Quatro dias para declarar uma Guerra Fria
por por Thierry Meyssan
A semana concluída em 16 de Março foi extraordinariamente rica em
acontecimentos.
Mas nenhum dos media "de referência" foi capaz de dar conta dos
mesmos pois todos mascararam deliberadamente alguns dos factos a fim de
proteger a narrativa dos seus governos. Londres tentou provocar um grande
conflito, mas perdeu frente à Rússia, ao presidente Trump e
à Síria.
O governo britânico e alguns dos seus aliados dentre os quais o
secretário de Estado, Rex Tillerson tentaram lançar uma
Guerra Fria contra a Rússia.
O seu plano previa, por um lado, encenar um atentado contra um ex-agente duplo
em Salisbury e, por outro, um ataque químico contra os "rebeldes
moderados" em Ghouta. Os conspiradores pretendiam aproveitar-se do
esforço da Síria para libertar os subúrbios da sua capital
e de uma desorganização da Rússia por ocasião da
eleição presidencial. Na sequência destas
manipulações, o Reino Unido teria pressionado os EUA a bombardear
Damasco, incluindo o palácio presidencial sírio, e pedir à
Assembleia-Geral da ONU para excluir a Rússia do Conselho de
Segurança.
No entanto, os Serviços de Informações sírio e
russo tiveram conhecimento do que se tramava. Obtiveram também a certeza
que os agentes dos EUA que preparavam, a partir da Ghouta, um ataque
químico contra a própria Ghouta não dependiam do
Pentágono, mas antes de uma outra agência dos EUA.
Em Damasco, o vice-ministro das Relações Exteriores,
Fayçal Miqdad, convocou de urgência uma conferência de
imprensa, em 10 de Março, para alertar os seus concidadãos. Por
seu lado, Moscovo primeiro tentou alertar Washington pelos canais
diplomáticos. Mas, sabendo que o Embaixador dos EUA, Jon Huntsman Jr,
é administrador da Caterpillar, a qual forneceu tuneladoras aos
jiadistas para construírem as suas fortificações, tentou
contornar a via diplomática normal.
Eis, pois, como os acontecimentos se encandearam:
12 de março de 2018
O Exército sírio capturou dois laboratórios de armas
químicas, o primeiro a 12 de Março, em Aftris, e o segundo no dia
seguinte, em Chifonya. Enquanto a diplomacia russa pressionava a
Organização para a Proibição de Armas
Químicas (OPAQ) a participar na investigação criminal de
Salisbury.
A primeira-ministra britânica, Theresa May, acusa violentamente a
Rússia, na Câmara dos Comuns, de ter organizado o atentado de
Salisbury. Segundo ela, o ex-agente duplo Serguei Skripal e a sua filha teriam
sido envenenados com uma substância militar neurotóxica do tipo
"desenvolvido pela Rússia" sob o nome de
"novitchok". Sabendo que o Kremlin considera os seus cidadãos
que desertaram como alvos legítimos, seria, pois, altamente
provável que tivesse intervindo na execução do crime.
O "novitchok" é conhecido através do que revelaram duas
personalidades soviéticas, Lev Fyodorov e Vil Mirzayanov. O cientista
Fyodorov publicou um artigo no semanário russo
Top Secret,
em Julho de 1992, alertando para a extrema periculosidade
daquela substância, chamando a atenção contra a
utilização de antigas armas soviéticas, pelos Ocidentais,
para destruir o meio ambiente na Rússia e torná-la
inviável.
Em Outubro de 1992, publicou um segundo artigo no
Novidades de Moscovo
responsável da contraespionagem, Mirzayanov, denunciando a
corrupção de certos generais e o tráfico de
"novitchok" ao qual se dedicariam. Ignorando porém a quem o
teriam podido vender. Mirzayanov foi primeiro preso por alta
traição, depois libertado. Fyodorov morreu na Rússia, em
Agosto passado e Mirzayanov vive exilado nos EUA, onde colaborou com o
Departamento da Defesa.
O "novitchok" foi fabricado num laboratório soviético
em Nurus, no atualmente independente Uzbequistão. Aquando da
dissolução da União Soviética, foi destruído
por uma equipe norte-americana especializada. O Uzbequistão e portanto
os Estados Unidos, obrigatoriamente possuíram e estudaram amostras desta
substância. Ambos são capazes de o produzir.
O ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, Boris Johnson,
convocou o Embaixador russo em Londres, Alexander Yakovenko e apresentou-lhe um
ultimato de 36 horas para verificar se faltava "novitchok" nos seus
stocks. O Embaixador responde-lhe que não faltava nada, porque a
Rússia destruiu a totalidade das armas químicas herdadas da
União Soviética e a OPAQ elaborou um processo verbal sobre o
assunto.
Após uma conversa telefónica com Boris Johnson, o
secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, por sua vez condenou a
Rússia pelo atentado de Salisbury.
Enquanto isto, um debate sobre a situação em Ghouta desenrola-se
no Conselho de Segurança da ONU. A Representante permanente dos Estados
Unidos, Nikki Haley, afirma ali: "Há quase um ano, após o
ataque de gás sarin perpetrado em Khan Cheikoun pelo regime
sírio, os Estados Unidos alertaram o Conselho. Dissemos que, face
à inação sistemática da comunidade internacional,
os Estados, por vezes, são obrigados a agir por eles próprios. O
Conselho de Segurança não agiu, e os Estados Unidos atacaram a
base aérea a partir da qual al-Assad lançou o seu ataque de armas
químicas. Reiteramos hoje o mesmo aviso".
Os Serviços de Informações russos fizeram circular
documentos do Estado-Maior norte-americano, mostrando que o Pentágono
estava prestes a bombardear o palácio presidencial e os
ministérios sírios, seguindo o mesmo modelo da tomada de Bagdade
(3 a 12 de abril de 2003).
Comentando as declarações de Nikki Haley, o Ministério
russo dos Negócios Estrangeiros, que sempre qualificou o caso de Khan
Cheïkhoun de "manipulação ocidental", revelou que
as falsas informações que na altura induziram a Casa Branca em
erro e a levaram a bombardear a base de Al-Shayrat, provinham de um
laboratório britânico que nunca indicou como havia obtido as suas
amostras.
13 de março de 2018
O Ministério russo dos Negócios Estrangeiros publica um
comunicado condenando uma possível intervenção militar dos
EUA e anunciando que se cidadãos russos fossem atingidos em Damasco,
Moscovo ripostaria de maneira proporcional; sendo o Presidente russo
constitucionalmente responsável pela segurança dos seus
concidadãos.
Contornando a via diplomática, o Chefe do Estado-Maior russo, general
Valeri Guerassimov, contacta o seu homólogo americano, general Joseph
Dunford, para o informar sobre os seus receios quanto a um ataque
químico sob falsa bandeira em Ghouta. Dunford toma o assunto muito a
sério e alerta o secretário da Defesa dos EUA, General Jim
Mattis, que menciona o caso ao Presidente Donald Trump. Tendo em vista a
garantia dada pelos russos, segundo os quais este golpe sujo estaria a ser
preparado à revelia do Pentágono, a Casa Branca pede ao Diretor
da CIA, Mike Pompeo, para identificar os responsáveis deste complô.
Ignoramos o resultado dessa investigação interna, mas o
presidente Trump adquiriu a convicção quanto à
implicação do seu secretário de Estado, Rex Tillerson.
Este é imediatamente convidado a interromper a sua viagem oficial em
África e a voltar para Washington.
Theresa May escreve ao secretário-geral da ONU para acusar a
Rússia de ter ordenado o atentado de Salisbury e para convocar uma
reunião de urgência do Conselho de Segurança. De imediato,
expulsa 23 diplomatas russos.
A pedido da Presidente da Comissão do Interior da Câmara dos
Comuns, Yvette Cooper, a secretária britânica do Interior, Amber
Rudd, anuncia que o MI5 (Serviço Secreto Militar) vai reabrir 14
inquéritos sobre mortes que, segundo fontes dos EUA, teriam sido
ordenadas pelo Kremlin.
Ao fazê-lo, o governo britânico adoptou as teorias da professora
Amy Knight. Em 22 de Janeiro de 2018, esta sovietóloga dos EUA publicou
um livro muito estranho:
Ordens para matar: o regime de Putin e o assassinato político.
A autora, que é "a" especialista sobre o antigo KGB,
tenta aí demonstrar que Vladimir Putin é um assassino em
série, responsável por dezenas de assassinatos políticos,
indo desde os atentados de Moscovo, em 1999, até aos da Maratona de
Boston, em 2013, passando pela execução de Alexander Litvinenko
em Londres, em 2006, ou a de Boris Nemtsov em Moscovo, em 2015. No entanto, ela
confessa, espontaneamente, que não existe nenhuma prova das suas
acusações.
Os liberais europeus entram na dança. O antigo primeiro-ministro belga,
Guy Verhofstadt, que preside ao seu grupo no Parlamento Europeu, exorta a UE a
lançar sanções contra a Rússia. O seu
homólogo líder do correspondente Partido britânico, Sir
Vince Cable, propõe um boicote europeu ao Campeonato do Mundo de
futebol. Desde logo, o Palácio de Buckingham anuncia que a
família real cancela a sua viagem à Rússia.
A autoridade reguladora britânica, a Ofcom, anuncia que poderia proibir o
canal de TV
Russia Today
a título de retaliação, muito embora esta não
tenha, de forma alguma, violado as leis britânicas.
O Ministério russo dos Negócios Estrangeiros convoca o Embaixador
britânico em Moscovo para o informar que medidas de reciprocidade lhe
serão indicadas em breve, em retaliação pela
expulsão de diplomatas russos de Londres.
O presidente Trump anuncia no Twitter que demitiu o seu secretário de
Estado, com o qual não tinha ainda entrado em contacto. É
substituído por Mike Pompeo, ex-Director da CIA, que confirmou na
véspera a autenticidade das informações russas
transmitidas pelo general Dunford. Chegado a Washington, Tillerson recebe a
confirmação da sua demissão pelo secretário-geral
da Casa Branca, o general John Kelly.
O ex-secretário de Estado, Rex Tillerson, é originário da
burguesia texana. A sua família e ele próprio fizeram parte dos
Escoteiros norte-americanos, dos quais se tornou o Presidente nacional
(2010-12). Culturalmente próximo da Inglaterra, não hesitou,
assim que se tornou Presidente da mega multinacional Exxon-Mobil (2006-16),
tanto em realizar uma campanha politicamente correta para aceitar jovens gays
nos Escoteiros, como em recrutar mercenários na Guiana Britânica.
Ele seria membro da Pilgrims Society, o mais prestigiado clube anglo-americano,
presidido pela Rainha Isabel II, do qual numerosos membros fizeram parte da
Administração Obama.
Durante as suas funções na Secretaria de Estado, a sua esmerada
educação forneceu uma caução a Donald Trump.
Considerado pela alta sociedade dos EUA como um histrião, ele entrou em
conflito com o Presidente sobre três assuntos importantes que nos
permitem definir a ideologia dos conspiradores:
-
Tal como Londres e o Estado profundo dos EUA, ele considerava
útil diabolizar a Rússia a fim de consolidar o poder dos
anglo-saxónicos no campo ocidental;
-
Tal como Londres, considerava que para manter o colonialismo ocidental
no Médio-Oriente era preciso favorecer o presidente iraniano Xeque
Rohani contra o Guia da Revolução o aiatola Khamenei.
Apoiava
portanto o acordo dos 5+1.
-
Tal como o Estado profundo dos EUA, considerava que a
inclinação da Coreia do Norte em direção aos
Estados Unidos devia permanecer secreta e ser utilizada para justificar um
avanço militar dirigido, na realidade, contra a China Popular. Era,
portanto, favorável a conversações oficiais com Pyongyang,
mas opunha-se a um encontro entre os dois chefes de Estado.
14 de março de 2018
No momento em que Washington está em estado de choque, Theresa May
intervém novamente, na Câmara dos Comuns, para aí
desenvolver a sua acusação, enquanto no mundo inteiro os
diplomatas britânicos tomam a palavra em inúmeras
organizações intergovernamentais para lhes transmitir a mensagem.
Respondendo à primeira-ministra, o deputado blairista Chris Leslie,
qualifica a Rússia de "Estado-canalha" e pede a sua
suspensão do Conselho de Segurança da ONU. Theresa May
compromete-se a examinar a questão, frisando, ao mesmo tempo, que isso
só poderia ser decidido pela Assembleia-Geral a fim de contornar o veto
russo.
O Conselho do Atlântico Norte (NATO) reúne-se em Bruxelas a pedido
do Reino Unido. Os 29 Estados-membros estabelecem uma ligação
entre a utilização de armas químicas na Síria e o
atentado de Salisbury. Eles consideram a Rússia como
"provavelmente" responsável por estes dois acontecimentos.
Em Nova Iorque, o Representante permanente da Rússia, Vasily Nebenzya,
propõe aos membros do Conselho de Segurança a
adopção de uma declaração atestando a sua vontade
comum de lançar luz sobre o atentado de Salisbury e de confiar a
investigação à OPAQ, dentro do respeito pelos
procedimentos internacionais estabelecidos. Mas, o Reino Unido rejeita qualquer
texto que não inclua a expressão segundo a qual a Rússia
seria "provavelmente responsável" pelo atentado.
Durante o debate público que se segue, o Encarregado de Negócios
do Reino Unido, Jonathan Allen, representa o seu país. É um
agente do MI6, que criou o serviço de propaganda de guerra do Reino
Unido e deu o seu apoio ativo aos jiadistas na Síria. Ele declara:
"A Rússia já interferiu nos assuntos de outros
países, a Rússia já violou o Direito Internacional na
Ucrânia, a Rússia despreza a vida de civis, como o demonstra o
ataque a um avião comercial por cima da Ucrânia por
mercenários russos, a Rússia protege o emprego por Assad de armas
químicas (...) O Estado russo é responsável por esta
tentativa de assassínio".
O Representante permanente da França, François Delattre, que em
virtude de um decreto derrogatório do Presidente Sarkozy foi formado no
Departamento de Estado dos EUA, lembra que o seu país lançou uma
iniciativa para pôr fim à impunidade daqueles que utilizam armas
químicas. Ele sugere que esta iniciativa dirigida contra a Síria
poderia ser virada contra a Rússia.
O Embaixador russo, Vasily Nebenzya, lembra que a sessão foi convocada a
pedido de Londres, mas que é pública a pedido de Moscovo. Ele
chamou a atenção para o facto do Reino Unido violar o Direito
Internacional ao evocar este caso no Conselho de Segurança enquanto
mantêm a OPAQ à margem da sua investigação. Fez
ainda notar que se Londres pôde identificar o "novitchok"
é porque possui a fórmula e, portanto, pôde
fabricá-lo. Ele relembra a vontade expressa da Rússia em
colaborar com a OPAQ, no quadro do respeito pelos procedimentos
internacionalmente aceites.
15 de março de 2018
O Reino Unido publica uma declaração conjunta co-assinada, no dia
anterior, pela França, Alemanha, bem como por Rex Tillerson, que era
ainda secretário de Estado dos Estados Unidos. O texto retoma a suspeita
britânica, denunciando o emprego de "um agente neurotóxico de
qualidade militar, de um tipo desenvolvido pela Rússia", afirmando
que é "altamente provável que a Rússia seja
responsável pelo atentado".
O
Washington Post
publica uma carta aberta de Boris Johnson, enquanto o secretário do
Tesouro dos EUA, Steven Mnuchin, lança novas sanções
contra a Rússia. Estas não estão ligadas ao caso em curso,
mas às alegações de ingerência na vida
pública dos EUA. O decreto cita, no entanto, o atentado de Salisbury
como uma prova das ações hipócritas da Rússia.
O secretário da Defesa britânico, o jovem Gavin Williamson,
declara que depois da expulsão dos seus diplomatas a Rússia devia
"calar-se" (sic). É a primeira vez desde o fim da Segunda
Guerra Mundial que um dirigente de um Estado membro permanente do Conselho de
Segurança emprega um tal vocabulário em relação a
outro membro do Conselho. Serguei Lavrov comenta: "É um jovem
encantador. Quer certamente marcar o seu lugar na história fazendo para
isso afirmações chocantes [...] Talvez lhe falte
educação".
Conclusão
Em quatro dias o Reino Unido e os seus aliados lançaram as premissas
de uma nova divisão do mundo, de uma Guerra Fria.
No entanto, a Síria não é o Iraque e a ONU não
é o G8 (do qual a Rússia foi excluída devido à
adesão da Crimeia à sua Federação, e pelo seu apoio
à Síria). Os Estados Unidos não vão destruir
Damasco e a Rússia não será excluída do Conselho de
Segurança. Depois de se ter retirado da União Europeia, depois de
se ter recusado a assinar a Declaração chinesa sobre a Rota da
Seda, o Reino Unido pensava aumentar a sua importância eliminando um
concorrente. Com este golpe manhoso, imaginava adquirir uma nova
dimensão e tornar-se na "Global Britain" anunciada pela Sra.
May. Mas acabou destruindo, ela própria, a sua credibilidade.
20/Março/2018
O original encontra-se em
www.voltairenet.org/article200226.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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