As mentiras, a resistência e o desastre da ocupação

Editorial da Monthly Review [*]

Capa da 'Monthly Review' de Setembro/2003. Levou apenas uns poucos meses após o término oficial da Guerra do Iraque para que os desígnios imperiais dos EUA se deslindassem quase completamente. A administração Bush está agora sob o fogo da comunidade de inteligência, dos media e das elites políticas por ter mentido no seu trajecto para a guerra com as afirmações respeitantes a armas iraquianas de destruição em massa. Mais danoso ainda para os planos da administração, a tropas de ocupação e os seus colaboradores iraquianos estão a ser mortos numa base quase diária naquilo que agora ganha a aparência de uma guerra de guerrilha clássica. Isto seria impossível sem o apoio proporcionado aos insurrectos por secções substanciais da população iraquiana. Consequentemente, os Estados Unidos estão a ser obrigados a manter no Iraque maiores contigentes de forças do que previam (muitas vezes estendendo a permanência das unidades militares no país) e o término projectado da ocupação militar americana está a ser prolongado.

O que exactamente ocorreu de errado para frustrar os planos de ocupação de Washington? Uma resposta foi proporcionada por Richard Haass, que até Janeiro de 2003 era vice-director de planeamento político no Departamento de Estado de George W. Bush e é agora presidente do prestigioso Council on Foreign Relations. Numa entrevista realizada em 7 de Julho de 2003 pelo Council on Foreign Relations, foi-lhe perguntado se antes da guerra os planeadores da administração previram o tipo de desordem que agora aflige o Iraque ocupado. A sua resposta oferece um raro vislumbre da mentalidade daqueles que actualmente exercem o poder:

As pessoas [na administração] subestimaram o impacto de vencer a guerra tão rapidamente e tão discretamente. Quando se examinam outras operações em grande escala após guerra, como na Alemanha e no Japão em 1945, verifica-se que são ocupações que tiveram lugar entre sociedades totalmente derrotadas, as quais realmente aguentaram o peso de anos e anos de devastação física. Uma das consequências irónicas de combater a guerra do Iraque tão discretamente ou cirurgicamente é que uma boa parte da população realmente não sofreu em qualquer grau significativo. Em resultado disso, a situação no Iraque era algo diferente daquela que as pessoas haviam planeado, e a população não foi tão massacrada (laid low) a ponto de aceitar a presença pública estrangeira. Por razões interessantes, alguns dos pressupostos anteriores à guerra acabaram por se verificar errados.

A afirmação de Haass de que a guerra ao Iraque foi "discreta" e "cirúrgica" é exagerada. Mas o seu significado é claro como cristal uma vez que a comparação é feita com a Alemanha e com o Japão na Segunda Guerra Mundial. O Iraque não sofreu algo como os bombardeamentos incendiários de Dresden ou os bombardeamentos atómicos de Hiroshima e Nagasaki, destinados à virtual aniquilação de todas as populações urbanas e a destruição quase total da sua infraestrutura. Consequentemente, a população iraquiana não foi "deitada abaixo" ("laid low") num estado de "choque e terror" na mesma extensão. A suposição aqui é que a matança de centenas de milhares de pessoas, mesmo de milhões, através da guerra virtualmente ilimitada e ao longo de períodos extensos — e o terror absoluto que isto implica — é mais favorável a uma ocupação com êxito, porque a subsequente resistência contra as forças ocupantes provavelmente será menor. Colocado simplesmente, aqueles que planearam a ocupação do Iraque tomaram como modelos ocupações que se seguiram a uma guerra inteiramente diferente daquela que estavam a combater. (Eles ficariam numa situação melhor se rememorassem a ocupação americana da Filipinas no princípio do século XX, a qual levou a uma guerra de guerrilha contra as forças ocupantes que infligiu dez vezes mais baixas às tropas americanas do que a breve Guerra Hispano Americana que a antecedeu, e que gerou uma das mais brutais repressões — executada pelas tropas dos Estados Unidos — de toda a história moderna).

NÃO HAVERÁ PLANO MARSHALL PARA O IRAQUE

A comparação com a ocupação da Alemanha e do Japão é reveladora também num outro sentido. Tanto a Alemanha como o Japão eram Estados capitalistas altamente industrializados, já no centro do sistema. Os Estados Unidos, como a nova potência hegemónica da economia mundial capitalista, planeou, antes mesmo de a Segunda Guerra Mundial ter acabado, recriá-las como muralha de protecção contra a União Soviética. O Iraque, em contraste, continua a ser um Estado do terceiro mundo e não uma grande potência em termos económicos mundiais. Para os EUA, o principal interesse no Iraque está no seu petróleo (uma vez que tem as segundas maiores reservas do mundo), bem como na sua posição geopolítica, a qual permite aos Estados Unidos ameaçarem mais efectivamente o Irão e dominarem o Médio Oriente como um todo. Embora o plano dos EUA seja executar a mudança de regime no Iraque não há plano para desenvolver aquele país ou elevá-lo para além da sua actual posição na hierarquia mundial das nações. Não haverá Plano Marshall para o Iraque. Ao invés disso o Iraque deverá ser reconstruído como uma dependência imperial, sob o controle primário americano. Uma clara indicação disto pode ser encontrada nas recentes propostas americanas para financiar a reconstrução do Iraque através da hipoteca da sua futura produção de petróleo a investidores estrangeiros (“U.S. May Tap Oil for Iraqi Loans,” L.A. Times, 13/Jul/2003).

Pouco deste dinheiro é gasto com o povo do Iraque, o qual apesar de finalmente ter saído de uma ditadura brutal encontra-se ocupado por uma potência imperial determinada a ditar o seu futuro de acordo com os seus próprios fins e não os dos iraquianos. Nas palavras de Haass, não tendo sido "massacrado" ("laid low") e tendo alguma ideia do futuro que lhes foi suprimido, o povo iraquiano não está a "aceitar uma presença pública estrangeira" como os alemães e os japoneses o fizeram antes deles. Consequentemente, os ataques às forças americanas estão a aumentar.

Como se relaciona isto com as crescentes divergências no interior dos círculos de elite nos Estados Unidos? A maior parte das recentes revelações acerca da desinformação da administração sobre as armas de destruição maciças iraquianas relaciona-se com factos suficientemente bem conhecidos da comunidade de inteligência e na altura, antes da guerra, os media levantaram questões. Mas enquanto a administração Bush foi capaz de construir uma força destruidora e enquanto a guerra pareceu ter êxito não houve críticas sérias por parte da comunidade de inteligência, dos militares e dos media. Os políticos simplesmente contiveram as suas línguas. Os negócios, vendo ganhos potenciais, apoiaram. Só quando a ocupação começou a entrar numa fase de crise devido à resistência iraquiana as questões duras começaram a ser formuladas por elites que subitamente já não se sentiam confortáveis com o papel americano.

Assim, o factor chave no questionamento da estratégia da administração é a resistência nacional iraquiana. Enquanto esta continuar podemos esperar que o desastre da ocupação americana se torne cada vez pior, mês após mês, com baixas a aumentarem. E na medida em que isto acontecer levantar-se-ão inevitavelmente perguntas acerca das razões para a própria guerra.

— Os Editores da Monthly Review

A URL do original é http://www.monthlyreview.org/nfte0903.htm

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03/Set/03