Criando uma Sociedade Justa:
Lições da planificação na URSS & nos EUA
Entrevista com Harry Magdoff
No começo de julho de 2002, perguntei a Harry Magdoff, co-editor
da
Monthly Review
durante 34 anos, se aceitaria ser entrevistado para o
Statesman
, um jornal de Kolkata, Índia, para o qual escrevo comentários
políticos. Nossa primeira entrevista foi tão satisfatória
que continuamos por várias sessões. O que se segue é uma
discussão sobre algumas das considerações de Harry sobre o
que podemos aprender da experiência da União Soviética.
Minha primeira pergunta foi sobre seu encontro com Che Guevara.
HARRY MAGDOFF:
Quando Che Guevara veio a Nova York para uma reunião nas
Nações Unidas, pediu para encontrar-se comigo e com a minha
esposa, Beadie. Recordo que lhe ofereci três livros. Um deles era uma
história do SNCC, de Howard Zinn, o segundo não me lembro do
título e o terceiro, o mais importante, era um livro técnico de
Piero Sraffa, Produção de Mercadorias por meio de
Mercadorias (1960).
Expliquei a Che a razão pela qual eu estava a oferecer-lhe este livro,
ou seja, por acreditar ser errôneo envolver-se em todo tipo de
discussões teóricas limitadas sobre aspectos da
planificação baseada em fórmulas, ou em Marx. Disse a ele
que eu pensava que se deveria observar as decisões econômicas
concretamente, em termos das condições do país e do
período em foco. Eu estava indiretamente criticando a decisão dos
líderes de Cuba, na época, de alcançar a
produção de dez milhões de toneladas de
açúcar, sem considerar as limitações de tal
objetivo, como a condição das centrais açucareiras. Havia
a questão do processamento e não apenas a do corte da cana. Disse
a ele: O importante é que quando os planos forem elaborados, os
planejadores, aqueles que propõem as diretrizes e os números,
reflitam sobre alternativas políticas concretas à luz das
condições práticas.
Então ele riu e contou que quando estava em Moscou, seu anfitrião
Kruschev, líder do partido e do governo na época, conduziu-o como
um turista político. Passeando pela cidade, Che disse a Kruschev que
gostaria de encontrar-se com a comissão de planificação.
Kruschev perguntou: Por quê? Eles são só um bando de
contabilistas. Por outras palavras, Che sabia a que eu me referia, isto
é, que o planejamento não era simplesmente técnico, mas
principalmente político. De um ponto de vista histórico, é
importante saber o que essa anedota revela. Há, aqui, um profundo
significado, que reside nas próprias origens e no modo pelo qual a
planificação foi conduzida na União Soviética.
Muitas pessoas de esquerda bem como de direita concordam que as dificuldades
econômicas na União Soviética provam que não se
consegue planificar um país. Ainda assim, creio que uma visão
histórica da maneira pela qual o planejamento se desenvolveu na URSS se
relaciona com a compreensão de suas falhas posteriores. E também
com a compreensão da maneira pela qual o sistema político se
desenvolveu. Planificar era obviamente essencial no começo, após
a revolução. Três planos foram propostos.
Huck Gutman: Falamos aqui sobre o Primeiro Plano Qüinqüenal?
MAGDOFF:
Isso foi no início. Começaram a
planificação. Sobreviveram à guerra civil, muitas guerras
civis, em que a sua economia foi "lançada no inferno.
Não existiam trabalhadores, as fábricas estavam vazias, os
melhores trabalhadores ou foram assassinados ou estavam ocupados com os
assuntos governamentais, de forma que o problema da retomada da
produção era extremamente importante. Seu plano
temporário, que denominaram de novo plano econômico, abriu certas
portas, mas acabou indo contra as necessidades do povo.
Então os economistas esboçaram três planos. Um era baseado
numa visão muito prática de quais eram os limites de suas
reservas, e os recursos necessários para impulsionar a economia. Este
plano representava a visão mais realística do que poderia ser
feito. Havia um segundo plano que postulava que se poderia fazer um uso mais
eficiente dos recursos. E um terceiro plano, esboçado sem levar em
contas os recursos, com base na força de vontade das pessoas e no seu
desejo de agir. Este último prometia maiores conquistas. Foi o menos
conservador dos planos, e assumiu uma grande responsabilidade sem levar em
conta os limites existentes.
Agora, a decisão de qual plano escolher foi tomada não pelos
planificadores ou economistas, mas sim pela comissão política do
partido, que escolheu o terceiro. Esse plano, que dependia em grande medida do
apelo ao voluntarismo do povo, rapidamente revelou-se satisfatório em
algumas áreas. A partir disso, a Comissão Política decidiu
que o plano poderia ser cumprido em quatro anos e meio, mesmo que ainda
houvesse sérias objeções acerca da possibilidade de
cumpri-lo em cinco anos!
Para cumpri-lo em menos de cinco anos, ou em cinco anos, requeria, em um
sentido, uma militarização da economia. A
militarização pode ser uma grande palavra, mas a
mobilização econômica tomou a forma de um economia de
guerra. Diretores fortes, pressionando as pessoas ao extremo, perseguindo
aqueles que não produzissem por várias razões, culpando-os
como indivíduos: o esforço tomou a forma tanto de uma economia de
guerra como de um sistema político em que as diretrizes eram impostas do
alto. Essas diretivas tinham de ser cumpridas; não eram postas em
discussão, não era uma questão de tentativa e de erro.
Tudo tinha de ser feito, e ser feito às pressas e sob mão de
ferro; pois tratava-se da grande conquista. Da mesma forma, os agricultores
foram forçados à coletivização.
Para alcançar a sua meta, era necessário um esforço
especial que exigia o máximo de recursos existentes, mais
especificamente utilizando toda a mão-de-obra disponível. Isso
dependia da produtividade do trabalho e da extração de
matérias-primas. Dependia também do incremento da maquinaria, sem
levar em consideração os custos de reparos das máquinas
existentes e de sua substituição. A pressão para agilizar
o desenvolvimento tornou-se maior com a ascensão do fascismo e o perigo
de guerra.
Assim, o desenvolvimento da economia antes e depois da Segunda Guerra Mundial,
quando havia boas oportunidades para uma expansão, dependia do
fornecimento de recursos. Quando esses fornecimentos alcançaram um
limite, a economia também chegou a um limite. Os recursos de trabalho
minguaram com tantas pessoas mortas durante a guerra. As matérias-primas
eram mais difíceis de obter do que se esperava. Para crescer, muitas
fábricas foram construídas sem se levar em
consideração a reparação das antigas. Em muitos
casos, as reservas destinadas a manter a maquinaria existente foram
transferidas de uma fábrica e usadas para construir uma outra. Estes
elementos não resumem toda a história, mas, na minha
opinião, foram elementos-chave que conduziram a economia
soviética à estagnação.
Enfatizo aqui o modo pelo qual o plano foi desenvolvido e as políticas
que daí surgiram. Acredito que a separação entre
planificadores, técnicos e economistas, e a poderosa comissão
política do Partido, era um elemento importante nas dificuldades que
apareciam. Primeiramente, leigos tomavam as decisões econômicas,
baseando-nas em decisões políticas sobre o que seria melhor do
ponto de vista imediato, embora naturalmente houvesse o sentimento
implícito de que o curso seguido era o melhor para o povo. Mas, ao mesmo
tempo, um sistema político semelhante a uma economia de guerra já
estava sendo estabelecido.
Diferenças significativas apareceram entre as pessoas, e uma categoria
privilegiada desenvolveu-se, embora não similar àquela do mundo
capitalista. Na União Soviética, aqueles que eram a
intelligentsia
ou os que eram diretores de fábricas, ou diretores de grandes
secções do partido, eram privilegiados. A eles eram reservados os
melhores hospitais, conseguiam comida de melhor qualidade, moravam em melhores
apartamentos, freqüentavam locais de veraneio.
Ao mesmo tempo, a União Soviética construía escolas,
hospitais, conquistas significativas sob este sistema. Mas à despeito da
ênfase na proteção aos trabalhadores e agricultores, a
maneira pela qual a planificação estava projetada conduziu
não apenas à formação de uma classe privilegiada,
mas também neglicenciou áreas fora das grandes cidades, fora das
regiões privilegiadas, o que comprometeu a continuação do
desenvolvimento nacional. Regiões da União Soviética no
sul, na Ásia Central e no oeste próximo à China eram bem
menos desenvolvidas. Existiam hospitais no Usbequistão que não
tinham água, e cidades que não tinham esgôto.
Na verdade, mesmo em regiões mais avançadas, não existiam
boas estradas do campo até a cidade, e não se prestava
atenção à agricultura. De forma que os erros, ou as males,
se você preferir, surgiram de uma situação
histórica: o caráter da sociedade emergiu disso.
Mas deixe-me dizer que não era uma questão de má
planificação, ou da impossibilidade de
planificação. Se você está adaptando uma sociedade
para encontrar as necessidades das pessoas você tem de planejar.
Não há outro caminho.
GUTMAN: Harry, você mesmo se envolveu profundamente com a
planificação americana no tempo da guerra, e tem um conhecimento
de como essa planificação ocorreu. Os anos 40 viram o maior
envolvimento estatal na produção da história americana,
cujo resultado foi um salto da América no desenvolvimento industrial e
econômico. Você poderia comparar a planificação na
União Soviética àquela que se deu nos Estados Unidos
durante a Segunda Guerra? Por que, para ser específico, foi o processo
de planificação bem sucedido nos Estados Unidos?
MAGDOFF:
Em grande parte, pelo fato de a América
possuir uma indústria de máquinas capaz de produzir
máquinas. Também tinha infraestrutura adaptável e fontes
de matérias-primas.
GUTMAN: Então estavam mais bem estruturados.
MAGDOFF:
Sim. Mais ainda, para possuir um exército
que pudesse combater os inimigos em ambos os continentes, possuir navios,
aviões, artilharia e tudo com ela relacionado, era necessário
algo além da economia existente.
GUTMAN: Certo.
MAGDOFF:
A produção tinha de mudar. Por
exemplo, existiam ordens do governo para que não fossem
construído carros para civis. As fábricas eram usadas para
construir equipamento militar. Eles construíam jeeps e
carros para fins militares. Nem casas para civis eram construídas.
As decisões eram tomadas pelo Departamento de Produção de
Guerra
(War Production Board)
, o qual, escorado na autoridade governamental, requeria a
alocação de recursos, o que significava prover recursos para uma
área e não ter suficientes recursos para o que era menos
importante.
GUTMAN: Você trabalhou para o Departamento de Produção de
Guerra?
MAGDOFF:
Sim. Aqui está um exemplo que me parece
revelar a essência da planificação. Durante a década
de trinta existiu uma oferta de carne e leite, além de outros produtos.
Um dos problemas daquela época era Como se livrar da oferta?
Se você não o fizesse, uma crise poderia atingir os agricultores.
Da noite para o dia, a oferta de carne se transformou em escassez de carne. Com
chegada da guerra, as pessoas tinham emprego, e podiam comprar carne. As
pessoas no exército eram alimentadas pelo governo. E, repentinamente,
para enfrentar a situação, tinha-se de racionar.
E o mesmo ocorreu com outros produtos, como carros e gasolina; havia uma
distinção evidente entre aqueles que tinham direito a um carro,
ou o quanto de gasolina se poderia consumir. Anteriormente não existia
nenhum problema: a única questão era o dinheiro. Com a
planificação, em outras palavras, dinheiro não era a
questão; a questão agora dizia respeito ao que era importante
para a sociedade.
Você não pode desenvolver uma sociedade decente que cuide do
menor, do mais pobre, o mais discriminado, sem proporcionar recursos para
tanto. E você não pode fazê-lo através da economia
monetária usual, você não pode fazê-lo através
do mercado. Isto tem de ser uma decisão consciente. Como fazê-lo
democraticamente é um desafio. Não há uma resposta
fácil ou atalho para isso.
Há algo que deve ser reconhecido, que você nunca terá um
plano perfeito. Existirão erros. Mas tem de haver espaço para
tentativa e erro.
GUTMAN: E também para corrigi-los.
MAGDOFF:
Exatamente, considerando o que a
população necessita, o que é melhor para as pessoas.
GUTMAN: Harry, deixe-me ver se entendi corretamente. Primeiro, que no Primeiro
Plano Qüinqüenal existiam falhas que poderiam se multiplicar no
futuro, e que uma das principais falhas era que não se podia
contabilizar os recursos disponíveis. Talvez isto fosse muito
utópico. Estas são minhas palavras, não as suas.
MAGDOFF:
Não não, você está
certo.
GUTMAN: E que lá desenvolveu-se, porque os objetivos eram estabelecidos
pela burocracia dos políticos, uma estrutura de decisão imposta
do topo. Essa era a segunda maior falha. A terceira que você citou era
aquela que levou à formação de uma classe
político-administrativa privilegiada, se assim posso dizer, em vez de
desenvolver uma sociedade sem classe, criou um novo tipo de classe que
então só buscava seu próprio interesse.
MAGDOFF:
O efeito imediato da revolução foi
uma tremenda mudança social. Mas a economia dirigida, sob
condições onde a diretiva era mais importante que tudo,
não permitiu uma mudança no envolvimento da classe trabalhadora
na tomada de decisões. Não houve espaço para tentativas e
erros, nem para condições democráticas, em que você
pudesse apontar os erros sem ficar com medo de ser preso.
GUTMAN: Assim, na ausência de condições democráticas
e com um tipo de classe político-administrativa ou casta ou burocracia
encastelada, quando eles vieram com novos planos após o Primeiro Plano
Qüinqüenal, eles preferiram seguir o primeiro plano e não se
esforçaram para redirecionar as coisas.
MAGDOFF:
Num sentido mais amplo, era planificar sem
planificação.
GUTMAN: Como eles poderiam ter atuado de outra forma?
MAGDOFF:
Não há como saber. As
condições eram horríveis. Você necessitaria sempre
de um imenso sacrifício por parte da população para
efectuar qualquer tentativa de sanar as condições. Acima de tudo,
muitos países estavam devastados pela guerra. A guerra civil
prolongou-se por dois, três anos. Fazendeiros falidos, terras
destruídas, fábricas abandonadas, grande parte da maquinaria
roubada. Sob tais condições, existiam problemas reais, como a
fome, e assim por diante.
A questão era decidir o que era mais importante e quem tomaria a
decisão. O que eu estava enfatizando não era tanto os três
planos, mas sim ilustrar o fato de que a decisão era tomada por um
pequeno grupo na liderança do governo, e, no sentido de cumpri-la, eles
tinham de ser cada vez mais ditatoriais, cada vez mais burocráticos, no
seu modo de agir.
Mas você poderia identificar a conexão lógica entre isso e
o desenvolvimento de diferenças entre as pessoas. Porque o
líderes tinham de ter certos direitos e certas prioridades. Por exemplo,
membros da Academia de Ciência, físicos e químicos, eram
privilegiados. Pois, pelas características da sociedade em
questão, necessitavam sobretudo de cientistas. Não há nada
de errado em poder se alimentar e ter moradia, mas não se podia ter
muitos com amplos privilégios sem que afetasse o restante da
população.
Enquanto tremendos progressos foram feitos para proporcionar benefícios
de saúde a toda a população, os hospitais para o
cidadão comum eram muito diferentes dos hospitais para os privilegiados.
Significava que se podia sempre obter remédios suficientes em hospitais
melhores e privilegiados, enquanto não se podia obter remédios
suficientes em outros. Não era uma distribuição
equânime.
Eram decisões políticas. É fácil falar sobre isso
do lado de fora mas penso que o princípio não estou
pensando nisto agora como um estudo histórico da União
Soviética é tão essencial que necessita ser
reconhecido para ultrapassar a noção de que a
planificação não pode ser realizada.
Planificar para uma sociedade pode implicar em muitos fracassos e muitas
dificuldades, mas é a única forma de se atingir as necessidades
dos mais pobres e combater a enorme disparidade de riqueza, a enorme
disparidade nos modos de vida das pessoas.
GUTMAN: Assim, os erros básicos que os soviéticos cometeram no
início vão, num certo sentido, ao arrepio do que se necessita
para o êxito de qualquer plano: o conhecimento dos seus recursos e o dos
que existem no mundo real.
MAGDOFF:
Existia um outro fator, as prioridades, o mais
importante. O que fazia a diferença nos Estados Unidos durante a guerra
era que as prioridades eram claras. Nem todos concordavam com as prioridades.
Em relação à indústria, alguém poderia dizer
isso é o mais importante que aquilo, no campo militar
alguém poderia dizer aviões são mais importantes que
navios. Então acordos ou compromissos tinham de ser estabelecidos.
No entanto, você tinha de ter prioridades. Tinha de saber o que vinha
primeiro, e de definir a situação. Quando o exército
americano foi cercado, você tinha de possuir aviões com mira de
bombardeiro, e as miras necessitavam certos rolamentos. Neste caso, os
rolamentos eram a prioridade. E os aviões que os utilizariam
também eram prioridade. Porque você tinha de enfrentar aquela
situação.
GUTMAN: Assim, se você necessitasse rolamentos para rodas de
caminhões, esses seriam de prioridade menor?
MAGDOFF:
Exatamente. A vantagem da União
Soviética era que havia construído uma infra-estrutura
industrial, que poderia mudar de uma área para outra, onde se pudesse
estabelecer prioridades. Mas tinha de haver prioridades.
Ao lidar com uma sociedade com carência de recursos e de infra-estrutura,
então você deve priorizar de uma forma mais rígida, segundo
os princípios do governo. Como eu disse, os princípios do governo
devem almejar satisfazer as necessidades básicas dos miseráveis
da terra, dos discriminados e dos oprimidos. Não se deve pensar somente
em termos do seu fortalecimento mas também em termos de como fixar
prioridades para tal propósito. E compromissos são sempre
firmados mas tem de ser como uma decisão bem definida. Aí
é que está a importância de uma política
pública.
Acabei de escrever um pequeno estudo, não sei se vou publicá-lo.
Nos primeiros dias da Revolução Comunista Chinesa, uma de suas
principais conquistas foi que um largo número de doenças
contagiosas foram eliminadas. Isso foi feito com o apoio das massas, até
o ponto de se matar quase todos os mosquitos. Mas, principalmente, educando-as
e vacinando-as e assim por diante. Atualmente, a prioridade do sistema mudou em
direção ao desenvolvimento da indústria, da economia, para
se tornarem competitivas no mercado mundial. Existe um surto de epidemia de HIV
e SIDA na China. E hoje a população nem mesmo está
consciente dos perigos que essa epidemia representa. Aqui se nota a
mudança nas prioridades, pois anteriormente essa situação
seria tratada de forma diversa. Você não teria McDonald's, nem
certos confortos, nem carros, mas teria a atenção centrada na
epidemia de SIDA, equipando hospitais para exames de sangue. As pessoas
também não seriam obrigadas a vender seu sangue por cinco
dólares para obter comida.
GUTMAN: Na planificação durante a Segunda Guerra, você
tinha uma prioridade clara, que era...
MAGDOFF:
Nem sempre existia uma prioridade clara. Existia
uma extrema carência de máquinas operatrizes, essenciais para o
trabalho com metal. Não somente existia esta carência de
máquinas operatrizes, mas uma péssima distribuição
das disponíveis. Fábricas fundamentais não podiam operar
por não terem suficiente ou adequado conjunto de ferramentas. Por
exemplo, uma fábrica de aeroplanos, que possuísse muitos tornos
mecânicos mas um número insuficiente de perfuradoras, não
poderiam cumprir suas metas.
Fui chamado para solucionar o problema. Eu era a última pessoa que
você poderia esperar para fixar as prioridades para as indústrias
de maquinaria. Era muito jovem, não tinha experiência industrial,
era um intelectual. O que encontrei foi que as poucas máquinas
operatrizes eram alocadas não em conformidade com as necessidades
urgentes da guerra, mas sim de acordo com programas ou
deliberações burocráticas de diferentes setores do
exército, marinha ou aeronáutica. Mas a intenção
era que o equipamento básico fosse distribuído de maneira
igualitária.
GUTMAN: Programas militares conflitantes são exatamente o que temos
hoje. Cada divisão das forças armadas tem seus próprios
bombardeiros e seus próprios aviões de caça.
MAGDOFF:
Exatamente. E suas prioridades também
são conflitantes. Porque há várias outras necessidades:
máquinas operatrizes, rolamentos de esferas, esmeris e trituradores. De
forma que desenvolvi um novo programa de distribuição em pouco
tempo. Mas não quero parecer o único responsável, pois
tive a cooperação e o conselho de especialistas. O grande
problema de uma alocação mais racional e eficiente dos produtos
escassos era coordenar a sua distribuição e ao mesmo tempo
cumprir as prioridades estabelecidas pelos chefes de gabinete e não
aquelas de departamentos isolados e das seções internas desses
departamentos. Para operar as mudanças necessárias,
precisávamos da cooperação de diferentes divisões
militares, dos chefes das fábricas de máquinas operatrizes, e das
equipes de funcionários das fábricas de ferramentas.
Também necessitávamos de dados das companhias, arquivando-os nas
máquinas Hollerith IBM, isso antes do surgimento de máquinas
eletrônicas, para equiparar a lista de prioridades com a
produção das máquinas. O Conselho de
Produção de Guerra estabeleceria a prioridade máxima.
GUTMAN: Então se você necessitasse de rolamentos para as miras de
bombardeiro, eles teriam prioridade sobre outros tipos de rolamentos.
MAGDOFF:
Sim, essa é uma outra história.
Originalmente, eu pensava que os rolamentos pudessem entrar no âmbito de
um planejamento, tal era sua variedade e sua enorme necessidade na
indústria. Tudo o que se movia necessitava de rolamentos de todos os
tipos, rolamentos de esferas, e outros. Por isso a idéia de uma
planificação nessa área parecia quase impossível.
Entretanto, ficou claro que os problemas surgiam mesmo quando muitos rolamentos
de esferas estavam sendo produzidos satisfatoriamente. Por exemplo, houve um
problema com os rolamentos de esferas das miras de bombardeiro Norden dos
aviões enviados para auxiliar o exército sitiado na Europa.
Um pouco antes, eu havia redigido um relatório para o Conselho mostrando
que era provável que ocorresse um problema com os rolamentos. Um membro
do Conselho era líder na fabricação desses rolamentos, e
asseverou que isso era um disparate, que não haveria problema algum.
Então, houve o problema com os rolamentos para as miras Norden, e fui
convocado para resolvê-lo. Achei muito engraçado porque
não sou um homem de fábrica. Mas eles disseram você
sabe como resolver isso. O que fiz foi instalar um sistema de modo que
os produtores de rolamentos pudessem estabelecer prioridades.
GUTMAN: Qual foi a dificuldade?
MAGDOFF:
Planejar dentro das grandes
corporações. Por exemplo, a General Motors tem duas
divisões, cada qual produzindo rolamentos em diferentes cidades. Um
rolamento cónico e outro em forma de esfera. Quando fui para essas duas
divisões, essas duas companhias, eles disseram que o que eu estava
requisitando não poderia ser feito. Então fui a Detroit reunir-me
com o vice-presidente encarregado do material estatístico
necessário para a planificação interna da GM. Expus a ele
o problema e o que necessitávamos para resolvê-lo. Tudo o que ele
disse foi eles disseram que você não poderia fazê-lo.
Eu lhes disse que aquilo era o que queríamos, o que deveria ser
feito". Uma vez que cada uma das companhias se reportava ao centro de
planejamento em Detroit, eles apenas ordenaram que se fizessem as coisas de
outra maneira. Foi muito simples.
GUTMAN: Mas a União Soviética também tinha um sistema
verticalizado.
MAGDOFF:
Bem, a União Soviética tinha outro
problema. Muito do que mencionei, quero deixar claro, baseia-se em
informações que obtive.
Veja por exemplo a fábrica da Ford Motor em River Rouge, que era o sonho
de Henry Ford. Eles tinham uma fundição, uma fábrica de
vidro, tudo; tudo para produzir automóveis completos. Também
tinham uma fábrica de rolamentos.
Agora, você não pode produzir um rolamento de determinado tamanho
necessário. O metal é recortado de uma barra e as peças
são processadas de modo que se produzam diferentes tamanhos
necessários pelas diversas indústrias. A Ford produziu uma
porção de tamanhos de rolamentos que eles não necessitavam
na fábrica e então eles fundiam os que eles não precisavam
e fabricavam de novo. A fábrica de rolamentos não trabalhava
eficientemente e ao fim diminuíram drasticamente a
produção de rolamentos de esfera bem como a de outros componentes.
Trabalhei com a Comissão Russa de Aquisição, porque uma
certa porcentagem de nossos produtos era reservada para a União
Soviética, nosso aliado na guerra. Quando perguntei sobre rolamentos de
esfera, fiquei surpreso. Na União Soviética cada sindicato (como
eles denominavam) fazia sua própria produção de
rolamentos. Era o mesmo tipo de ineficiência verificada na fábrica
da Ford, com seu modo de planejamento. Aqui me baseio num conhecimento muito
superficial, nem poderia chamar isso de conhecimento, mas de inferências
que eu fazia de conversas individuais cinqüenta anos atrás.
O que achei significativo foi que tinham construído sindicatos
auto-suficientes, similares ao sistema da Ford, por sua vez diferente do
sistema da General Motors. Este último baseava-se em fábricas
individualizadas, especializadas em seu próprio campo, competindo entre
si e com outras. Mas os soviéticos tinham uma estrutura de sindicato,
que a meu ver era ligada com a estrutura político-burocrática
geral. O poder alojava-se na direção de uma indústria
particular e cada direção tinha controle sobre cada aspecto do
processo. Mas o sistema mais eficaz, do meu ponto de vista, é quando
você está apto a conectá-lo horizontalmente e não
apenas verticalmente.
Erros são inevitáveis, mas você deve ser capaz de
corrigi-los. Se você tem uma burocracia consolidada com interesses
pessoais e linhas políticas, não é fácil fazer
mudanças, especialmente sem uma estrutura democrática.
GUTMAN: Então um modelo de organização horizontal
é mais produtivo do que o vertical.
MAGDOFF:
Depende do tipo de indústria. Não
é a ciência, mas a prática que conta. Há que se
prestar mais atenção às diferenças regionais, que
são muito importantes. Se você observa os Estados Unidos e compara
a rendimento média per capita entre Connecticut, Massachusetts e Nova
York, ela é maior que em qualquer outro lugar.
GUTMAN: É verdade.
MAGDOFF:
Então você considera o Missouri, a
Louisiana, e o Mississipi e você encontra uma rendimento bem menor, uma
coincidência interessante. Os estados da Nova Inglaterra têm uma
concentração de fábricas bem maior, mesmo possuindo uma
agricultura bastante desenvolvida.
Na União Soviética, as diferenças regionais precisavam ser
consideradas. No entanto, tais diferenças não foram adequadamente
levadas em conta. Analisando friamente, se você tem apenas carvão,
você deve procurar que esse carvão seja distribuído de
forma mais ou menos igualitária entre as diferentes regiões. E
não somente naquelas que são mais industriais. Se você tem
metal, o metal também tem de ser disponibilizado em todos os lugares,
para que todas as regiões possam ser planificadas e se desenvolver.
Agora, isso são modelos. Mas modelos que você deve procurar
aperfeiçoar. Se você não levar em conta as prioridades sob
uma perspectiva social, mas sim em termos técnicos e do interesse
pessoal dos burocratas, você não conseguirá o tipo de
distribuição que necessita.
Atualmente isso está acontecendo na China. Xangai é um
pólo industrial próspero. E as áreas próximas dali
também o são. No entanto, a região oeste apresenta a mais
extrema pobreza. E lá, como já mencionei, você encontra uma
das maiores áreas de epidemia da Sida, nessa região atrasada da
China.
Porém, você não pode mudar tudo da noite para o dia. Mas
você pode direcionar a sociedade num caminho, ou planificar sua
sociedade, tanto politicamente como em termos de planificação
econômica, levando as diferenças regionais em
consideração. Em praticamente todos os países que
conheço, existem diferenças entre populações das
diversas regiões. Você encontra isso até mesmo aqui.
No caso da Inglaterra, cuja revolução industrial tem mais dois
séculos, há um limite céltico. A Irlanda, a
Escócia, o país de Gales e o norte da Inglaterra são
relativamente pobres, e o sul da Inglaterra é rico! Se você
considera a França, o sul é pobre. Na Itália, há
enormes diferenças regionais.
Diferenças que o capitalismo produz. Se você quer ter uma
sociedade decente, que sirva o povo, deve haver um outro caminho. Você
tem que ter equanimidade. E você pode ter equanimidade. Não
somente distribuindo melhor o rendimento, mas também desenvolvendo a
indústria junto com a agricultura, tornando as pessoas das várias
regiões mais autoconfiantes, de modo que possam adquirir certos
benefícios. Isto também significa que, contrariamente aos
princípios ou práticas do capitalismo e imperialismo, mais
capital deve ser tirado dos ricos em prol dos pobres do que o inverso. E o que
você necessita é uma relação social, como a
estabelecida no início da Revolução Russa, quando mais
capital proveio do centro para a periferia do que o contrário.
Então eles tinham teatros de ópera e universidades que
normalmente não existiriam.
GUTMAN: Foi o plano econômico e suas prioridades, ou a falta delas, que
alterou o movimento original do centro para a periferia?
MAGDOFF:
Acho que foi a planificação
econômica aliada à política. Eu acho que foi isso,
não tenho certeza! Tudo o que estou dizendo é eu
acho!.
Creio que a causa era principalmente política. Primeiro, há as
vantagens imediatas de se desenvolver um centro industrial, pois tudo conflui
para isso. E a burocracia, que quer obter as melhores vantagens para si,
não vai se preocupar com as áreas periféricas. Numa
democracia, pode ocorrer justamente o oposto: o governo estipular que as
pessoas a 75 ou 100 milhas de Moscou, possam ter a mesma disponibilidade de
alimentos e recursos que em Moscou. Assim, as pessoas privilegiadas de Moscou
receberiam um pouco menos.
Sempre existe um elemento de sacrifício envolvido quando você faz
esta escolha. A história da indústria automobilística
é um bom exemplo. Se você quisesse usar os recursos para um bom
propósito, por exemplo, reservando o metal para construir em
regiões pobres, economizando combustíveis
não-renováveis, não se teria automóveis
particulares. Teria de se pensar em uma outra organização para
transporte, o que implicaria numa mudança na sociedade, em
vários aspectos. Em termos práticos, isso envolveria uma
alocação de recursos e uma planificação diferentes,
que não poderiam ser realizadas de uma hora para outra. Teria de ser
feita com o consentimento da população, contando com a
disposição de certas camadas para uma dose de sacrifício.
Seria a única maneira.
Desde a revolução industrial tínhamos acreditado que se a
economia se fizesse mais rica, todos seriam beneficiados. Numa das
reuniões em que participei com o exército durante a guerra, eu
queria captar a disposição dos militares no que se referia ao
novo plano proposto para distribuição de maquinaria. Alguns
dentre eles eram muito inteligentes, outros nem tanto. Quando coloquei a
questão, um deles comentou Não o compreendo. A subida da
maré não levanta todos navios?
GUTMAN: Bem, nós ainda ouvimos este refrão o tempo todo.
MAGDOFF:
Não sabia o que dizer! Ele era um major!
Toda sua mentalidade e maneira de pensar estavam ligadas ao mercado ou à
estrutura burocrática das forças militares, sendo incapaz de
analisar sob qualquer outro ângulo.
Na guerra, isso foi claro. Nós tínhamos de ganhá-la.
Quando ela começou a mudar as relações sociais, as
relações humanas, havia muito mais decisões
difíceis a serem tomadas. Poderão ser cometidos erros. O que se
necessita é de uma democracia tal, em que os erros sejam encarados, e
possam se tomar decisões a fim de corrigi-los. É um processo de
aprendizado. Mesmo que você convoque pessoas inteligentes para colocar um
plano em prática, não é possível adivinhar de
antemão todas as respostas. Nem uma universidade só com gente
inteligente o conseguiria isto. Tem de ser feito através do
envolvimento das pessoas, com sua experiência pessoal. Como? É um
outro problema.
GUTMAN: Sem uma ameaça externa como no tempo de guerra, não seria
muito difícil para democracias estabelecer prioridades, especialmente
porque, como você assinalou, elas podem causar sofrimento para algumas
pessoas? Nos Estados Unidos, sempre que pretendemos estabelecer uma prioridade
na assistência médica, e de uma distribuição mais
razoável da rendimento, interesses particulares intervêm.
Não estou falando de pessoas com muito dinheiro, mas de médicos,
cidadãos idosos e pequenos proprietários de classe média.
É como se cada segmento tivesse o seu próprio interesse e
dissesse não podemos planejar dessa forma, como alguns
daqueles majores que disseram não podemos fazê-lo.
MAGDOFF:
Bem, você está formulando
questões difíceis de serem respondidas.
GUTMAN: Penso que devo mesmo perguntar as difíceis.
MAGDOFF:
Não, isso é excepcionalmente
difícil, pelo menos para mim, porque medito sobre isso, e escrevo para
lembrar as pessoas dessa questão. Mas não sei a resposta.
Pense na população negra, na população
hispânica, no pobre; se você tomar uma decisão que dê
a prioridade ao mais pobre, isso pode significar tanto tomar do mais rico como
do menos rico, e também não deixar espaço para muito mais
pessoas terem melhorias no seu padrão de vida. Eles já não
serão capazes de comprar um novo carro ou qualquer carro, ou o que for.
Ainda assim, eles serão a maioria. A questão então
é: como construir uma democracia que não seja simplesmente
uma pessoa um voto? Não sabemos a resposta. Utilizamos o
termo democracia como se todos concordássemos com o seu significado. Mas
não há uma democracia real; não importa quantas pessoas
votem, se é o ricos e seus aliados quem determinam o modo de vida do
restante da população. Não existe democracia se o rico e o
poderoso ditam a norma geral e exploram as nações mais fracas,
onde vive a maioria da população mundial.
Penso que nada disso teria acontecido sem os movimentos sociais, grandes
movimentos sociais, surgidos da classe trabalhadora. Nunca atingiremos isso se
a consciência das pessoas não se transformar. Temos de desenvolver
um novo tipo de democracia, que leve isso em conta.
GUTMAN: Certo.
MAGDOFF:
Mas a consciência não muda da noite
para o dia. Outro problema para se refletir.
GUTMAN: Uma das coisas que admiro em nosso amigo Bernie Sanders (socialista
independente, membro do Congresso de Vermont) é que ele compreende que
existe uma base para um tipo de consenso social na América. Como ele diz
'vamos olhar sob a perspectiva dos mais pobres. A maioria só
tem a ganhar na redistribuição de recursos, mesmo que essa
redistribuição favoreça especialmente os mais
prejudicados.
MAGDOFF:
Pode ser assim, talvez até aconteça a
longo prazo. Mas pode levar muito tempo. A pessoa ou família que possue
uma mansão com vinte quartos e piscina, etc... e que for reinstalada em
apenas um dos quartos, enquanto o resto da casa for reservado para os sem-teto,
não aceitará tão facilmente.
GUTMAN: É verdade, especialmente nos Estados Unidos. O grande
número de pessoas que possuem casas espaçosas, obviamente,
ficaria descontente. Mas não é apenas uma questão de morar
num dos quartos. Se você tomar toda casa com mais de 1000 metros
quadrados e dividi-la em apartamentos, e converter cada segunda casa na
América numa primeira casa para alguém, o país não
seria rico o suficiente para prover moradia para todos?
MAGDOFF:
Bem, não é somente isto. Primeiro de
tudo penso que não é fácil. Para a pessoa que passar por
essa experiência, seria como uma tragédia, pois todo o seu modo de
vida e relações familiares seriam afetados. Seria
necessária uma mudança na consciência das pessoas a fim de
implementar essa medida, e certamente assumi-la dizendo: abro mão
de tudo.
Mas há também outro problema. Não é apenas saber
se há casas suficientes. Se você vai para guetos e
está pensando em termos de espaço para viver, deve descobrir se
não há ratos ou outros animais nocivos, deve pensar em casas
decentes, não casas extravagantes, sem grandes relevos, arejadas, com
espaço para os jovens praticarem esportes e para os idosos caminharem,
com espaço para educação e cultura e assim por diante,
você terá de reorganizar toda a região. E para isso,
você necessitará de aço, concreto, máquinas de
construção, e uma porção de outras coisas. O que
significa que você pode não conseguir suprir tudo que as pessoas
precisam. Esta é a rica América!
GUTMAN: Escolhas difíceis deverão ser feitas.
MAGDOFF:
Nenhum desses problemas poderá ser resolvido
antecipadamente. É bom pensar sobre isso. Mas o que se necessita
é começar. E se começa com uma compreensão de quais
problemas existem e como se deve lidar com a vontade de uma parte da
população que deseja mudanças. Neste processo se
depararão com com os problemas e eles terão de trilhar outros
caminhos para resolvê-los.
Estou consciente que mais pessoas estão preocupadas. Penso que eles
não querem miséria e doenças ao seu redor. Entretanto,
perguntarão: O que vai acontecer conosco?. É um fato.
Pessoas podem mudar, mas isso pode levar uns cem ou duzentos anos para
acontecer. O espírito competitivo é tão
básico como um senso de humanidade ou uma visão, ou o
que quiser. E para substituir um espírito competitivo por um
espírito coletivo, falando em termos de uma coletividade, deve-se
processar uma grande mudança na mentalidade dos seres humanos. A
competitividade está arraigada em nós. Não é
somente circunstancial, é parte de nossa vida. Você é
competitivo na escola, nos esportes, no seu modo de viver, na bela casa em que
você mora, ou na marca do seu carro. E aqui estou sendo um tanto
espirituoso.
GUTMAN: Compreendo.
MAGDOFF:
Isso remete para coisas muito básicas.
Democracia, justiça e o futuro. Você deve pensar sobre isso, e
envolver pessoas na discussão. Primeiro as questão deveriam ser
levantadas e discutidas.
GUTMAN: Na América, hoje, eles não debatem muito.
MAGDOFF:
Não mesmo. Mesmo nos círculos mais
avançados e progressistas, não há muito debatem. Há
somente um desejo geral de algo melhor.
Por isso gosto dessa matéria; é porque necessitamos falar cada
vez mais sobre isso, de modo que centenas de pessoas ouçam. Então
ouvirão. A menos que se discuta e se propagandeie, não
haverá mudança. Precisamos de um exército de
missionários que saiam por aí pregando a justiça e a
igualdade.
GUTMAN: Como você já disse muitas vezes, as pessoas que tem um
mínimo, cujas vidas são as mais miseráveis, deveriam ter o
mesmo direito às oportunidades dos outros.
MAGDOFF:
Eles não terão necessariamente o
mesmo, isso levará um bom tempo. É mais do que propugnar uma mera
divisão igualitária da riqueza. O que eles necessitam são
oportunidades e poder iguais.
GUTMAN: E poder satisfazer suas necessidades básicas: comida, moradia,
assistência médica. Para todos.
MAGDOFF:
Exatamente. Em um dos livros de Bertrand Russell,
Liberdade e Organização (1934), ele diz que o que
você necessita é ter uma distribuição igual de
alimentos e outros itens básicos; depois você poderá
competir e lutar pelas coisas.
GUTMAN: Concordo. Se todos tivessem o suficiente para viver dignamente, com as
mesmas oportunidades, o mundo seria um lugar muito melhor. Não me
importaria se algumas pessoas tivessem um pouco a mais do que outras. Penso que
esse é um dos caminhos para se convencer alguém a abrir
mão de uma parte do que possui. Não necessitamos mais do que
já temos.
MAGDOFF:
Espere aí, não é bem assim.
Você não pode tirar uma conclusão de como eles
pensarão. Apenas tenha isso na agenda, é a coisa mais
importante. Não serão todos que aceitarão isso, existem
pessoas que lutarão. Há pessoas com raiva no
coração. Há pessoas prontas para matar devido a essa
raiva. Nossa sociedade é assim.
Há uma quantidade infernal de problemas que não são
resolvidos tão facilmente. Encarar temas, levantar questões,
discuti-las é o que mais importa, na fase atual. Nada acontecerá
sem isso. Considere o que está acontecendo na China. Eles tiveram uma
infinidade de problemas, e coisas espantosas aconteceram durante a
Revolução Cultural, tanto boas como más. Porém em
anos recentes houve uma mudança. De uma sociedade que trabalhava pela
igualdade, como disse Mao Tsé-Tung, superar as diferenças
entre a população, até a igualdade total, tem-se
agora uma sociedade que criou diferenças entre as pessoas.
GUTMAN: Na China de Mao todos tinham uma dieta adequada.
MAGDOFF:
Nunca foi uma questão de
adequação, as pessoas eram pobres e necessitadas, mas tinham um
prato de comida. Agora, piorou!
GUTMAN: O que quero dizer é que na China, e até a
dissolução da União Soviética, todos tinham comida.
Ainda havia pessoas na União Soviética que tinham de enfrentar
filas para obter pão, mas todos comiam. Não é o caso
atualmente.
MAGDOFF:
Todos tinham um emprego. A despeito dos problemas,
progressos tremendos foram realizados na União Soviética. Minha
tia e tio e cinco crianças, quando os visitamos em Minsk, nos anos 30,
viviam numa casa de dois cômodos em um andar sujo, com um banheiro anexo.
Essa era a sua vida! Mas as crianças iam para a escola, tinham comida,
não era comida requintada mas havia os alimentos básicos.
O ponto é que, hoje, na China, você tem de pagar por
educação e assistência médica. E há pessoas
que não podem pagar. Este é o país sobre o qual, Wassily
Leontief, um economista americano proeminente, que não era socialista,
disse, após viajar por lá, que os 10% de chineses mais pobres
viviam melhor que os 10% mais pobres de qualquer outro país no mundo.
GUTMAN: Então retornemos ao ponto original, o que podemos aprender da
União Soviética e da China?
MAGDOFF:
Penso que o que aconteceu a ambos foi que os
interesses dos mais privilegiados, que queriam manter seus privilégios,
fundiram-se com a mentalidade que subsistiu do velho sistema. Em outras
palavras, foi uma questão de classe. Não no sentido marxista de
questão de classe, de capitalismo ou feudalismo, mas foi uma
questão de classe. Penso que o que Mao disse estava certo. Que há
vícios capitalistas no comitê central.
GUTMAN: Hoje eles reinam livremente, à diferença de antes, quando
ainda não se denominavam capitalistas.
MAGDOFF:
Outra coisa: o que eles têm na China é
muito melhor do que eles têm na Rússia. A Rússia para mim
é uma confusão. A China manteve o Partido Comunista unido.
A China manteve alguns dos elementos mais liberais e radicais no partido e
aí pode estar uma oportunidade para capturarem o partido. Mas
basicamente estão a expulsá-los. Não os expulsam nem os
matam à maneira de Stalin. Mas fazem certas acomodações
de modo a que possam fazer o que querem, de qualquer modo.
O que se verificou na União Soviética foi que depuseram o Partido
Comunista da liderança do Estado. O que você obteve realmente foi
uma virada uma virada brusca para o capitalismo. Ou uma
tentativa de capitalismo. O que se tem é o mesmo que aconteceu nos
primeiros estágios do capitalismo aqui: barões gatunos.
GUTMAN: Capitalismo cowboy.
MAGDOFF:
Muito tempo atrás foi publicado um livro
sobre os julgamentos de Colônia, com uma introdução de
Marx. Ele diz algo como: haverão vitórias e derrotas da
revolução proletária. E mais vitórias que derrotas.
Até que a classe inteira aprenda a ser uma classe dirigente.
GUTMAN: Compreendo.
MAGDOFF:
Tenho visto muitas mudanças acontecendo
nesse período. É somente através de um longo percurso
histórico. Mas nunca irá melhorar, a menos que se sigam as
previsões de Marx. A grande questão é a classe
trabalhadora aprender a desempenhar seu papel dirigente. Isso ela só
irá aprender analisando seus próprios erros.
_____________
[*]
Professor de Inglês na Universidade de Vermont e assessor
principal do congressista Bernard Sanders . É colunista político
no Statesman em Kolkata, India, e também escreve
regularmente editoriais para o Dawn de Karachi, Paquistão,
e Common Dreams, um sítio web progressista. É
co-autor, com Sanders, de Outsider in the House e co-editor de
Technologies of the Self: A Seminar with Michel Foucault.
O original desta entrevista encontra-se na
Monthly Review
, Volume 54, nº 5, Outubro de 2002.
Tradução de Sérgio Ortiz. Mantida a ortografia
brasileira, efectuando-se apenas algumas alterações
mínimas.
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info
|