Imperialismo dentro de casa:
O medo e a resistência
A criação e o cultivo do medo é um dos pilares do
império tanto no estrangeiro como dentro da "pátria
mãe" imperial. E este medo é sempre acompanhado pela
ameaça disciplinar, punição e violência. Todos os
Estados utilizam a violência para impor o seu poder contra os seus
inimigos, mas devemos reconhecer que se verificou uma grande mudança. O
11 de Setembro de 2001 deu um sinal verde para a expansão plena, com
apoio bipartidário, de uma agenda de repressão interna, bem como
para o projecto de expansão imperial no exterior.
Mas é importante, ao falarmos de repressão, contrastarmos sempre
com a sua resistência. À medida que acumulamos evidências
de poder estatal consolidado devemos recordar que uma parte daquilo que
aconteceu a partir do 11 de Setembro inclui o 15 de Fevereiro ou seja, o
15 de Fevereiro deste ano, quando mais de dez milhões de pessoas em todo
o mundo juntaram-se simultaneamente para gritar contra o imperialismo americano.
Esta resistência robusta e unificada ao imperialismo é realmente
nova, mas nos Estados Unidos e alhures ela não nasceu no ar. Ao
nível local, ao nível de pessoa-a-pessoa, um incrível
trabalho de organização foi encaminhado com foco em
prisões, saúde e segurança das mulheres, trabalho,
ambiente, compensações, anti-globalização,
solidariedade com países latino-americano e africanos, e movimentos de
direitos humanos. Lutas contra a pena de morte começaram, sobretudo no
meu estado natural, a conseguir grandes coisas.
Estes movimentos sociais e organização desde baixo são
invisíveis para os jornais americanos e a CNN, mas eles constituem o
caldeirão no qual o povo compreende as conexões entre as
questões para compreender a realidade. E assim como estamos a falar do
cultivo do medo e da repressão, deveríamos notar que aquilo que
parece forte também é fraco. A mensagem enviada pelos media dos
EUA não é necessariamente a mensagem recebida.
Miles Horton fundou o Highlander Center em 1938, naquele tempo um centro para a
organização e educação de adultos de todo o Sul, e
na verdade de todo o país. Ele frequentemente contava uma pequena
história. Em meados da década de 60, o Ku-Klux-Klan colocou uma
série de cartazes por todo o Sul com uma famosa fotografia de Martin
Luther King em Highlander. Ela mostrava várias pessoas do Partido
Comunista, bem como Martin Luther King e Rosa Parks, sentados na fila da frente
de uma sala de aula. Havia um círculo em torno da cabeça do Dr.
King e a legenda "Martin Luther King numa escola de treinamento
comunista".
Miles contou que ia com uma carrada de jovens adolescentes a uma
demonstração de direitos civis no Sul e quando eles passaram por
um desses cartazes ninguém no carro disse nada. E quando passaram por
um segundo, alguém atrás disse "Hummm". E quando
passaram por um terceiro, um garoto no banco trazeiro disse: "Sabe, este
é o cartaz mais idiota que já vi porque eles não nos dizem
a quem chamar". Os poderosos pensam que estão a passar uma
mensagem, mas esta está realmente a ser recebida de outras formas.
O âmbito da actual repressão é vasto, e como
resistências separadas estão a ser criadas, nossa tarefa é
uni-las. Não há pormenor demasiado pequeno para a
repressão neste momento. Estão sob ataque os estatutos da
marijuana médica (um ataque iniciado sob a administração
Clinton), o fim dos estatutos vitais no Oregon, aborto, o judiciário,
protecções ambientais, segurança social,
educação pública, direitos das mulheres e um vasto
conjunto de medidas progressistas desde o controle de nascimento aos
regulamentos OSHA (Occupational Safety and Health Administration). Activistas
culturais de extrema direita e neoconservadores são assinalados para
cada um destes domínios a fim de por em aplicação um plano
reaccionário que foi articulado a partir de 1964. Uma parte da sua
estratégia inclui as guerras culturais e a criminalização
dos anos 60.
O coração da repressão de hoje é o vício
americano de engaiolar pessoas afro-americanas, especialmente homens jovens.
Este é o modelo da gaiola na qual eles agora procuram colocar o mundo
inteiro. O encarceramento em massa de pessoas de cor teve lugar através
de um cultivo muito deliberado do medo, a lenda de uma onda de crimes e a
invenção do mito do super-predador ao longo de uma década
em que as taxas de criminalidade reduziam-se. Os factos chaves acerca dos
Estados Unidos são que a construção de prisões e a
sua dotação em pessoal tornou-se o maior sector dos
orçamentos dos estados, a especialização que mais cresce
nas faculdades de direito é a justiça penal, e os sindicatos que
mais crescem são os de guardas de prisão. Quando Angela Davis
fala do "complexo industrial de prisões" ela não
está a brincar. Ele tornou-se um enorme parte da vida económica,
social e cultural e aquilo que está no seu núcleo é a
prisão de jovens afro-americanos do sexo masculino, numa maioria
esmagadora por ofensas não violentas.
Como aconteceu isto? O campo estava bem preparado na história
americana, mas foi semeado com o desenvolvimento do medo promovido nos
noticiários da noite, a ansiedade de que estranhos estariam a entrar
pela sua janela, as imagens de garotos a atirarem uns nos outros nas escolas
secundárias, e a convicção de que isto provavelmente
estava a acontecer na sua vizinhança, embora todos os factos fossem em
sentido contrário.
E assim o legado da escravidão, a versão nos dias modernos da
escravidão, está reflectido de certa forma nas prisões mas
também é visível na transformação das
escolas. As escolas nos EUA transformaram-se em lugares barricados de medo.
As pessoas que hoje não têm os seu próprios jovens em
escolas não podem perceber o que está a acontecer no ambiente em
que os nossos jovens passam sete horas por dia. Não se pode entrar nem
sair da escola. A vigilância é omnipresente. Há cadeados,
revistas corporais e cães. Há guardas armados. E tudo isto em
escolas que nunca experimentaram um incidente violento. O medo da
violência e a noção de que é provável que
surja de qualquer parte, inclusive da parte dos nossos jovens, foi o precursor
e o teste experimental para aquilo que agora está a acontecer em todos
os nossos espaços públicos e aeroportos.
Agora temos guerra no estrangeiro e guerra dentro de casa. A segunda etapa do
processo é o silenciamento. Ari Fleischer, no dia seguinte ao 11 de
Setembro, proclamou "cuidado com o que você diz" e anunciou que
se não estiver connosco está contra nós. A Jihad
está aqui, dentro de casa, e está a ser imposta pelos
neoconservadores. Considere os anúncios de página inteira que
aparecem no
New York Times
uma vez por mês de pessoas como William Bennett. Tal publicidade
("Americans for Victory over Terrorism") declara como sua finalidade
que "nós nos encarregaremos daqueles que 'culpam a América
primeiro'." O objectivo desta Jihad "contra o terrorismo"
é a população aqui de casa, e assim esta
noção de "nós nos encarregaremos" significa
ameaçar e disciplinar, intimidando e silenciando pessoas como Susan
Sontag, Bill Maher, Danny Glover e instituições
universitárias por todo o país. O resultado é um efeito
gélido. Isto é o mesmo que dizer às pessoas em torno dos
alvos para se afastarem, ficarem silenciosas, não se levantarem pois
elas vêm o custo de simplesmente expressar a sua opinião ou mesmo
fazer uma piada, ficarem publicamente isoladas ao objectarem quanto ao que
está em andamento.
As actuais ferramentas de repressão, o USA Patriot Act e agora a lei que
cria um Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland
Security), foram aprovadas de uma forma que levou mesmo os juristas e
legisladores que as aprovaram a demorarem semanas para perceber o que haviam
feito. As 348 páginas do Patriot Act foram aprovadas duas semanas
após o 11 de Setembro. Ninguém sequer sabia o que estava ou
não na lei de segurança interna até ao momento final, e
ainda o INS está a tentar perceber quais das suas funções
são assinaladas a qual agência.
O Patriot Act criou um novo crime federal: o terrorismo interno. É
importante reconhecer o vasto âmbito daquilo que agora se entender por
"terrorismo". Faço parte de um centro de direito juvenil em
Chicago. Nós representamos crianças em tribunal. Vimos esta
tremenda difusão de jovens estudantes, claro que basicamente jovens
afro-americanos e latinos, serem expulsos de escolas por ameaças
"terroristas". A palavra por si própria cria medo, e nestes
dias quase tudo serve para assustar uma boa parte dos americanos.
Eis a linguagem do Homeland Security Act. "Actos perigosos para a vida
humana que constituem uma violação das leis penais se mostrarem
pretender influenciar a política de um governo por
intimidação ou coerção". Promotores malignos
e juizes (e não temos falta deles) poderiam enquadrar qualquer coisa sob
tal linguagem. "Actos perigosos para a vida humana" podem ser lidos
de forma a incluir tentativas de bloquear qualquer rua na qual haja
tráfego de veículos. E pense por um momento na frase "se
mostrarem pretender influenciar". As ferramentas já estão
no lugar para criminalizar, como terrorismo interno, protestos básicos e
a desobediência civil. Pode alguém duvidar que eles tinham a
Seattle de 1999 em mente?
Os processos que estão a caminho recordam as acusações do
período McCarthy nos princípios dos anos 50, bem como as
acusações de conspiração pré-Watergate do
Departamento de Justiça nos princípios dos anos 70, os dois
período mais recente de repressão política aberta.
Exemplo: John Ashcroft orquestrou uma série de acusações
contra instituições de caridade islâmicas, incluindo a Holy
Land Foundation no Texas e a Benevolent Association em Chicago. No caso de
Chicago, Ashcroft correu a anunciar as acusações. Um ano mais
tarde todas as acusações de terrorismo foram anuladas e o
responsável pela organização alegou uma
acusação de corrupção que envolvia o relato
inadequado da recepção de fundos. Não surpreenderá
ninguém que a cobertura pela TV da acusação fosse
histérica, mas que a da alegação bastante restrita. O
objectivo era habituar o público dos EUA à repressão da
liberdade de associação, e intimidar o judiciário para que
não interfira nisso e eles sem dúvida ficaram satisfeitos
com os resultados.
Agora deve-se olhar para fora, ou pelo menos tão longe quanto
Guantanamo, para ver a plena extensão do que está em andamento.
Aquilo que durante décadas foram restrições aceites ao
poder americano foi estilhaçado. Estamos a falar de tortura e
execuções extrajudiciais ou assassínios. Tivemos agora o
exemplo dos Estados Unidos a executarem pessoas sobre o solo de um Estado em
paz com os Estados Unidos sem nenhuma prova, sem acusações e sem
processo legal de qualquer espécie. A tortura, tal como a
escravidão, é praticamente a única coisa no direito
internacional e nos direitos humanos que é um absoluto. Não
há excepções para isto. A tortura está proibida;
todos os países do mundo assinaram isso. Mas nós temos
Guantanamo. Temos tropas dos EUA e forças da CIA aplicando
"tácticas de pressão e dureza", como eles as chamam, e
temos os EUA reconhecidamente entregando prisioneiros para serem torturados por
outros Estados colaborantes. Isto também não aconteceu no vazio;
as técnicas desenvolvidas nos últimos vinte anos em
"unidade de controle" em maxi-prisões nos Estados Unidos
estão a um passo curto de Guantanamo.
Assim, a curto e longo prazo a nossa tarefa é manter-nos a organizar
politicamente. As estrutura de oposição estão aí.
Precisamos fazer as conexões entre estas questões de modo a que
as pessoas compreendam melhor o poder do Estado e não vejam o
imperialismo apenas como uma política externa opcional. Na escala
humana, é essencial erguermo-nos em solidariedade. Não creio que
se possa subestimar quão importante é, quando alguém
está sob ataque, escrever-lhe uma nota, telefonar-lhe, objectar,
levantar e dizer que você discorda e que você pensa que eles
estão a actuar de forma corajosa. Esse assunto importa. Deixar de
fazer isso é notado, e quando o apoio é expresso ele é
poderoso.
Um amigo e colega de universidade tem estado a divulgar um póster que
fez numa máquina xerox. É uma fotografia desbotada de quatro
idosos americanos nativos na viragem do século nas suas roupas
indígenas. Todos eles estão a segurar rifles e não
estão a posar. Estão de pé com os seus rifles a olhar
directamente para a câmara. E a legenda transversal diz
"segurança interna, combatendo o terrorismo desde 1492". Esta
é a nossa tradição.
[*]
Activista, académico e advogado de menores;
director do Children and Family Justice Center; professor de direito em
Chicago.
A URL do original é
http://www.monthlyreview.org/0703dohrn.htm
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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