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Harry Magdoff, John Bellamy Foster, Robert W. McChesney, Paul Sweezy
Kipling, o 'Fardo do Homem Branco'
e o imperialismo americano
pelos Editores da Monthly Review
Estamos a viver um período em que a retórica do império
conhece poucas limitações. Numa matéria especial sobre
"A América e o império", o número de Agosto da
revista londrina
Economist
perguntou se os Estados Unidos estariam, na eventualidade de
"mudanças de regime...efectuadas pacificamente" no Irão
e na Síria, "realmente preparados para arcar com o fardo do homem
branco em todo o Médio Oriente". A resposta dada foi que isto era
"improvável" o compromisso americano para com o
império não ia tão longe. O que é significativo,
entretanto, é que a questão tenha chegado a ser perguntada.
As actuais guerras americanas no Afeganistão e no Iraque levaram
observadores a perguntarem-se se não haverá semelhanças e
ligações históricas entre o "novo" imperialismo
do século XXI e o imperialismo dos séculos XIX e XX. Jonathan
Marcus, o correspondente sobre defesa da BBC, comentou há uns poucos
meses:
Deveria ser lembrado que, há mais de uma centena de anos, o poeta
britânico Rudyard Kipling escreveu o seu famoso poema intitulado "o
fardo do homem branco" uma advertência acerca das
responsabilidades do império que era destinado não a Londres mas
a Washington e às suas novas responsabilidades imperiais na Filipinas.
Não está claro que o presidente George W. Bush seja leitor de
poesia ou de Kipling. Mas os sentimentos de Kipling são tão
relevantes hoje quanto foram quanto o foram na altura em que o poema foi
escrito, pouco após a Guerra Hispano-Americana. (17/Julho/2003)
Alguns outros proponentes do imperialismo nos dias modernos também
extraíram ilações do poema de Kipling, os quais principiam
pelas linhas:
Aguentem o fardo do Homem Branco
Enviem para a frente o melhor que tenham gerado
(Take up the White Man's burden
Send forth the best ye breed)
Antes de discutir as razões para este súbito interesse renovado
no "Fardo do Homem Branco" de Kipling, é necessário
apresentar alguma informação prévia acerca da
história do imperialismo americano a fim de situar o poema no seu
contexto.
DA GUERRA HISPANO-AMERICANA
À GUERRA FILIPINO-AMERICANA
Na Guerra Hispano-Americana de 1898 os Estados Unidos tomaram as colónias
espanholas no Caribe e no Pacífico, emergindo pela primeira vez como uma
potência mundial.
[1]
Tal como em Cuba, o domínio colonial espanhol nas Filipinas provocou
uma luta de libertação nacional. Imediatamente após o
bombardeamento naval de Manilha, em 1 de Maio de 1898, no qual a frota
espanhola foi destruída, o almirante Dewey enviou uma canhoneira a Hong
Kong para buscar o líder revolucionário filipino Emilio
Aguinaldo. Os Estados Unidos queriam que Aguinaldo liderasse uma nova revolta
contra a Espanha para continuar a guerra antes que chegassem as tropas
americanas. Os filipinos tiveram tanto êxito que em menos de dois meses
derrotaram os espanhóis na ilha principal de Luzon, sitiando as tropas
espanholas remanescentes na cidade capital de Manilha, ao mesmo tempo que quase
todo o arquipélago caía em mãos filipinas. Em Junho os
líderes filipinos emitiram a sua própria Declaração
de Independência baseada no modelo americano. Quando as forças
americanas finalmente chegaram, no fim de Junho, os 15 mil soldados
espanhóis escondidos em Manilha estavam cercados pelo exército
filipino entrincheirado em torno da cidade de modo que as forças
americanas tiveram de pedir permissão para atravessar as linhas
filipinas a fim de enfrentar estas tropas espanholas remanescentes. O
exército espanhol rendeu-se às forças americanas em
Manilha em 13 de Agosto de 1898, depois de apenas umas poucas horas de combate.
Num acordo entre os Estados Unidos e a Espanha, as forças filipinas
foram mantidas fora da cidade e foram postas de parte na
rendição. Esta foi a batalha final daquela guerra. John Hay,
embaixador americano na Grã-Bretanha, apreendeu o espírito
imperialista daquele tempo quando escreveu que a Guerra Hispano-Americana como
um todo fora "uma esplêndida pequena guerra".
Contudo, uma vez ultrapassado o combate com a Espanha, os Estados Unidos
recusaram-se a reconhecer a existência da nova República Filipina.
Em Outubro de 1898 a administração McKinley revelou publicamente
pela primeira vez que pretendia anexar todas as Filipinas. Dizem que ao chegar
a esta decisão o presidente McKinley teria dito que "Deus
Poderoso" ordenara-lhe que fizesse das Filipinas uma colónia
americana. Poucos dias após este anúncio foi estabelecida em
Boston a Liga Anti-Imperialista da Nova Inglaterra. Dentre os seus membros
incluíam-se pessoas célebres como Mark Twain, William James,
Charles Francis Adams e Andrew Carnegie. No entanto, a
administração avançou e em Dezembro concluiu o Tratado de
Paris, pelo qual a Espanha concordava em ceder as Filipinas à nova
potência imperial, bem como suas outras possessões capturadas
pelos Estados Unidos durante a guerra.
A isto seguiu-se um violento debate no Senado acerca da
ratificação do tratado, centrando-se sobre os estatutos da
Filipinas, os quais, excepto para a cidade de Manilha, estavam sob o controle
da nascente República Filipina. Em 4 de Fevereiro de 1899, tropas
americanas com ordens para provocar um conflito com as forças filipinas
que cercavam Manilha foram deslocadas para o terreno contestado que se situava
entre as linhas americanas e filipinas, nos subúrbios da cidade. Quando
se depararam com soldados filipinos os soldados americanos gritaram
"Alto" e a seguir abriram fogo, matando três deles. As
forças americanas começaram imediatamente uma ofensiva geral, com
todo o seu poder de fogo, que equivaleu a um ataque surpresa (os principais
oficiais filipinos estavam longe na altura, a participar de um esplêndido
baile celebratório), infligindo enormes baixas às tropas
filipinas. O
San Francisco Call
relatou em 5 de Fevereiro que no momento em que as notícias chegaram a
Washington McKinley disse a "um amigo íntimo...que na sua
opinião o enfrentamento de Manilha asseguraria a
ratificação do tratado no dia seguinte".
Estes cálculos demonstraram-se correctos e no dia seguinte o Senado
ratificou oficialmente o Tratado de Paris, pondo fim à Guerra
Hispano-Americana cedendo Guam, Porto Rico e Filipinas aos Estados
Unidos, e pondo Cuba sob controle americano. Ele estipulava que os Estados
Unidos pagariam à Espanha 20 milhões de dólares pelos
territórios que haviam ganho por meio da guerra. Mas isto pouco
disfarçava o facto de que a Guerra Hispano-Americana foi uma captura
aberta e sem rodeios de um império colonial ultramarino pelos Estados
Unidos, em resposta à necessidade percebida pelos meios de
negócio americanos, que se recuperavam de uma retracção
económica, de novos mercados globais.
Os Estados Unidos imediatamente impulsionaram a Guerra Filipino-Americana, que
principiara dois dias antes e que demonstrou-se como uma das mais
bárbaras guerras de conquista imperial da história. O objectivo
dos EUA neste período era expandir-se não só no Caribe
como também no Pacífico e através da
colonização das ilhas filipinas ganhar uma entrada no enorme
mercado chinês. (Em 1900, a partir das Filipinas, os Estados Unidos
enviaram tropas
à China para se juntarem a outras potências imperiais no
esmagamento da Rebelião Boxer).
"O Fardo do Homem Branco" de Kipling, com o subtítulo "Os
Estados Unidos e o Arquipélago Filipino", foi publicado no
número de Fevereiro de 1899 do
McClure's Magazine
.
[2]
Fora escrito quando ainda decorria o debate acerca da
ratificação do Tratado de Paris, e enquanto o movimento
anti-imperialista nos Estados Unidos condenava ruidosamente o plano para anexar
as Filipinas. Kipling instava os Estados Unidos, com referência especial
às Filipinas, a juntar-se à Grã-Bretanha na tomada das
responsabilidades raciais do império:
Seus recém-capturados tristes povos,
Semi-diabos e semi-crianças.
(Your new-caught sullen peoples,
Half devil and half child.)
Muitos nos Estados Unidos, incluindo o presidente McKinley e Theodore
Roosevelt, saudaram o apelo violento de Kipling para que os Estados Unidos se
engajassem em "guerras selvagens", principiando pelas Filipinas. O
senador Albert J. Beveridge, de Indiana, declarou: "Deus não
andou a preparar os povos de língua inglesa e teutónicos durante
um milhar de anos para nada senão a vã e ociosa
auto-contemplação e auto-admiração... Ele fez-nos
peritos em governação para que possamos administrar governo entre
povos selvagens e senis". No fim, mais de 126 mil oficiais e soldados
foram enviados para as Filipinas a fim de deitar abaixo a resistência
durante
uma guerra que perdurou oficialmente desde 1899 até 1902 mas que
realmente continuou durante muito mais tempo, com resistência
esporádica ao longo de mais de uma década. As tropas americanas
travaram 2800 confrontos com a resistência filipina. Pelo menos 250 mil
filipinos, a maior parte deles civis, foram mortos, juntamente com 4200
soldados americanos (mais de dez vezes do que o número de baixas fatais
na Guerra Hispano-Americana).
[3]
Desde o princípio ficou claro que as forças filipinas não
eram capazes de rivalizar com os Estados Unidos em termos de guerra
convencional. Elas portanto passaram rapidamente à guerra de guerrilha.
As tropas americanas em guerra com os filipinos jactavam-se, numa popular
canção de marcha, de que "civilizariam com o Krag"
(referindo-se à arma concebida por noruegueses com as quais as
forças americanas eram equipadas). Mesmo assim acabaram por
enfrentar intermináveis pequenos ataques e emboscadas de filipinos, os
quais costumavam usar facas longas conhecidas como bolos. Destes ataques
guerrilheiros resultavam mortes em combate de soldados americanos em pequenos
números mas com regularidade. Tal como em todas as guerras de guerrilha
prolongadas, a força da resistência filipina devia-se ao facto de
ter o apoio da generalidade da população. Tal como o general
Arthur MacArthur (o pai de Douglas MacArthur), que em 1900 tornou-se governador
militar das Filipinas, confidenciou a um repórter em 1899:
Quando comecei a actuar contra estes rebeldes, acreditava que as tropas de
Aguinaldo representavam apenas uma facção. Eu não queria
acreditar que toda a população de Luzon isto é, a
população nativa opunha-se a nós e às nossas
ofertas de ajuda e bom governo. Mas depois de ter avançado mais com
isto, depois de ter ocupado várias cidades e povoados seguidos... fui
relutantemente obrigado a acreditar que as massas filipinas são leais a
Aguinaldo e ao governo que ele encabeça.
Confrontados com uma guerra de guerrilha apoiada pela vasta maioria da
população, os militares americanos responderam a isto
através do reagrupamento das populações em campos de
concentração, incendiando aldeias (os filipinos por vezes eram
forçados a carregarem a gasolina utilizada para incendiar as suas
próprias casas), enforcamentos em massa, seccionamentos a baioneta de
suspeitos, violação sistemática de mulheres e
crianças e tortura. A mais infame técnica de tortura, usada
reiteradamente nesta guerra, era a chamada "cura de água".
Grandes quantidades de água eram despejadas à força nas
gargantas dos prisioneiros. Os seus estômagos ficavam então
salientes de modo que a água era expelida a três pés de
altura "como num poço artesiano". A maior parte das
vítimas morria não muito tempo depois disso. O general Frederick
Funston não hesitou em anunciar que havia pessoalmente enforcado um
grupo de 35 civis suspeitos de apoiarem os revolucionários filipinos. O
major Edwin Glenn não viu qualquer razão para negar a
acusação de que ele fizera um grupo de 47 prisioneiros filipinos
ajoelhar-se e "arrepender-se dos seus pecados" antes de
cortá-los a baioneta e levá-los à morte. O general Jacob
Smith ordenou às suas tropas que "matassem e queimassem", a
alvejarem "todos os grupos superiores a dez" e a transformarem a ilha
de Samar "num imenso deserto". O general William Shafter, na
California, declarou que poderia ser necessário matar a metade da
população filipina a fim de proporcionar a "perfeita
justiça" à outra metade. Durante a Guerra Filipina os
Estados Unidos inverteram as estatísticas de baixas de guerra normais
habitualmente há muito mais feridos do que mortos. Segundo
estatísticas oficiais (discutidas em audiências no Congresso sobre
a guerra) as tropas americanas mataram 15 vezes mais filipinos do que os
feriram. Isto confirma frequentes relatos de soldados americanos de que
combatentes combatentes filipinos feridos e capturados eram executados
sumariamente no local.
A guerra continuou mesmo após a captura de Aguinaldo, em Março de
1901, mas foi declarada oficialmente concluída pelo presidente Theodoro
Roosevelt em 3 de Julho de 1902 numa tentativa de suprimir a
crítica às atrocidades americanas. Naquele momento, a maior
parte das ilhas do norte fora "pacificada" mas a conquista das
ilhas a sul ainda estava em andamento e a luta perdurou durante anos
embora nos Estados Unidos de então os rebeldes fossem caracterizado como
meros bandidos.
Nas Filipinas do sul o exército colonial americano estava em guerra com
filipinos muçulmanos, conhecidos como Moros. Em 1906 foi executado
aquilo que veio a ser conhecido como o
Massacre Moro
, quando pelo menos nove centenas de filipinos, incluindo mulheres
e crianças, foram encurralados numa cratera vulcânica na ilha de
Jolo e metralhados e bombardeados durante dias. Todos os filipinos foram
mortos, ao passo que as tropas americanas sofreram apenas um punhado de baixas.
Mark Twain respondeu aos relatos iniciais (os quais indicavam que aquele
massacre totalizava seiscentos ao invés de novecentos homens, mulheres e
crianças como se verificou depois) com uma sátira amarga:
"Com seiscentos engajados de cada lado, perdermos quinze homens e tivemos
trinta e dois feridos contando aquele nariz e aquele cotovelo. O
inimigo chegava a seiscentos incluindo mulheres e crianças
e nós os liquidámos completamente, não deixando sequer um
bebé vivo para chorar por sua mãe morta.
Esta é incomparavelmente a maior vitória já
alcançada desde sempre pelos soldados cristãos dos Estados Unidos
". Ao ver uma foto amplamente divulgada que mostrava soldados americanos
a olharem para pilhas de filipinos mortos na cratera, W. E. B. Du Bois declarou
numa carta a Moorfield Storey, presidente a Liga Anti-Imperialista (e
posteriormente o primeiro presidente da NAACP - National Association for the
Advancement of Colored People), que ela constituía "a coisa mais
esclarecedora que já vi desde sempre. Quero especialmente tê-la
emoldurada e pendurada na parede da minha sala de conferências para fixar
nos estudantes o que realmente significam as guerra e especialmente a Guerra de
Conquista".
[4]
O presidente Theodore Roosevelt imediatamente cumprimentou o seu bom amigo
general Leonard Wood, o que executou o Massacre Moro, escrevendo:
"Congratulo a si e aos oficiais e homens sob o seu comando pelo brilhante
feito de armas e que o senhor e eles sustentaram tão bem a honra da
bandeira americana". Tal como Kipling, Roosevelt raramente hesitava em
promover a causa imperialista ou promover doutrinas de superioridade racial.
Mas nas novelas de Kipling, as estórias e os versos distinguiam-se pelo
facto de que pareciam, para muitas pessoas no mundo branco, evocar uma causa
transcendente e nobre. Ao mesmo tempo elas não deixavam de estender a
mão e reconhecer o ódio que o colonizado tem pelo colonizador.
Ao conceder a Kipling o Prémio Nobel de Literatura, em 1907, o
Comité Nobel proclamou: "o seu imperialismo não é do
tipo intransigente que não repara nos sentimentos dos outros".
[5]
Era precisamente isto que fazia "O fardo do homem branco" de
Kipling, e outros escritos da sua lavra, tão efectivos como véus
ideológicos para a realidade bárbara.
O ano em que o poema de Kipling apareceu, 1899, marcou não só o
fim da Guerra Hispano-Americana (com a ratificação do Tratado de
Paris) e o princípio da Guerra Filipino-Americana como também o
princípio da Guerra Boer na África do Sul. Elas foram guerras
imperialistas clássicas e geraram movimentos anti-imperialistas e
críticas radicais como resposta. Foi a Guerra Boer que motivou o
Imperialismo, um estudo
(1902), de John A. Hobson, que argumentou: "Em parte alguma sob tais
condições" referindo-se especificamente ao
imperialismo britânico na África do Sul "a teoria do
governo branco como uma garantia de civilização verificou-se
válida". A sentença de abertura do
Imperialismo, etapa superior do capitalismo
, de Lenin, escrito em 1915, declarava que "especialmente a partir da
Guerra Hispano-Americana (1898), e da Guerra Anglo-Boer (1899-1902), a
literatura económica e também a política dos dois
hemisférios tem, cada vez mais, adoptado o termo 'imperialismo' a fim de
definir a era actual".
A MENSAGEM DE KIPLING AOS IMPERIALISTAS
APÓS UMA CENTENA DE ANOS
Embora o imperialismo tenha permanecido uma realidade ao longo do último
século, durante a maior parte do século XX o próprio termo
foi considerado como além do permitido dentro dos círculos
polidos do
establishment
tão grande foi o ultraje anti-imperialista levantado pela Guerra
Filipino-Americana e pela Guerra Boer, e tão efectiva foi a teoria
marxista do imperialismo em arrancar o véu das relações
capitalistas globais. Nestes últimos poucos anos, entretanto,
"imperialismo" tornou-se outra vez um brado de apêlo para
neoconservadores e neoliberais afins. Tal como reconheceu recentemente Alan
Murray, Chefe do Bureau de Washington da CNBC numa declaração
dirigida principalmente às elites: "Todos nós, parece,
somos agora imperialistas" (
Wall Street Journal
, 15/Jul/ 2003).
Se alguém duvidasse por um instante de que a actual expansão do
império americano não é senão a
continuação de uma história de um século do
imperialismo americano além mar, Michael Ignatieff (Professor de
Política dos Direitos Humanos na Kennedy School of Government, de
Harvard) torna isto claro como o dia:
A operação Iraque assemelha-se mais à conquista das
Filipinas entre 1898 e 1902. Ambas foram guerras de conquista, ambas foram
pressionadas por uma elite ideológica sobre um país dividido e
ambas custaram muito mais do que o orçamentado. Tal como no
Iraque, vencer a guerra foi a parte fácil... Mais de 120 mil soldados
americanos foram enviados para as Filipinas a fim de deitar abaixo a
resistência guerrilheira, e 4000 nunca voltaram. Ainda está para
ser visto se o Iraque custará milhares de vidas americanas e se o
público americano aceitará um preço tão pesado para
o êxito no Iraque. (
New York Times Magazine
, 07/Set/2003).
Com representantes do
establishment
a sustentarem abertamente ambições imperialistas, não
deveríamos surpreender-nos com as repetidas tentativas de trazer de volta
o argumento do "fardo do homem branco" de uma forma ou de outra. Nas
páginas de encerramento do seu livro premiado,
The Savage Wars of Peace
,
Max Boot cita o poema de Kipling:
Assuma o fardo do Homem Branco
E obtenha a sua recompensa de sempre:
A censura daqueles que você melhora,
O ódio daqueles que você guarda
(Take up the White Man's burden
And reap his old reward:
The blame of those ye better,
The hate of those ye guard)
Boot insiste em que Kipling estava certo, que "os colonialistas, por toda
a parte, habitualmente recebem poucos agradecimentos no fim". No entanto,
deveríamos ser encorajados, diz-nos ele, pelo facto de que "a maior
parte do povo não resistiu à ocupação americana,
como certamente teria feito se ela tivesse sido desagradável e brutal.
Muitos cubanos, haitianos, dominicanos e outros podem secretamente ter saudado
o domínio americano". A implicação principal de Boot
parece bastante clara os Estados Unidos deveriam outra vez "Assumir
o fardo do Homem Branco". O seu livro, publicado em 2002, termina
argumentando que os Estados Unidos deveriam ter deposto Saddam Hussein e
ocupado o Iraque na altura da Guerra do Golfo de 1991. Aquela tarefa, indicou
ele, ficou por cumprir.
Boot é o antigo editor de peças editoriais de
The Wall Street Journal
, e agora Investigador Senior em Estudos de Segurança Nacional do
Council on Foreign Relations. O título de
The Savage Wars of Peace
foi retirado directamente de uma linha no "Fardo do Homem Branco" de
Kipling. As 428 páginas de Boot com a glorificação das
guerras imperialistas dos EUA receberam o Prémio Best Book de 2002 do
Washington Post, Christian Science Monitor
, e do
Los Angeles Times
e ganharam o Prémio General Wallace M. Greene Jr. 2003 pelo melhor
livro de não ficção relativo à história do
Marine Corps. Boot sustenta que a Guerra Filipina foi "uma das mais
bem sucedidas contra-insurreições travadas por um exército
ocidental nos tempos modernos" e declara que, "pelos padrões
da época, a conduta dos soldados americanos foi melhor do que a
média em guerras coloniais". O papel imperial americano nas
Filipinas, o assunto do "Fardo do Homem Branco" de Kipling,
está portanto a ser apresentado como um modelo para a espécie de
papel imperial que Boot e outros neoconservadores estão agora a
encorajar nos Estados Unidos. Mesmo antes da guerra no Iraque, Ignatieff
observava: "o imperialismo costumava ser o fardo do homem branco. Isto
deu-lhe uma má reputação. Mas o imperialismo não
deixou de ser necessário porque ser politicamente incorrecto"
um ponto que pode muito bem ser lido como estendendo-se ao
próprio "fardo do homem branco". (
New York Times Magazine
, 28/Jul/2002).
A Guerra Filipino-Americana está agora a ser redescoberta como a mais
estreita aproximação da história americana aos problemas
que os Estados Unidos estão a encontrar no Iraque. Além disso,
os Estados Unidos aproveitaram-se dos ataques do 11 de Setembro de 2001 para
intervir militarmente não só no Médio Oriente como
também em todo o globo incluindo as Filipinas onde instalou
milhares de soldados para ajudar o exército filipino a combater os
insurrectos Moro nas ilhas do sul. Neste novo clima imperialista, Niall
Ferguson, Professor de História na Stern School of Business,
Universidade de Nova York, e um dos principais advogados do novo imperialismo,
focou o poema de Kipling "O Fardo do Homem Branco" no seu livro
Empire(2002). "Ninguém", diz-nos Ferguson,
ousaria utilizar uma linguagem tão politicamente incorrecta hoje em dia.
A realidade no entanto é que os Estados Unidos quer se admita
quer não assumiram uma espécie de fardo global, tal como
instava Kipling. Consideram-se responsáveis não só por
travar uma guerra contra o terrorismo e Estados vilões, mas
também por difundir os benefícios do capitalismo e da democracia
além mar. E tal como o Império Britânico antes, o
Império Americano actua para sempre em nome da liberdade, mesmo quando o
seu próprio auto-interesse está em primeiro lugar.
Apesar da alegação de Ferguson de que "ninguém
ousaria" chamar a isto hoje em dia "o fardo do homem branco" por
ser "politicamente incorrecto", referências simpáticas a
esta expressão continuam a aflorar e a maior parte delas nos
círculos privilegiados. Boot que não pode ser considerado
um marginal uma vez que está associado ao influente Council on Foreign
Relations é um bom exemplo. Tal como o próprio Ferguson,
ele tenta incorporar o "fardo do homem branco" dentro de uma longa
história de intervenção idealista, subestimando as
realidades do racismo e do imperialismo. "Nos princípio do
século XX", escreve ele no capítulo final do seu livro
(intitulado "In Defense of the Pax Americana"), "os americanos
falavam da difusão da civilização anglo-saxonica e
assumiam o 'fardo do homem branco', hoje falam de difundir a democracia e
defender direitos humanos. Seja o que for que se chame, isto representa
um impulso idealista que sempre foi uma parte importante do ímpeto americano
para ir à guerra".
Os imperialistas de hoje vêm o poema de Kipling principalmente como uma
tentativa de endurecer a espinha dorsal da classe dirigente americana dos seus
dias como preparação para o que ele chamou "as selvagens
guerras da paz". E é precisamente deste modo que eles agora aludem
aos "fardo do homem branco" em relação ao século
XXI. Assim, para a revista
Economist
a questão é simplesmente se os Estados Unidos estão
"preparados para suportar o fardo do homem branco por todo o Médio
Oriente".
Como analista e como porta-voz do imperialismo, Kipling estava muito acima
disto no sentido de que percebia perfeitamente o assomar das
contradições do seu próprio tempo. Ele sabia que o
Império Britânico estava demasiado estendido e condenado
mesmo que ele lutasse para salvá-lo e para inspirar os Estados Unidos em
ascensão a entrarem na etapa imperial ao lado dele. Apenas dois anos
antes de escrever "O Fardo do Homem Branco" escreveu os seus
celebrados versos, "Recessional":
Chamados para longe, nossos navios fundem-se,
Sobre dunas e cabos mergulha o fogo;
Olhe, todo o nosso esplendor de ontem
Está-se junto a Nínive e Tiro!
Juiz das Nações, poupe-nos por enquanto,
Para que não esqueçamospara que não
esqueçamos!
(Far-called, our navies melt away;
On dune and headland sinks the fire;
Lo, all our pomp of yesterday
Is one with Nineveh and Tyre!
Judge of Nations, spare us yet,
Lest we forgetlest we forget!)
Os Estados Unidos estão agora a abrir caminho para uma nova fase do
imperialismo. Isto será marcado não só por aumentos de
conflitos entre centro e periferia racionalizado no Ocidente pelo
racismo velado e não tão velado mas também pela
crescente rivalidade intercapitalista. Isto provavelmente acelerará o
declínio a longo prazo do Império Americano, ao invés de
reverte-lo. E nesta situação um apelo para um cerrar fileiras
entre aqueles de extracção europeia (o "choque de
civilizações" de Samuel Huntington ou algum substituto)
provavelmente vai tornar-se mais atraente entre as elites americanas e
britânicas. Deveria ser recordado que o "Fardo do Homem
Branco" de Kipling era uma apelo à exploração
conjunta do globo por aqueles a que Du Bois posteriormente chamou "os
mestres brancos do mundo" em face da decadência das fortunas
britânicas.
[6]
Assim, em momento algum deveríamos subestimar a tríplice
ameaça do militarismo, imperialismo e racismo ou esquecer que as
sociedades capitalistas historicamente foram identificadas com todas as
três.
__________________
NOTAS
1- O breve tratamento histórico que se segue da Guerra
Filipino-Americana foi retirado principalmente destas obras: Henry F. Graff,
ed.,
American Imperialism and the Philippine Insurrection: Testimony Taken from
Hearings on Affairs in the Philippine Islands before the Senate Committee on
the Philippines 1902
(Boston: Little, Brown, 1969); Angel Velasco Shaw and Luis H. Francia,
Vestiges of War: The Philippine-American War and the Aftermath of an Imperial
Dream, 18991999
(New York: New York University Press, 2002); Daniel B. Schirmer,
Republic or Empire: American Resistance to the Philippine War
(Cambridge, Mass.: Schenkman, 1972) and How the Philippine-U.S. War
Began,
Monthly Review
, September 1999; Stuart Creighton Miller
, Benevolent Assimilation: The American Conquest of the
Philippines, 18991903
(New Haven: Yale University Press, 1990) ; and Daniel B. Schirmer and Stephen
Rosskamm Shalom,
The Philippines Reader
(Boston: South End Press, 1987).
2- O poema é muitas vezes reproduzido sem o subtítulo. Para uma
versão correcta ver
Kipling's Verse: Definitive Edition
(New York: Doubleday, 1940).
3- Embora um quarto de milhão seja o número
"consensual" dos historiadores, estimativas de mortes filipinas nesta
guerra ascendem a números tão altos como um milhão, o que
teria significado o despovoamento das ilhas em cerca de um sexto.
4- Jim Zwick, ed.,
Mark Twain's Weapons of Satire
(Syracuse, New York: Syracuse University Press, 1992), p. 172. Para
informação sobre o massacre Moro e a citação de W.
E. B. Du Bois ver
www.boondocksnet.com/ai/ail/moro.html
.
O sítio web boondoscksnet de Jim Zwick é uma fonte crucial para
materiais sobre a Guerra Filipino-Americana, respostas contemporâneas ao
"Fardo do Homem Branco" de Kipling, e escritos anti-imperialistas de
Mark Twain.
5- O Comité Nobel estava, entretanto, impressionado sobretudo pela
simpatia de Kipling para com os Boers da África do Sul uma outra
população de colonizadores brancos.
6- Este apelo às elites brancas para dividir o mundo evocou uma resposta
para além da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. A
admiração por Kipling entre as classes dirigentes no centro do
mundo capitalista era mais geral. Como nos diz Hobsbawm: "Quando se
acreditava que o escritor Rudyard Kipling, o bardo do Império
Britânico, estava a morrer de pneumonia em 1899, não só os
britânicos e os americanos sentiram pesar Kipling acabara de
destinar um poema sobre "O Fardo Mundo Branco" aos EUA acerca das
suas responsabilidades na Filipinas mas o Imperador da Alemanha enviou
um telegrama". Eric Hobsbawm, The Age of Empire (New York: Vintage,
1987), p. 82.
O original encontra-se em
http://www.monthlyreview.org/1103editors.htm
.
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
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