A nova face do capitalismo:
Crescimento lento, excesso de capital e uma montanha de dívida
Desde há muito, a economia dos EUA e as economias do conjunto dos
países capitalistas avançados experimentam uma
desaceleração do crescimento económico em
relação ao quarto de século que se seguiu à Segunda
Guerra Mundial. É verdade que tem havido ascenços
cíclicos e períodos longos de expansão que têm sido
tratados como "booms económicos" de pleno direito, mas a
desaceleração na taxa de crescimento da economia manteve-se
durante décadas.
Apreender este facto é crucial para quem quiser entender a
contínua reestruturação económica verificada nos
últimos 30 anos, a rápida pioria das condições na
maior parte do mundo subdesenvolvido para o qual as crises foram exportadas e o
significado mais amplo do presente declínio cíclico do
capitalismo mundial.
A desaceleração do crescimento
A fim de ilustrar o que está a acontecer ao crescimento no capitalismo
avançado, as alterações no crescimento do Produto Interno
Bruto dos Estados Unidos ao longo de todo o período pós-Segunda
Guerra Mundial, examine-se o
Gráfico 1.
O eixo vertical do gráfico mostra taxas de mudança.
Trata-se de um gráfico semi-logarítmico, em que a escala vertical
difere escala aritmética habitual. Assim, a diferença entre 2000
e 3000 representa um aumento de 50%, ao passo que a distância entre 3000
e 4000 mostra um aumento de 33,3%. Nesta espécie de gráfico, a
linha recta retracta uma taxa de mudança igual no período de 1950
a 1970, aplainando flutuações menores. Os anos individuais
estão portanto ligeiramente acima ou abaixo da linha de tendência,
mas há uma razoável consistência na taxa média de
crescimento do total de bens e serviços produzidos nas primeiras duas
décadas. Olhe agora para o intervalo cada vez maior entre a
tendência de 1950-1970 e as taxas de crescimento reais entre 1980 e 2000.
A implicação da desaceleração é indicada
pelo facto de que se a taxa de crescimento de 1950-1970 se tivesse mantido
constante, o PIB teria sido cerca de 20% maior do que realmente foi no ano 2000.
Tais mudanças ocorreram durante anos de guerra de classe imposta de cima
para baixo. Ao comentar acerca dos planos do
establishment
para endurecer as condições económicas da generalidade da
população sob a capa do actual fervor patriótico, o
jornalista Bill Moyers considerou: "A nossa classe empresarial e
política deve-nos mais do que isso. Afinal de contas, foram eles que
declararam a guerra de classe 20 anos atrás, e foram eles que a
venceram. Eles estão no topo". (
The Nation
, 19/Nov/01).
Esta notável desaceleração ocorreu em simultâneo com
um enorme salto tecnológico (a chamada New Economy) e com a
expansão globalizadora que aumentou a exploração do
terceiro mundo. Os avanços na tecnologia da informação,
como os computadores e a Internet com todos os seus impactos no trabalho
administrativo, gestão de stocks, etc ainda não
proporcionaram o grande estímulo que o capitalismo exige para manter
altas taxas de crescimento. As contribuições da tecnologia da
informação para o crescimento da economia não se
assemelharam aos efeitos estimulantes a longo prazo do desenvolvimento do
sistema de transporte terrestre centrado no automóvel, que dominou a
história económica de grande parte do século XX.
Nos países centrais o capital certamente lucrou muito com a
tendência para a globalização das últimas
décadas, apesar da tendência para estagnação. Mas
isto não aconteceu no terceiro mundo, como se pode ver na
Tabela 1.
Tabela 1: Média móvel anual das taxas de crescimento do rendimento per capita,
OCDE e países em desenvolvimento
a
|
1960-1979
|
1980-1998
|
OCDE
b
|
3,4
|
1,8
|
Países em desenvolvimento
c
|
2,5
|
0,0
|
a) Os números mostrados nesta tabela representam valores medianos para o
rendimento médio anual per capita dos países nos anos indicados. O valor
mediano é o ponto no qual metade de todos os países no grupo estão acima da
taxa de crescimento médio indicada, enquanto metade está abaixo
b) Compreende as principais economias industrializadas da Europa, os EUA,
Japão, Canadá, Austrália e Nova Zelândia
c) Países em desenvolvimento aqui abrange todos os países em desenvolvimento,
incluindo a China e estados ex-comunistas na Europa do Leste e Ásia Central.
Fonte: Robert Hunter Wade, "Is Globalization Making World Income Distribution
More Equal?" (Development Studies Institute, London School of Economics and
Political Science). Fonte original: William Easterly, "The Lost Decade:
Explaining Developing Countries Stagnation 1980-1998", minuta, World Bank,
Janeiro 2000,
http://www.worldbank.org/research/growth/padate.htm
Nesta tabela destacam-se três pontos importantes:
(1) O declínio nas taxas de crescimento desde a década de 1980
é típico dos países industrializados em geral;
(2) A procura de produtos primários por parte das nações
ricas em crescimento rápido contribuiu para o crescimento significativo
dos países pobres que haviam acabado de passar pela experiência da
descolonização. Além disso, o fluxo de empréstimos
e investimento estimulou o crescimento inicial.
(3) Entretanto, as condições de troca desigual e o
desenvolvimento do subdesenvolvimento finalmente aprisionaram os países
pobres. Muitos deles adoptaram a estratégia imposta pelo Norte: um
crescimento das exportações manufactureiras graças a
corporações multinacionais à procura de força de
trabalho com baixos salários e ao financiamento de bancos estrangeiros
à procura de novos mercados para empréstimos.
Isto significa que cada vez mais excedente económico era extraído
como pagamento de lucros e de serviços de dívida destinados aos
países ricos. Termos comerciais desfavoráveis, crescente
competição pelos mesmos mercados e uma
desaceleração nas economias centrais conduziram a crises de
dívida do terceiro mundo e a um declínio decisivo nas taxas de
crescimento, com muitos países pobres a experimentarem taxas de
crescimento negativas.
Os países do terceiro mundo têm portanto sofrido, com poucas
excepções, de duas décadas de declínios severos nas
taxas de crescimento, com muitos deles caindo para crescimento abaixo de zero.
Agora, com um novo período de desaceleração global, suas
condições passaram de sérias para críticas, como o
testemunhou a Argentina com a sua crise económica profunda e a maior
cessação de pagamentos
(default)
de sempre de dívida externa. No ano 2000, em "The Return of
Depression Economics", o economista liberal Paul Krugman escreveu que o
problema subjacente que desestabilizava as finanças e ameaçava
particularmente os países subdesenvolvidos não havia
desaparecido, que as crises financeira/de dívida externa do
México em 1995 e da Ásia em 1997-1998 eram provavelmente apenas
os dois primeiros actos de uma peça em três actos. O desastre que
afundou o peso argentino em 2001-2002 representa claramente o princípio
do terceiro acto mas ainda não sabemos como se desenrolará
o resto desta peça.
A tendência para o excesso de capital
Durante a segunda metade da década de 1990, um certo número de
economistas sugeriu que o ciclo de negócios poderia ser uma coisa do
passado. A "Nova Economia" da "Era da
Informação" seria tão eficiente que os capitalistas
tomariam decisões mais racionais com um conhecimento mais correcto das
condições actuais e futuras. No entanto, a
percepção aguda de Karl Marx de que "a barreira real para a
produção capitalista é o próprio capital"
ainda permanece verdadeira. Uma das causas mais comuns de
desaceleração económica é o facto de que a taxa de
investimento tende a exceder o crescimento da procura final. O crescimento
rápido do produto necessário para satisfazer o ligeiro
crescimento da procura e para aumentar a participação de mercado
durante uma alta económica conduz à criação de
excesso de capacidade produtiva (instalações e equipamentos
ociosos). Em algum ponto o crescimento da procura deixa de corresponder
às projecções, deixando as corporações com
quantidades maciças de capacidade não utilizada e de stocks
não vendidos. O novo investimento é então impedido porque
as corporações relutam em investir devido ao grande excesso de
capacidade por vezes denominado "capacidade produtiva ociosa"
("capital overhang")
. Como se afirma em "The Economic Report of the Presidente, 2002",
preparado pelo Conselho de Consultores Económicos do presidente:
"Um
capital overhang
desenvolve-se quando a quantidade de capital na economia excede a quantidade
que os negócios desejam para a produção de bens e
serviços. A emergência de um tal excesso complica tanto o
planeamento dos negócios como a elaboração de
políticas. Os negócios têm frequentemente de alterar os
seus planos de gastos de capital e cortar seus gastos de investimento
por vezes de forma bastante abrupta. (pg. 39)
O que deveria ficar claro é que não há nenhuma resposta
real para este problema da super-expansão da capacidade produtiva sob o
capitalismo monopolista, pois o capital é continuamente confrontada com
o facto de que a principal barreira para o investimento é o
próprio investimento. Por mais útil que o investimento possa
ser, ele está limitado pela saturação final do mercado
para o seu produto final. O avanço da competição e a luta
de cada uma das corporações gigantes por uma maior fatia de
mercado torna então a contribuição útil do
investimento no seu oposto. Dadas estas circunstâncias, o excesso de
capacidade desempenha um papel particularmente importante em qualquer
redução do ritmo da actividade económica
(economic slowdown)
sob o capitalismo monopolista. Grandes firmas que procuram proteger as suas
margens de lucro tendem a responder a uma depressão
(downturn)
com o corte na sua capacidade de utilização ao invés de
reduzir preços (como a teoria económica ortodoxa levaria a
esperar).
[*]
O declínio prolongado na capacidade de utilização na
indústria manufactureira pode ser visto no
gráfico 2
, que apresenta isto em termos de médias móveis decenais.
Durante o período mostrado no gráfico, o ponto alto foi o
período de dez anos 1964-1975, ao passo que o ponto baixo foi o de
1975-1984. Dados preliminares indicam que 2001 registou o mais baixo
nível de capacidade de utilização (ou o mais alto
nível de excesso de capacidade) desde 1983.
Como foi mencionado acima, as depressões tornam-se
auto-reforçadoras porque as corporações são
extremamente relutantes em investir quando se deparam com quantidades
substanciais de excesso de capacidade e de stocks. Esta situação
é particularmente evidente hoje na alta tecnologia, sobretudo nas
telecomunicações. "Alguns negócios, especialmente no
sector da informação e das tecnologias de
comunicação", afirma The Economic Report of the President,
2002, "podem ter superestimado o potencial da "Nova Economia" e
portanto super-investido em capacidade produtiva. Além disso, os
negócios em toda a economia foram surpreendidos pela extensão do
declínio na procura agregada em 2000 e 2001 e, portanto, eles tiveram de
rever para baixo os planos dos stocks de capital que desejavam" (pg. 40).
A panaceia da produtividade
Defrontados com um declínio crescente, os economistas muitas vezes
apontam o aumento da produtividade como panaceia. A indústria
manufactureira geralmente é concebida como o motor da economia
capitalista, pois espera-se que opere no núcleo do mecanismo da
auto-expansão do sistema. Ela é suposta trabalhar como se segue:
(1) Melhorias na tecnologia e/ou intensidade acrescida de trabalho produzem
produtividade do trabalho cada vez maior. (2) O excedente resultante
acumulando-se ao capital é utilizado para reduzir preços e/ou
aumentar salários. (3) Qualquer das duas medidas conduz a uma procura
acrescida. (4) A procura acrescida é um estímulo ao capital
à procura de lucro para expandir a produção.
Essa é a doutrina padrão. Mas o que realmente aconteceu entre
1980 e 2000 não se ajusta a este quadro. O
gráfico 3
é um índice da produtividade manufactureira
(produção por hora) comparado com um índice da
compensação horária dos trabalhadores manufactureiros
(ajustado aos preços). Agora considere o surpreendente afastamento
entre as duas linhas a partir de 1980. Os preços não
diminuíram nem houve um ascenço nos salários que
suportasse um ascenço significativo da procura. Este alargamento do
fosso entre produção por hora e compensação
horária real, enraizado na estagnação dos salários
reais, significa que quase todo o ganho do aumento de produtividade desde 1980
foi apropriado como excedente pelo capital. O sector manufactureiro nem baixou
os preços nem aumentou os salários de acordo com a crescente
produção por trabalhador. Isto (juntamente com a falta de novos
empregos fabris) não ajudou a criar procura efectiva para o
crescimento do produto. Ao invés disso, como se mostra no
gráfico 4
, o emprego manteve-se em expansão no sector de serviços, onde
uma porção significativa dos empregos são notoriamente mal
pagos ou em tempo parcial.
Dívida crescente
A dívida é um ingrediente normal, na verdade necessário,
de uma economia capitalista. Ela desempenha um papel de
agilização do comércio externo, fornecendo fundo de maneio
(working capital)
às indústrias sazonais, complementando investimentos em empresas
privadas e, naturalmente, através da dívida nacional, ajudando a
regular os desequilíbrios entre receitas e despesas. A dívida
também pode estimular a economia. Exemplo: a maior parte das pessoas
não tem poupanças suficientes para comprar uma nova casa, um
carro ou uma nova mobília para o apartamento. Quando estas compras
são efectuadas a crédito, verifica-se actividade económica
que não teria acontecido sem a hipoteca da casa, do carro ou de
empréstimos com cartão de crédito. Quando capitalistas
tomam dinheiro emprestado e constróem uma nova fábrica ou uma
loja de retalho ou um hospital constróem uma nova ala da economia, esta
é à partida estimulada pela criação de empregos
durante a construção e depois pela contratação de
pessoal e pelo abastecimento da nova instalação.
Como se mostra no
gráfico 5
, ocorreu uma mudança acentuada no papel da dívida entre 1980 e
2000 o mesmo período em que, como foi mostrado no gráfico
1, houve um declínio claro no crescimento do Produto Interno Bruto.
Desde 1945 até 1980, o total da dívida não paga como
porcentagem do Produto Interno Bruto permaneceu praticamente constante. O
declínio na dívida governamental, associada sobretudo com as
despesas da Segunda Guerra Mundial, foi compensado por um aumento
correspondente em todas as outras dívidas: empresariais, dos
consumidores, das instituições financeiras. Mesmo antes de 1980,
o relativamente rápido crescimento da economia estava portanto cada vez
mais dependente do uso da dívida privada (em oposição
à pública). Tais dívidas actuam como um estímulo
às compras do consumidor, como um incitamento à
construção de capacidade produtiva adicional, e como um impulso
para a actividade especulativa. Mas depois de 1980 o crescimento da
dívida privada não paga voltou-se para cima a uma taxa muito mais
rápida. Por outras palavras: tornou-se um elemento cada vez mais
importante para manter a economia em andamento. Em 2000, a dívida
privada não paga é 2,25 vezes o PIB, enquanto o total da
dívida não paga privada mais governo chega a ser
quase três vezes do PIB. A economia produtiva agora está
completamente dependente dela e esmagada por uma montanha de dívida, a
qual assumiu uma vida própria com base no facto de que a dívida
aumenta a procura por mais dívida.
Um aspecto particularmente nefasto desta crescente dependência em
relação à dívida é que o sector financeiro
tornou-se responsável por uma proporção cada vez maior da
dívida total. Aqui, mais uma vez, podemos ver o ano de 1980 como um
ponto crítico para mudanças na economia. Como se pode verificar
no
gráfico 6
, de 1945 a 1980 a dívida financeira como porcentagem do PIB ascendeu 20
pontos. A seguir, nas duas décadas seguintes, ascendeu quase 70 pontos.
O total da dívida não paga do sector financeiro sozinho é
agora quase 90 por cento do PIB e representa mais de 35 por cento do total da
dívida governamental não paga.
A dívida das empresas (incluindo as financeiras) não é o
único problema. A crescente dívida no sector do consumo mesmo em
meio a recessão é uma das principais razões porque esta
tem sido relativamente suave até agora. Os
trabalhadores procuraram manter os seus gastos apesar dos poucos ganhos em
termos de salários reais e apesar do crescente desemprego. É
improvável, contudo, que isto possa continuar por muito mais sem que
haja uma
interrupção súbita. Na década de 1990, a
dívida das famílias ascendeu, pela primeira vez, acima de 100 por
cento do rendimento pessoal disponível nos Estados Unidos e chega mesmo
a ser mais elevada do que em alguns outros países capitalistas
avançados, inclusive o Japão, a Alemanha e a Grã Bretanha
(Economist, 26 de Janeiro de 2002, pgs. 22-23).
Capitalismo de casino
Tal como discutido acima, o sector de serviços da economia foi uma das
principais áreas para o investimento e o emprego. A outra saída
foi a especulação na realidade, apenas uma outra palavra
para jogatina. O sector financeiro da economia capitalista já
não está confinado às necessidades da
produção, emprego e investimento. Principiando na década
de 1980, tornou-se uma forma cada vez mais autónoma de fazer dinheiro,
particularmente evidente no crescimento dos mercados de derivados
(derivatives)
. Um derivado é um instrumento financeiro que "deriva" o seu
valor de um outro instrumento financeiro. Um futuro financeiro
(financial future)
, por exemplo, é um acordo para comprar algum outro instrumento
financeiro, digamos uma acção ou um título, em algum dado
ponto no futuro.
Os derivados tendem a exagerar ganhos e perdas. Se uma taxa de juros ou o
preço de uma acção no qual um derivado se baseia sobe, os
ganhos obtidos através de um derivado podem subir como um foguete. Por
outro lado, se os activos subjacentes declinam, o valor de um derivado afunda.
A velocidade da ascenção e queda dos valores financeiros acresce
o risco dos apostadores individuais. Tal como numa corrida de cavalo, alguns
apostadores perdem, outros ganham. O risco aqui é para o sector
financeiro como um todo ou para uma parte importante do mesmo, e portanto um
risco para a economia como um todo. Motivo: estas
especulações são altamente alavancadas. Exemplo: o
comprador de um derivado pode aplicar 5 por cento, enquanto um
empréstimo bancário proporciona o resto.
O fiasco da Enron sublinhou, recentemente, quão grandes se tornaram os
mercados de derivados. Em depoimento perante o United States Senate Committee
on Governmental Affairs, a 24/Janeiro/2002, Frank Partnoy, Professor da
Faculdade de Direito da Universidade de San Diego, explicou: "A Enron
era, no seu núcleo, uma firma de comercialização de
derivados. Nada pode tornar isto mais claro que o projecto do extravagante
novo edifício da Enron ainda não terminado actualmente,
mas ocupado na sua maior parte onde os gabinetes dos executivos de topo
no sétimo piso foram concebidos de forma a dar uma vista
panorâmica à jóia da coroa do império Enron: uma
cavernosa arena
(pit)
para a comercialização de derivados localizada no sexto piso.
A explicação de Partnoy acerca da natureza e da extensão
do mercado de derivados no contexto do seu depoimento sobre o colapso da Enron
proporciona um visão pormenorizada do crescimento do mercado de
derivados, os quais agora permeiam os negócios dos EUA.
Os derivados são instrumentos financeiros complexos cujo valor é
baseado sobre uma ou mais variáveis subjacentes, tais como o
preço de uma acção ou o custo do gás natural. Os
derivados podem ser comercializados de duas formas: em
transações regulamentadas ou em mercados não
regulamentados
over-the-counter (OTC)
...
A dimensão dos mercados de derivados é medida tipicamente em
termos do valor imaginário
(notional)
dos contratos. Estimativas recentes da dimensão do mercado de
derivados de comercialização de câmbios, os quais incluem
todos os contratos comercializados sobre os câmbios das principais
opções e futuros, vão de US$ 13 a US$ 14 triliões
(milhão de milhões) em valores imaginários. Em contraste,
a quantia imaginária estimada dos derivados OTC não pagos no fim
de 2000 era de US$ 95,2 triliões (milhão de milhões). E
esta estimativa está provavelmente subestimada.
Por outras palavras, os mercados de derivados OTC, os quais na maior parte
não existiam 20 anos atrás (ou, em alguns casos, há dez
anos), agora abrangem cerca de 90 por cento do mercado de derivados agregados,
com triliões de dólares em risco todos os dias... A Enron pode
ter sido apenas uma empresa de energia quando foi criada em 1985, mas no fim
tornou-se uma firma comercializadora de derivados OTC em plena explosão.
Os seus activos e passivos relacionados com derivados OTC aumentaram mais de
cinco vezes só durante o ano 2000.
|
A enorme expansão da dívida das corporações dos
EUA, inclusive das instituições financeiras, está
claramente limitada por esta extensiva e crescente actividade especulativa. A
Enron foi simplesmente um exemplo exagerado disto. O resultado é uma
estrutura financeira que é cada vez mais instável, mais propensa
ao desastre se a economia subjacente enfraquece e se novas formas de
instrumentos financeiros, concebidos para adiar o dia do ajuste de contas,
não forem constantemente introduzidos.
Para onde isto tudo conduzirá, ninguém sabe. Na melhor
hipótese, o acumular de dívidas e a natureza cada vez mais
instável da estrutura da dívida coloca limitações
às economias que lutam para emergir de uma depressão
cíclica. Na pior, um sério colapso
(meltdown)
financeiro poderia mais uma vez desestabilizar a economia do mundo
capitalista. Acerca disto é crucial entender que não só a
economia dos EUA caracteriza-se por quebras de produção e uma
explosão insustentável de dívida, como também a
economia mundial em geral, pois surgiu uma recessão mundial
sincronizada.
Excesso de capacidade e volatilidade financeira tornaram-se fenómenos
quase universais num ambiente económico cada vez mais globalizado.
"O actual declínio global", observou a revista Economist em
25/Agosto/2001, "distingue-se das outras do meio século anterior em
que
a vulnerabilidade económica está mais difundida do que nas
anteriores depressões. Na 'recessão mundial' de 1991, por
exemplo, a economia americana afundou, mas o Japão, a Alemanha e os
Estados emergentes da Ásia continuaram a crescer, o que ajudou a
absorver a procura mundial. Até agora esta recessão não
é profunda, mas pode ser a mais sincronizada desde a década de
1930. Nisto situa-se o grande risco. As economias tornaram-se cada vez mais
integradas devido ao comércio e ao investimento nos anos recentes... O
lado negativo desta globalização é que a recessão
económica em todo o mundo está agora a provar-se
auto-reforçante, ampliando a queda inicial da procura. Como o
investimento entrou em colapso nos EUA e no Japão, estes países
cortaram suas importações dos produtores asiáticos. Mas a
procura mais fraca nos países asiáticos está a fazer com
que eles, por sua vez, restrinjam suas importações, não
apenas dos EUA e do Japão como também da Europa. As
probabilidades de uma recessão americana (e global) portanto aumentaram
consideravelmente (pgs. 11-12).
|
Como sempre, são os países mais pobres na periferia do sistema os
que mais sofrem numa crise geral da economia mundial. Tal como fora indicado
anteriormente, as taxas de crescimento económico per capita estagnaram
nos últimos vinte anos nos países subdesenvolvidos (com apenas
umas poucas excepções notáveis), criando problemas
económicos ainda piores.
O campo de visão
O neoliberalismo insiste em que a criação de um mercado livre
o que significa a eliminação de todas as tentativas dos
Estados de restringirem o mercado acabará por beneficiar todos os
países. Um axioma fundamental da economia corrente é que o
mercado actua como um regulador. Se e quando isto funciona assim aplica-se
sobretudo aos preços, na produção e venda de mercadorias
(commodities)
.
O uso do excedente, contudo, não tem uma relação
tão clara com o mecanismo regulatório dos mercados.
Isto está a tornar-se cada vez mais evidente na medida em que persiste a
tendência para a estagnação. Como as oportunidades para
investimento na produção de bens e serviços diminuem,
apesar das oportunidades proporcionadas pela nova tecnologia, cada vez mais
excedente é destinada a uma vasta expansão das finanças.
Ajudados pela tecnologia da informação, os mercados financeiros
tornam-se cada vez mais internacionais.
A globalização está na ordem do dia pois o capital
pesquisa todos os cantos do globo à procura de oportunidades para lucro.
A ideologia dominante celebrou a velocidade da globalização
apregoando que uma maré crescente eleva todos os navios
até mesmo mais para o países subdesenvolvidos se estes adoptassem
a ideologia do livre mercado dos países centrais. O resultado
muitíssimo diferente do que fora prometido foi afundar as taxas
de crescimento na maior parte dos casos.
Para aqueles cuja visão do futuro está confinada às
fronteiras aceitáveis para o capitalismo, tudo isto será
certamente encarado como um retracto totalmente sombrio. A
globalização sob regimes neoliberais significou de muitos modos a
globalização das tendências de estagnação e
de crise financeira. A economia do mundo capitalista está confrontada
em toda a parte com capacidade produtiva não utilizada e com montanhas
de dívida. Não existe qualquer solução
óbvia para este problema dentro do contexto do sistema. Para culminar
tudo isso, as consequências sociais desta última fase da crise
estão ainda por emergir.
É sobre tais consequências sociais que todos aqueles cuja
visão do futuro não está confinada ao capitalismo fixam
suas esperanças a abertura de caminhos alternativos
através da luta. Não sabemos o que o futuro nos trará, nem
quantas lutas serão necessárias para alcançar uma
sociedade governada pelo povo e concebida para atender as necessidades das
populações de todo o mundo. Podemos, entretanto, ter a certeza
de duas coisas: que este objectivo não será alcançado sem
a luta militante de classe, e que uma economia capitalista mundial justa e
sustentável não é o futuro da humanidade.
______________
[*]
Sob o capitalismo monopolista, não se pode considerar o excesso de
capacidade simplesmente como um fenómeno temporário associado com
os fossos do ciclo de negócios. Tal como argumentou Josef Steindl em
Maturity and Stagnation in American Capitalism
(Nova York, Monthly Review Press, 1976), pgs. 10-12, "para
propósitos práticos... é permanente", ligado à
tendência subjacente para a estagnação. Cortando na
produção e diminuindo a capacidade de utilização
durante uma recessão económica, as firmas monopolistas são
capazes de ajustar-se às quedas da procura enquanto mantêm margens
de lucro evitando assim os perigos de uma plena competição
de preços.
Durante uma expansão, estas mesmas firmas podem adoptar um certo grau de
"excesso de capacidade planeada", construindo por
antecipação à procura a fim de capturar um mercado maior
(e maior fatia de mercado). Contudo, o super-investimento em que isto se
converte apenas faz com que o "indesejado excesso de capacidade" que
as corporações acabam por manter durante o declínio
seguinte seja maior que o anterior.
All material copyright ©2002 by Monthly Review.
A publicação em português foi autorizada pelo editor.
O original encontra-se no nº 11, volume 53, da
Monthly Review
.
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