Carta aberta a José María Aznar

por Miguel León-Portilla [*]

Um milhão na manifestação de Madrid. A vocação de cipaio do sr. Aznar foi contestada em toda a Espanha no dia 15 de Fevereiro. Viaja V. Exa., senhor Aznar, para receber instruções do senhor Bush no seu rancho do Texas? Faz escala aqui no México para tentar influenciar o ânimo do presidente Vicente Fox? Recorde V. Exa., senhor Aznar, que milhões de espanhóis, mexicanos e cidadãos de muitos outros países consideram como algo infame e demencial a iminente guerra contra o Iraque. Admitindo que Saddam Hussein é um ditador, não consta que disponha de armas de destruição maciça. Mas o que é certo é que a possível guerra significaria a morte de centenas de milhares ou milhões de inocentes.

Em contraste, a atitude assumida por V. Exas. parece-me radicalmente oposta à trajectória adoptada pelo povo espanhol. Este, de forma pacífica, transitou de uma ditadura para a democracia.

Muito do que ocorreu e ocorre na Espanha interessa profundamente aos mexicanos. Quando nela se rompeu a legitimidade do regime republicano, o presidente Lázaro Cárdenas não teve dúvida em colocar-se ao seu lado. O México, que jamais reconheceu a ditadura franquista, recebeu com os braços abertos muitos milhares de exilados espanhóis. Sua presença e actuação entre nós enriqueceram nossa vida em múltiplos aspectos. Os exilados, tal como muitos outros espanhóis ao longo dos anos, entrelaçaram-se connosco.

A Espanha, o México e toda a Iberoamérica têm muito em comum. Basta dizer que participamos de uma mesma visão do mundo e falamos uma mesma língua. E, se a língua é a pátria, como bem disse Günter Grass, não é preciso acrescentar mais elementos para avaliar nossa afinidade. Por isso nos indigna, senhor Aznar, sua postura no caso do Iraque.

Na Espanha formularam-se os princípios do direito internacional, tal como os dos direitos humanos, com Francisco de Vitoria, Domingo de Soto, Francisco Suárez, Bartolomé de las Casas, Alonso de la Veracruz e outros. Como é possível que ali mesmo o seu actual presidente do governo faça suas as loucuras de um indivíduo eleito sem clareza para a primeira magistratura do país mais poderoso da Terra? Por acaso V. Exa. adere ao senhor Bush precisamente por isto? Que espera ao participar numa agressão que pode ter consequências muito graves? Aceita V. Exa. o perigosíssimo argumento de "uma guerra preventiva"? Se possuir armas de destruição maciça é a razão que se esgrime, então porque não exigir, como solicitou a prémio Nobel da Paz Rigoberta Menchú, que sejam investigados todos os países suspeitos de tê-las? Enquanto não consta que as tenha Saddam Hussein, que foi apoiado pelos Estados Unidos na sua guerra contra o Irão, pode-se duvidar que este a possua? Esqueceu-se de que esse país foi o único na história que, de facto, utilizou-as, e por duas vezes, em Hiroshima e Nagasaki? Ignora que esse mesmo país cometeu atrocidades no Vietname? E, para tocar a própria ferida, peço-lhe que recorde as agressões dos Estados Unidos contra a Espanha na guerra de 1898, contra o México em 1847 e contra muitos países latino-americanos como Cuba, Santo Domingo, Honduras, Nicarágua, Guatemala, Panamá, e intervindo em outros, como as derrubadas de Madero no México, de Arbens na Guatemala e de Allende no Chile. Não sabe, senhor Aznar, que os Estados Unidos estão decididos a lançar-se na guerra e para isso já tem o Iraque cercado com mais de 200 mil homens, com aviões e navios? E não suspeita que, por trás de tudo isso, encontra-se a avidez pelo petróleo? Senhor Aznar, não podemos entender porque, contra a vontade manifesta do povo espanhol, está V. Exa. a conluiar-se com os Estados Unidos. Por favor, senhor Aznar, não venha V. Exa. ao México para induzir-nos a romper uma tradição que honrou a nossa vida diplomática. Recorde que aqui Benito Juárez proclamou o princípio de que o respeito ao direito alheio é a paz.

Terminarei reiterando que a grande maioria dos mexicanos compartilha a decisão do povo espanhol e, uma vez mais, repetimos, enquanto ainda é tempo, Não à guerra.

______________
[*] Historiador mexicano, autor de "La voz de los vencidos" (sobre o genocídio de Tenochticlan). O original deste artigo foi publicado pelo diário mexicano La Jornada e pelo sítio web Rebelión .

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

22/Fev/03