era a "mudança de regime" ao invés do desarmamento. Utilizou o processo de inspecção como um cavalo de Tróia nas suas tentativas para destruir o regime iraquiano.

Hegemonia do petróleo

Os aspectos militares, políticos e económicos estão entrelaçados em todos os estágios do imperialismo, bem como do capitalismo em geral. Entretanto, o petróleo é o mais importante factor individual a governar as ambições americanas no Médio Oriente. Além do lucro potencial de todo aquele petróleo para as grandes corporações, o facto de que os Estados Unidos, com cerca de 2% da reservas conhecidas de petróleo do mundo utiliza 25% da produção anual mundial dá um impulso acrescido à tentativa de exercer controle sobre as ofertas. Não pode haver qualquer dúvida de que os Estados Unidos procuram controlar a produção de petróleo iraquiana e as segundas maiores reservas provadas do mundo (a seguir às da Arábia Saudita), consistentes em mais de 110 mil milhões de barris, ou 12% da oferta mundial. O Médio Oriente como um todo contem 65% das reservas provadas de petróleo do mundo (ver mapa). Dos 73 campos descobertos no Iraque até então, apenas cerca de um terço estão a produzir actualmente. O U.S. Energy Department considera que também tem tanto quanto 220 mil milhões de barris em reservas "prováveis e possíveis", tornando o total estimado suficiente para cobrir as importações americanas anuais de petróleo aos seus níveis actuais durante 98 anos. Calcula-se que o Iraque poderia elevar a sua produção de petróleo de três milhões para seis milhões de barris por dia dentro de sete anos após o levantamento das sanções. Números mais optimistas admitem que a produção de petróleo do Iraque eleve-se até a 10 milhões de barris por dia. [6]

O U.S. Department of Energy projecta que a procura global de petróleo poderia crescer dos actuais 77 milhões de barris por dia para até 120 milhões de barris por dia nos próximos 20 anos, com os aumentos mais abruptos na procura verificando-se nos Estados Unidos e na China. No presente, cerca de 24% das importações de petróleo americanas vem do Médio Oriente e espera-se que estas elevem-se rapidamente à media que as fontes alternativas sequem. A OPEP sob a liderança da Arábia Saudita, entretanto, tem mantido as ofertas de petróleo baixas a fim de manter preços altos. A produção de petróleo do Médio Oriente estagnou nos últimos 20 anos, com a capacidade de produção total da OPEP (apesar das reservas maciças) mais baixa hoje do que em 1980 (Edward L. Morse e James Richard, "The Battle for Energy Dominance", Foreign Affairs, Março/Abril 2002). Por esta razão a segurança e disponibilidade das ofertas de petróleo tornou-se uma questão importante para as corporações americanas e os interesses estratégicos dos EUA. Como um sábio da extrema direita e professor em Yale, Donald Kagan, declarou: "Quando temos problemas económicos, isto está a ser causado por interrupções na nossa oferta de petróleo" (citado em Bookman, "The President's Real Goal in Iraq"). As corporações petrolíferas americanas já estão a posicionar-se para o dia em que poderão retornar ao Iraque e ao Irão. Segundo Robert J. Allison Jr, presidente da Anadarko Petroleum Corporation, "Nós comprámos no Qatar e no Oman para ter um pé no Médio Oriente... Precisamos posicionar-nos no Médio Oriente para quando o Iraque e o Irão se tornarem outra vez parte da família das nações" (New York Times, 22/Out/2002).

No momento o gigante petrolífero francês Total-Fina-Elf tem a maior posição no Iraque, com direitos exclusivos de negociar para desenvolver campos nas regiões de Majnoon e Bin Umar. Os maiores negócios posteriores que são aguardados vão para a ENI da Itália e para um consórcio russo dirigido pela LukOil. Se as forças armadas dos EUA entrarem e estabelecerem um governo fantoche ou uma missão americana, tudo isto ficará em causa. Pelas companhias de que país deveríamos então esperar que fizessem a negociação por novos contratos — assim como obter uma fatia vantajosa do petróleo agora possuído pelos franceses e outras companhias não-americanas?

Contudo, o acesso directo dos EUA ao petróleo e os lucros das corporações petrolíferas americanas não são suficientes por si próprios para explicar completamente os interesses americanos no Médio Oriente. Os Estados Unidos vêm, de preferência, toda a região como uma parte crucial da sua estratégia de poder global. A ocupação do Iraque e a instalação de um regime sob controle americano deixaria o Irão (ele próprio uma potência petrolífera e parte do "Eixo do Mal" de Bush) quase completamente cercado por bases militares americanas na Ásia Central ao norte, Turquia e Iraque a oeste, Kuwait, Arábia Saudita, Qatar e Oman a sul, e Paquistão e Afeganistão a leste. Ficaria mais fácil para os Estados Unidos protegerem os oleodutos planeados para se estenderem do Mar Cáspio na Ásia Central através do Afeganistão e do Paquistão para a Arábia Saudita. Isto daria a Washington uma base militar muito mais sólida no Médio Oriente, onde já tem dezenas de milhares de soldados localizados em dez países. Aumentaria a alavancagem americana em relação à Arábia Saudita e outros Estados do Médio Oriente. Fortaleceria os esforços da superpotência global para forçar termos favoráveis à expansão de Israel, e o desapossar dos palestinos, por todo o Médio Oriente. Tornaria o crescente poder económico da China, assim como da Europa e do Japão, cada vez mais dependente de um regime petrolífero dominado pelos EUA no Médio Oriente para as suas necessidades energéticas mais vitais. O controle do petróleo através da força militar traduzir-se-ia então em maior poder económico, político e militar, numa escala global.

Um mundo unipolar

No princípio da década de 1970, em resultado da perda de terreno económico para a Europa e para o Japão no decorrer do quarto de século anterior, e devido ao desligamento do dólar do ouro em 1971, acreditava-se generalizadamente que os Estados Unidos estavam a perder sua posição como a potência capitalista hegemónica. Contudo, na década de 1990 o colapso da União Soviética, a qual deixou os Estados Unidos como a única superpotência, e o crescimento mais rápido dos EUA do que da Europa e do Japão, revelou subitamente uma realidade muito diferente. Nos círculos estratégicos dos EUA ascendeu a ideia de um império americano, muito além de qualquer coisa já vista na história do capitalismo ou do mundo, uma verdadeira Pax Americana. Os analistas de política externa americanos agora referem-se a isto como a ascensão de um "mundo unipolar". A consolidação de um tal mundo unipolar numa base permanente emergiu como o objectivo explícito da administração Bush um ano após os ataques do 11 de Setembro. Nas palavras de G. John Ikenberry, professor de geopolítica na Georgetown University e colaborador regular da Foreign Affairs, publicada pelo Council on Foreign Relations:

A nova grande estratégia [iniciada pela administração Bush]... começa com um compromisso fundamental de manter um mundo unipolar no qual os Estados Unidos não têm um competidor à sua altura. A nenhuma coalizão de grandes potências sem os Estados Unidos será permitido alcançar hegemonia. Bush fez deste ponto a peça central da política de segurança americana no seu discurso durante a cerimonia de distribuição de diplomas em West Point, em Junho: "A América tem, e pretende manter, forças militares para além dos desafios — e através disso tornando despropositadas as desestabilizadores corridas armamentistas de outras eras, e limitando as rivalidades ao comércio e outras ocupações pacíficas". ... Os Estados Unidos cresceram mais rapidamente do que os outros grandes Estados durante a década [de 1990], reduziram os gastos militares mais vagarosamente, e controlaram o investimento no avanço tecnológico das suas forças. Hoje, contudo, o novo objectivo é tornar estas vantagens permanentes — um facto consumado que levará a que outros Estados nem mesmo tentem alcançar-nos. Alguns pensadores descreveram a estratégia como uma "escapada" ("breakout") , em que os Estados Unidos movem-se tão rapidamente no desenvolvimento de vantagens tecnológicas (em robótica, lasers, satélites, munições de precisão,. etc) que nenhum Estado ou coalizão poderia em tempo algum desafiá-lo como líder global, protector e polícia (enforcer) ("America's Imperial Ambition", Foreign Affairs, Outubro 2002).

Tal sanha pelo domínio imperial ilimitado está destinada ao fracasso no longo prazo. O imperialismo sob o capitalismo tem tendências centrífugas, bem como centrípetas. O domínio militar não pode ser mantido sem manter o domínio económico também, e este último é inerentemente instável sob o capitalismo. A realidade imediata, entretanto, é que o Estados Unidos estão a mover-se muito rapidamente para aumentar o seu controle a expensas tanto de rivais potenciais como do Sul global. O resultado provável é uma intensificação da exploração numa escala mundial, juntamente com um ressurgimento de rivalidades imperialistas — uma vez que outros países capitalistas naturalmente procurarão impedir os Estados Unidos de terem êxito na sua estratégia de "escapada".

O objectivo de um império americano em expansão é encarado pela administração não só como uma estratégia para estabelecer os Estados Unidos permanentemente como a potência suprema do mundo mas também como uma saída para a crise económica da nação que no momento não mostra indícios de se afastar. A administração acredita claramente que pode estimular a economia através dos gastos militares e do aumento das exportações militares. Mas gastos militares elevados associados com uma guerra também podem contribuir para problemas económicos, pois sem dúvida cortará mais uma vez nas despesas com programas sociais que não só ajudam o povo como também criam a procura por bens de consumo que os empresários precisam desesperadamente para estimular o crescimento económico. Historicamente, tentativas de usar a expansão imperial como um meio de contornar mudanças económicas e sociais necessárias no plano interno quase sempre fracassaram.

Finalmente, aquilo que é mais importante entender é que a nova doutrina americana do domínio mundial é um produto não de uma administração particular (muito menos de alguma cabala dentro da administração), e sim o culminar de desenvolvimentos da fase mais recente do imperialismo. Reverter o impulso para aumentar o império não será fácil. Mas a vontade do povo pode desempenhar um papel crítico sobre quão longe Washington será capaz de avançar nas suas ambições imperiais. Por esta razão, a mobilização da população tanto nos Estados Unidos como no estrangeiro numa luta militante contra a guerra e o imperialismo é da máxima importância para o futuro da humanidade.


NOTAS

[1] Recentemente a administração Bush também disse que a "mudança de regime" poderia ser estendida a fim de incluir um governo iraquiano sob Saddam Hussein que cooperasse plenamente com inspecções da ONU e o desarmamento, em termos aceitáveis para os Estados Unidos. Mas a administração declarou que isto era altamente improvável, e sua posição a respeito pode portanto ser interpretada como parte de uma estratégia diplomática-legal para reunir apoios para a sua ameaça de invasão, no caso de o Iraque ser declarado como não-cumpridor no processo de inspecção da ONU.

[2] Joseph Schumpeter, Imperialism and Social Classes, editado e apresentado por Paul M. Sweezy (New York: Augustus M. Kelley, 1951), p. 66

[3] Naturalmente para muitas (se não a maior parte) das aventuras imperiais do século XIX nunca houve muito espaço para pretender que os motivos fossem defensivos. As Guerras do Ópio foram combatidas não contra uma China agressiva, mas sim para impor o livre comércio do ópio. A luta entre as potências europeias para dividir a África não foi dirigida contra uma África beligerante, mas foi racionalizada como "o fardo do homem branco".

[4] Senate Committee on Banking, Housing and Urban Affairs, United States Dual-Use Exports to Iraq and their Impact on the Health of the Persian Gulf War Veterans, 103rd Congress, 2nd sess., May 25, 1994, pp. 264–76; Buffalo News, September 23, 2002.

[5] Ver William Rivers Pitt com Scott Ritter, War on Iraq (New York: Context Books, 2002); Newsday, July 30, 2002; The Guardian, October 7, 2002.

[6] http://www.eia.doe.gov/emeu/cabs/iraq.html ; Middle East Report, Fall 2002;San Francisco Chronicle, September 29, 2002.

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O original deste artigo encontra-se em http://www.monthlyreview.org/1202editor.htm
Tradução de J. Figueiredo


Este artigo encontra-se em http://resistir.info

05/Dez/02