1.
Duas proposições intimamente ligadas estão no centro desta
intervenção: se o desenvolvimento no futuro não é
desenvolvimento
sustentável
não existirá nenhum desenvolvimento significativo, não
importando o quanto ele é urgente; apenas tentativas frustradas para
realizar a quadratura do circulo, como as realizadas nas últimas
décadas, marcadas por ainda maiores inapreensíveis teorias e
práticas de modernização, condescendentemente
prescritas para o chamado Terceiro Mundo pelos porta-vozes das antigas
potências coloniais. Como corolário temos que a busca do
desenvolvimento sustentável é inseparável da progressiva
realização da
igualdade substantiva
. Deve também ser sublinhado neste contexto que os obstáculos a
superar dificilmente poderiam ser maiores. Visto que até aos nossos dias
a cultura da
desigualdade substantiva
permanece dominante, apesar dos usuais esforços indiferentes para
contrariar o impacto devastador da desigualdade social pela
institucionalização de alguns mecanismos de
estritamente formal
igualdade na esfera política.
Bem podemos colocar a questão: o que aconteceu no decurso subsequente do
desenvolvimento histórico às nobres ideias proclamadas ao tempo
da Revolução Francesa de
liberdade
,
fraternidade
e
igualdade
, e genuinamente defendidas por muitos durante muitos anos? Porque foram
descartadas em conjunto, frequentemente com não dissimulado desprezo a
fraternidade
e a
igualdade
com a
liberdade
reduzida ao frágil esqueleto do democrático direito a
votar, exercida por um número de pessoas cada vez mais
cépticas e diminutas nos países que se descrevem a eles
próprios como o modelo da democracia? E isso está
longe de constituir todas as más notícias. Pois, como a
história do século XX amplamente demonstra, mesmo as fracas
medidas de igualdade formal são frequentemente consideradas como
insuportáveis luxos para serem praticados, ou abertamente perseguidos
por intervenções ditatoriais.
Após mais de um século de promessas de eliminação,
ou pelo menos, de redução, a desigualdade através da
taxa progressiva e de outras medidas, (desse modo assegurando as
condições de viabilidade social do desenvolvimento), a realidade
é de uma ainda maior desigualdade. O fosso tem aumentado não
apenas entre o norte desenvolvido e o sul
subdesenvolvido mas também no interior dos países
capitalistas avançados. Um recente relatório do Congresso
norte-americano (que não pode ser acusado de
inclinação para o campo da esquerda) admitiu que os
ganhos de
1 por cento
da população norte-americana excedem agora os de
40 por cento
das camadas mais desfavorecidas; número que nas últimas duas
décadas
duplicou
em apenas 20%, escandaloso como é, mesmo no seu
número mais baixo. Estes desenvolvimentos regressivos caminharam de par
com a falsa oposição entre igualdade de resultados e
igualdade de oportunidades, e depois mesmo votado ao abandono com a
adulação da (nunca realizada) ideia de igualdade de
oportunidades. Este resultado não pode ser considerado
surpreendente. Por uma vez o resultado socialmente desafiante
é arbitrariamente eliminado do quadro e substituído pela
oportunidade, sendo esta ultima desprovida de todo o
conteúdo. O termo totalmente vazio de resultados (e pior:
negação de resultados
), igualdade é volvido numa justificação
ideológica da negação prática efectiva de todas as
reais oportunidades de todos os que delas precisam.
Houve um tempo em que os pensadores progressistas da ascendente burguesia
previram optimisticamente que a dominação de um ser humano por
outro seria recordado no futuro como um sonho mau. Henry Home, uma grande
figura da histórica escola escocesa do Iluminismo, vaticinou que
a Razão, reassumindo a sua autoridade soberana, banirá toda a
perseguição, e no próximo século será
pensado como estranho que a perseguição tivesse prevalecido entre
os seres humanos. Talvez seja mesmo posto em dúvida se alguma vez ela
foi realmente colocada em prática.
Ironicamente, à luz em que as coisas se tornaram, o que parece
difícil de acreditar é que os representantes intelectuais da
burguesia ascendente alguma vez possam ter raciocinado nestes termos. Um
gigante do Iluminismo francês do século XVIII, Denis Diderot,
não hesitou em fazer a afirmação radical,
se o trabalhador diário é miserável a nação
é miserável.
Igualmente Rousseau, com extremo radicalismo e cortante sarcasmo,
descreveu a ordem prevalecente de dominação e
subordinação social deste modo: o homem pode ser resumido em
poucas palavras: Tu precisas de mim, porque eu sou rico e tu és
pobre. Chegamos então a um acordo. Eu te permitirei ter a honra de me
servires, com a condição de me outorgares o pouco que te sobra em
troca do sofrimento que terei ao te dirigir.
No mesmo espírito progressista, o grande filósofo italiano
Giambattista Vico insistiu que o culminar do desenvolvimento histórico
é a idade do homem na qual todos se reconhecem como
iguais na natureza humana.
E muito tempo antes Thomas Munzer, o lider Anabaptista da
revolução camponesa alemã prega no seu panfleto contra
Lutero a causa fundamental do avanço do mal social em termos muito
tangíveis, diagnosticando-o como o culto da vendibilidade e
alienação. Ele conclui o seu discurso dizendo o quanto
intolerável era que todas as criaturas possam ser
transformadas em propriedade
os peixes na agua, os pássaros no ar, as plantas na terra.
Isto constituiu uma perspicaz identificação do que foi o
desenrolar em todo o seu poder do curso da história nos três
séculos seguintes. Como convém à realização
paradoxal das antecipações utópicas prematuras, ela
oferece, do ponto de vista vantajoso de um capitalismo muito menos estruturado
em início de desenvolvimento, uma visão muito mais clara dos
perigos que se aproximam do que o que se torna visível para os
participantes directamente envolvidos nas fases mais avançadas. Por uma
vez a tendência social da vendibilidade universal triunfa em sintonia com
a interna necessidade de formação social do capital, o que
aparece a Munzer como uma violação grosseira da ordem natural das
coisas (e, como sabemos, em ultima instância, coloca em perigo a
própria existência da humanidade), parece agora natural,
inalterável, e aceitável aos pensadores que incondicionalmente se
identificam com a ordem social historicamente desenvolvida (e em principio
passível de remoção) dos constrangimentos do capital.
Portanto muita coisa se torna opaca e ofuscada pela alteração do
ponto histórico em que vemos a história. Mesmo o termo crucial de
liberdade sofre uma redução ao seu núcleo
alienado. Em oposição às restrições
políticas da ordem feudal a liberdade é saudada como a conquista
do poder de livremente nos vendermos, através do pretenso
contracto entre iguais, enquanto a sepultura material dos
constrangimentos sociais da nova ordem são ignorados e mesmo
idealizados. Por consequência, o significado original tanto da liberdade
como da igualdade é alterado em determinações abstractas e
auto sustentadas, tornando a ideia de fraternidade o terceiro membro de
uma nobre aspiração então proclamada completamente
redundante de facto.
2.
É o espírito de alienação que deve ser agora
confrontado, a menos que estejamos dispostos a resignar-nos à
aceitação do
status quo
e com ele à perspectiva de uma contínua
paralisação social e autodestruição final
do Homem. Aqueles que são os beneficiários do sistema dominante
de desigualdades gritantes entre partes do mundo desenvolvidas e
subdesenvolvidas, não hesitam em impor, com
o maior cinismo, as consequências da sua irresponsabilidade ao resto do
mundo (como recentemente fizeram ao demarcarem-se do Protocolo de Kyoto e de
outros imperativos ambientais). Isto é justificado pela
insistência de que os países do Sul devam permanecer
presos ao seu actual nível de desenvolvimento, de outro modo iriam
sofrer de um tratamento iniquamente preferencial. Aqui as
potências dominantes têm o descaramento de falar em nome da
igualdade! Em simultâneo aqueles que beneficiam do sistema recusam ver
que a divisão Norte/Sul é a maior deficiência
estrutural de todo o sistema, afectando cada país, mesmo os deles
próprios, mesmo se no momento presente de uma forma menos extrema do que
os chamados países do Terceiro-Mundo. Não obstante, a
tendência em questão está longe de ser animadora mesmo para
os países capitalistas mais avançados. Como
ilustração podemos lembrar o alarmante crescimento de
crianças pobres na Grã-Bretanha: nas últimas duas
décadas,
de acordo com as mais recentes estatísticas, o número de
crianças vivendo abaixo da linha de pobreza foi multiplicado
por três
, e continua a aumentar todos os anos.
A dificuldade para nós é que ver estes assuntos numa
perspectiva de
curto prazo
, como os organismos culturais e políticos dominantes necessariamente os
colocam, trás com isso a tentação de seguir a linha
da menor resistência, levando a nenhuma mudança
significativa. O argumento associado a este modo de colocar o problema é
que os problemas resolveram-se no passado; eles estão limitados a
fazer o mesmo no futuro. Nada poderia ser mais falacioso do que esta
linha de argumentação, precisamente se ela é mais conveniente para os
defensores do
status quo
que não podem enfrentar as contradições explosivas da
nossa perigosa situação a longo prazo. Todavia, como
investigadores do movimento ecológico continuam a lembrar-nos, o longo
prazo não é tão longo como isso, uma vez que as nuvens de
uma catástrofe ambiental estão a ficar mais carregadas no
horizonte. Fechar os olhos não constitui qualquer solução.
Nem
devemos permitir sermos enganados pela ilusão de que o perigo de
confrontações militares devastadoras pertenceria ao passado,
graças aos bons ofícios da Nova Ordem Mundial. Os
perigos no que concerne a esta matéria são tão grandes
como no passado, senão maiores, tendo em conta que nenhuma das
contradições e antagonismos fundamentais foi resolvida
com a implosão da União Soviética. Os recentes
acordos do passado, e o prosseguimento aventureirista do pesadelo da
filha da guerra das estrelas, com a mais coxa
justificação possível de instalação de tais
armas contra estados párias, representam decididos alertas a
este respeito.
Durante muito tempo fomos induzidos a acreditar que todos os
nossos problemas seriam felizmente resolvidos através de um
desenvolvimento e modernização
socialmente neutra. Era suposto que a tecnologia ultrapassasse todos os
obstáculos e dificuldades. Na melhor das hipóteses esta foi uma
ilusão imposta àqueles que, não possuindo qualquer papel
activo nas decisões, continuaram a ter esperança de que
melhorias nas suas condições de existência seriam uma
realidade, como prometido. Através de uma experiência amarga eles
vieram a descobrir que a panaceia tecnológica era uma evasão das
contradições servida por aqueles que detêm as alavancas do
controlo social. A revolução verde na agricultura era
suposto resolver de uma vez por todas o problema da fome e da má
nutrição. Em vez disso, criou corporações
monstruosas como a Monsanto, incrementando o seu poder por todo o mundo de tal
modo que pesticidas mais poderosos se tornam necessários para a
erradicar. Ainda assim, a ideologia do remédio estritamente
tecnológico continua a ser propagandeada. Recentemente, alguns governos,
incluindo o inglês, começaram a falar sobre a vindoura
revolução industrial verde, o que quer que isso possa
significar. O que é claro, todavia, é que esta nova defesa da
panaceia tecnológica é planeada, novamente, como uma fuga
às inerradicáveis dimensões sociais e políticas dos cada
vez mais intensos perigos ambientais.
Não é exagero afirmar que no nosso tempo os interesses daqueles
que não podem nem imaginar uma alternativa de curto prazo à ordem
estabelecida, e a uma singular projecção de
correcções estritamente tecnológicas compatível com
ela, colide directamente com os interesses da sobrevivência da
própria humanidade. No passado, o termo mágico para julgar da
saúde do nosso sistema social era
crescimento
, e mesmo hoje ele permanece o quadro no qual as soluções devem
ser encontradas. Interrogações de
que tipo de crescimento
e
para que fim
são precisamente as que são evitadas pela
glorificação incondicional do crescimento. Este é
especialmente o caso já que a realidade do crescimento sem
restrições sob as nossas condições de
reprodução social é
extremamente esbanjadora
e levam à acumulação de problemas que as futuras gerações
deverão enfrentar por exemplo, um dia, elas irão ter que
enfrentar as
consequências da energia nuclear (pacífica e militar). Primo do
crescimento, o conceito de desenvolvimento, deve também ser alvo de uma
análise crítica. Em tempos ele era acolhido por todos sem
hesitação, e teve grande disseminação no chamado
mundo subdesenvolvido a receita
norte-americana de modernização e
desenvolvimento. Levou algum tempo
até que pudesse ser percebido que existia alguma coisa fatalmente
defeituosa no modelo recomendado. Pois se o modelo norte-americano com o
qual
4 por cento
da população mundial gasta
25 por cento
da energia e recursos estratégicos mundiais, e polui o mundo em cerca
de
25 por cento
fosse seguido em todo o lado, sufocaríamos num instante. Daí a
necessidade de qualificar todo o desenvolvimento futuro como
desenvolvimento sustentável
, de modo a construir o conceito com um conteúdo realmente
factível e socialmente desejável.
3.
O maior desafio do desenvolvimento sustentável, que agora devemos
enfrentar, não pode ser devidamente tratado sem a remoção
dos constrangimentos paralisantes de carácter
adverso
do nosso sistema de reprodução. Esta é a razão
porque não pode ser evitada a questão da
igualdade substantiva
no nosso tempo como o foi no passado. Por
sustentabilidade
significamos o estar realmente
no controlo
dos processos culturais, económicos e sociais vitais através dos
quais os seres humanos não só sobrevivem mas também podem
encontrar satisfação, de acordo com os objectivos que colocam a
si mesmos, em vez de estarem à mercê de imprevisíveis
forças naturais e quase-naturais determinações
sócio-económicas. A ordem social existente é edificada no
antagonismo estrutural entre o capital e o trabalho, requerendo portanto o
exercício de um
controlo externo
sobre todas as forças insubmissas.
Adversariedade
é o acompanhante necessário de tal sistema, não
interessando quão elevados são os desperdícios humanos e
económicos para a sua manutenção.
O imperativo de eliminação de desperdícios está
claramente nos nossos horizontes como a maior exigência do
desenvolvimento
sustentável
. A economia a longo prazo deve ir de mãos dadas com um racional e
humano propósito de
economia
, como é próprio ao núcleo do conceito. Mas o caminho de
economia racional de modo a regular o nosso processo de
reprodução social na base de um controlo
interno/auto-dirigido
, como oposição ao
externo/de-cima-para-baixo
actualmente prevalecente, é radicalmente incompatível com a
desigualdade estrutural e adversariedade
.
Nas nossas sociedades as determinações entrincheiradas e garantes
de desigualdade material são altamente reforçadas pelo modo como
os indivíduos
interiorizam
o seu papel na sociedade, mais ou menos consensualmente resignando
à sua categoria de subordinação aos que tomam
decisões sobre as suas vidas. Esta cultura foi constituída em
paralelo com a formação das novas estruturas de desigualdade do
capital, sobre as fundações iníquas do passado. Houve uma
interacção recíproca
entre as estruturas materiais reprodutivas e a dimensão cultural,
criando um círculo vicioso que prendeu a esmagadora maioria dos
indivíduos no seu estritamente contido domínio de
acção. Se consideramos uma alteração qualitativa
para o futuro, como devemos, o papel vital do processo cultural não pode
ser subestimado. Pois não pode haver uma fuga ao circulo vicioso, a
menos que desenvolvamos alguma espécie de interacção
mas desta vez numa direcção emancipatória
que caracterizou o desenvolvimento social no passado. Nenhuma mudança
instantânea pode ser considerada do presente a longo prazo
insustentável modo de reprodução social para um que
não mais carregue tendências destrutivas intrínsecas. O
sucesso requer a constituição de uma
cultura de igualdade substancial
, com o envolvimento activo de todos, e a
consciência
da nossa própria partilha de
responsabilidade
implícita na operação de um tal modo de tomada de
decisões sem-adversariedade.
Compreensivelmente, mesmo os maiores e mais iluminados pensadores da burguesia
ascendente, como filhos do seu tempo e classe, estavam implicados na
criação da longamente estabelecida cultura de desigualdade
substantiva. Deixem-me ilustrar este ponto com a luta de Goethe com o
significado da fantasia de Fausto, pretendendo representar a busca da
humanidade na realização do seu destino. Como sabemos, de acordo
com o pacto do insatisfeito Fausto com o Diabo, ele está a um passo de
perder a sua aposta (e a sua alma) no momento em que encontra
realização e satisfação na vida. E é deste
modo que esse momento é saudado por Fausto:
Visse eu esse bulício efervescente,
P'ra solo livre pisar com livre gente!
A um momento tal então diria:
Suspende-te, tu que és tão belo!
O rasto dos trabalhos e dos dias,
Nem eternidades podem apagá-lo.
No antegozo de tão feliz evento
Desfruto agora do supremo momento.
No entanto, com suprema ironia, Goethe mostra que o grande entusiasmo de Fausto
está deslocado. Pois o que ele saúda como o grande trabalho de
conquista de terra aos pântanos é os Lémures cavando a sua
sepultura. E apenas uma intervenção celeste pode, no fim, salvar
Fausto, resgatando a sua alma das garras do Diabo. A grandeza de Goethe
é evidente na forma como indica o porquê da busca de Fausto ter
que acabar em ironia e insolúvel ambiguidade, mesmo se Goethe não
se pôde distanciar da visão do mundo do seu herói, apanhado
pela concepção de desigualdade iluminada. Este
é a súmula da visão faustiana:
Apresso-me a
dar corpo ao que pensei
,
Só
a voz do amo
efeito produz.
Erguei-vos todos, escravos, trabalhai!
Fazei que se veja o que imaginei.
Tomai a ferramenta, enxada, pá!
O planeado tem de ser feito, e já.
A clara ordem, o esforço sem detença,
Merecem a mais bela recompensa;
E se queres consumar a obra ingente,
Para mil braços é bastante uma mente.
Claramente a consigna da esmagadora maioria da humanidade para desempenhar o
papel de
mãos
, pedir que
Tomai a ferramenta, enchada, pá!
ao serviço de
uma mente
, e obedecer
a voz do amo
respeitando
A clara ordem, o esforço sem detença
, é absolutamente insustentável a longo prazo, não
importando o quanto faz lembrar o actual estado das coisas. Como podemos
considerar os seres humanos confinados a tal papel de
P'ra solo livre pisar com livre gente!
? As instruções dadas por Fausto ao capataz sobre o modo de
controlar os trabalhadores levam directamente às actuais formas,
reflectindo o mesmo espírito insuportável:
- Como puderes,
Contrata-me trabalhadores,
Prende-os com chicote ou favores,
Força-os, e paga o que quiseres!
Quero notícias dia a dia, e a tempo,
De como vai a escavação do campo.
E que significado podemos nós dar ao grande plano em favor da
humanidade de Fausto quando sabemos que a ordem social do capital
é radicalmente incompatível com o planeamento necessário
para a própria sobrevivência da humanidade? Como
Mefistófeles descreve a perspectiva que se nos apresenta com brutal
realismo:
De que serve tanta coisa criada?
O que se cria desfaz-se logo em nada!
«Acabou-se!» Qual é disto o sentido?
Os
mil braços
ao serviço de
uma mente
não nos oferece, obviamente, nenhuma solução. Nem o
místico coro de anjos na última cena do Fausto de Goethe a
contrariar a ameaça de Mefistófeles de
O que se cria desfaz-se logo em nada!
[1]
Num tempo diferente Balzac, numa das suas grandes novelas, Melmoth Reconciled,
retoma o tema de Fausto, socorrendo de um modo muito diferente Melmoth/Fausto
que, graças ao seu pacto com o diabo, goza de uma saúde
ilimitada ao longo da sua vida. Neste caso não há necessidade de
intervenção divina. Pelo contrário, a
solução é oferecida com extrema ironia e sarcasmo. Melmoth
com muita habilidade salva a sua própria alma quando sente a
morte a aproximar-se e quer romper o pacto com o diabo ao realizar um
acordo com outro homem, Castanier, em apuros por desfalque, trocando a sua alma
em perigo com este, que não hesita em entrar no negócio que lhe
confere saúde ilimitada. E a garantia de Castanier, quando por sua vez
chega à ideia de como se escapar do ultimo problema, é
através da obtenção de uma outra alma em troca da sua,
comprometida com o diabo, continuando de um modo intricado o sarcasmo de
Balzac, o que nos leva até ao profético diagnóstico de
Thomas Munzer da alienação usurpadora. Castanier dirige-se ao
mercado de títulos, absolutamente convencido que terá êxito
em encontrar alguém cuja alma possa obter em troca da dele, dizendo que
no mercado de títulos
mesmo o Espírito Santo tem a sua cotação
(O Banco do Espírito Santo
do Vaticano na lista dos grandes bancos).
No entanto, é suficiente seguir, nem que seja por uns dias os
distúrbios dos mercados de títulos de modo a apercebermos que a
solução de Melmoth/Castanier não é mais realista
hoje do que a intervenção celestial de Goethe. O nosso desafio
histórico de obtenção de condições de um
desenvolvimento sustentável deve ser resolvido de um modo muito
diferente.
Desprender-nos da cultura da desigualdade substantiva e
progressivamente substitui-la por uma alternativa viável é o
caminho que necessitamos seguir.
[1] do Fausto de Goethe, tradução portuguesa por
João Barrento, Ed. Circulo de Leitores, 1999.
[*]
Filósofo.
Conferência dada na Cimeira dos
'Parlamentos Latino-Americanos' sobre a dívida social e
integração latino-americana, em Caracas, 10-13/Jul/2001.
O texto original da conferência encontra-se em
http://www.monthlyreview.org
. Tradução de Paulo Maurício.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info