Editorial da Monthly Review
[*]
Levou apenas uns poucos meses após o término oficial da Guerra do
Iraque para que os desígnios imperiais dos EUA se deslindassem quase
completamente. A administração Bush está agora sob o fogo
da comunidade de inteligência, dos media e das elites políticas
por ter mentido no seu trajecto para a guerra com as afirmações
respeitantes a armas iraquianas de destruição em massa. Mais
danoso ainda para os planos da administração, a tropas de
ocupação e os seus colaboradores iraquianos estão a ser
mortos numa base quase diária naquilo que agora ganha a aparência
de uma guerra de guerrilha clássica. Isto seria impossível sem o
apoio proporcionado aos insurrectos por secções substanciais da
população iraquiana. Consequentemente, os Estados Unidos
estão a ser obrigados a manter no Iraque maiores contigentes de
forças do que previam (muitas vezes estendendo a permanência das
unidades militares no país) e o término projectado da
ocupação militar americana está a ser prolongado.
O que exactamente ocorreu de errado para frustrar os planos de
ocupação de Washington? Uma resposta foi proporcionada por
Richard Haass, que até Janeiro de 2003 era vice-director de planeamento
político no Departamento de Estado de George W. Bush e é agora
presidente do prestigioso Council on Foreign Relations. Numa entrevista
realizada em 7 de Julho de 2003 pelo Council on Foreign Relations, foi-lhe
perguntado se antes da guerra os planeadores da administração
previram o tipo de desordem que agora aflige o Iraque ocupado. A sua resposta
oferece um raro vislumbre da mentalidade daqueles que actualmente exercem o
poder:
As pessoas [na administração] subestimaram o impacto de vencer a
guerra tão rapidamente e tão discretamente. Quando se examinam
outras operações em grande escala após guerra, como na
Alemanha e no Japão em 1945, verifica-se que são
ocupações que tiveram lugar entre sociedades totalmente
derrotadas, as quais realmente aguentaram o peso de anos e anos de
devastação física. Uma das consequências
irónicas de combater a guerra do Iraque tão discretamente ou
cirurgicamente
é que uma boa parte da população realmente não
sofreu em qualquer grau significativo. Em resultado disso, a
situação no Iraque era algo diferente daquela que as pessoas
haviam planeado, e a população não foi tão
massacrada
(laid low)
a ponto de aceitar a presença pública estrangeira. Por
razões interessantes, alguns dos pressupostos anteriores à guerra
acabaram por se verificar errados.
A afirmação de Haass de que a guerra ao Iraque foi
"discreta" e "cirúrgica" é exagerada. Mas o
seu significado é claro como cristal uma vez que a
comparação é feita com a Alemanha e com o Japão na
Segunda Guerra Mundial. O Iraque não sofreu algo como os
bombardeamentos incendiários de Dresden ou os bombardeamentos
atómicos de Hiroshima e Nagasaki, destinados à virtual
aniquilação de todas as populações urbanas e a
destruição quase total da sua infraestrutura. Consequentemente,
a população iraquiana não foi "deitada abaixo"
("laid low")
num estado de "choque e terror" na mesma extensão. A
suposição aqui é que a matança de centenas de
milhares de pessoas, mesmo de milhões, através da guerra
virtualmente ilimitada e ao longo de períodos extensos e o terror
absoluto que isto implica é mais favorável a uma
ocupação com êxito, porque a subsequente resistência
contra as forças ocupantes provavelmente será menor. Colocado
simplesmente, aqueles que planearam a ocupação do Iraque tomaram
como modelos ocupações que se seguiram a uma guerra inteiramente
diferente daquela que estavam a combater. (Eles ficariam numa
situação melhor se rememorassem a ocupação
americana da Filipinas no princípio do século XX, a qual levou a
uma guerra de guerrilha contra as forças ocupantes que infligiu dez
vezes mais baixas às tropas americanas do que a breve Guerra Hispano
Americana que a antecedeu, e que gerou uma das mais brutais repressões
executada pelas tropas dos Estados Unidos de toda a
história moderna).
NÃO HAVERÁ PLANO MARSHALL PARA O IRAQUE
A comparação com a ocupação da Alemanha e do
Japão é reveladora também num outro sentido. Tanto a
Alemanha como o Japão eram Estados capitalistas altamente
industrializados, já no centro do sistema. Os Estados Unidos, como a
nova potência hegemónica da economia mundial capitalista, planeou,
antes mesmo de a Segunda Guerra Mundial ter acabado, recriá-las como
muralha de protecção contra a União Soviética. O
Iraque, em contraste, continua a ser um Estado do terceiro mundo e não
uma grande potência em termos económicos mundiais. Para os EUA, o
principal interesse no Iraque está no seu petróleo (uma vez que
tem as segundas maiores reservas do mundo), bem como na sua
posição geopolítica, a qual permite aos Estados Unidos
ameaçarem mais efectivamente o Irão e dominarem o Médio
Oriente como um todo. Embora o plano dos EUA seja executar a mudança de
regime no Iraque não há plano para desenvolver aquele país
ou elevá-lo para além da sua actual posição na
hierarquia mundial das nações. Não haverá Plano
Marshall para o Iraque. Ao invés disso o Iraque deverá ser
reconstruído como uma dependência imperial, sob o controle
primário americano. Uma clara indicação disto pode ser
encontrada nas recentes propostas americanas para financiar a
reconstrução do Iraque através da hipoteca da sua futura
produção de petróleo a investidores estrangeiros
(U.S. May Tap Oil for Iraqi Loans, L.A. Times, 13/Jul/2003).
Pouco deste dinheiro é gasto com o povo do Iraque, o qual apesar de
finalmente ter saído de uma ditadura brutal encontra-se ocupado por uma
potência imperial determinada a ditar o seu futuro de acordo com os seus
próprios fins e não os dos iraquianos. Nas palavras de Haass,
não tendo sido "massacrado"
("laid low")
e tendo alguma ideia do futuro que lhes foi suprimido, o povo iraquiano
não está a "aceitar uma presença pública
estrangeira" como os alemães e os japoneses o fizeram antes deles.
Consequentemente, os ataques às forças americanas estão a
aumentar.
Como se relaciona isto com as crescentes divergências no interior dos
círculos de elite nos Estados Unidos? A maior parte das recentes
revelações acerca da desinformação da
administração sobre as armas de destruição
maciças iraquianas relaciona-se com factos suficientemente bem
conhecidos da comunidade de inteligência e na altura, antes da guerra, os
media levantaram questões. Mas enquanto a administração
Bush foi capaz de construir uma força destruidora e enquanto a guerra
pareceu ter êxito não houve críticas sérias por
parte da comunidade de inteligência, dos militares e dos media. Os
políticos simplesmente contiveram as suas línguas. Os
negócios, vendo ganhos potenciais, apoiaram. Só quando a
ocupação começou a entrar numa fase de crise devido
à resistência iraquiana as questões duras começaram
a ser formuladas por elites que subitamente já não se sentiam
confortáveis com o papel americano.
Assim, o factor chave no questionamento da estratégia da
administração é a resistência nacional iraquiana.
Enquanto esta continuar podemos esperar que o desastre da
ocupação americana se torne cada vez pior, mês após
mês, com baixas a aumentarem. E na medida em que isto acontecer
levantar-se-ão inevitavelmente perguntas acerca das razões para a
própria guerra.
Os Editores da Monthly Review
A URL do original é
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