Carta aberta a José María Aznar
por Miguel León-Portilla
[*]
Viaja V. Exa., senhor Aznar, para receber instruções do senhor
Bush no seu rancho do Texas? Faz escala aqui no México para tentar
influenciar o ânimo do presidente Vicente Fox? Recorde V. Exa., senhor
Aznar, que milhões de espanhóis, mexicanos e cidadãos de
muitos outros países consideram como algo infame e demencial a iminente
guerra contra o Iraque. Admitindo que Saddam Hussein é um ditador,
não consta que disponha de armas de destruição
maciça. Mas o que é certo é que a possível guerra
significaria a morte de centenas de milhares ou milhões de inocentes.
Em contraste, a atitude assumida por V. Exas. parece-me radicalmente oposta
à trajectória adoptada pelo povo espanhol. Este, de forma
pacífica, transitou de uma ditadura para a democracia.
Muito do que ocorreu e ocorre na Espanha interessa profundamente aos mexicanos.
Quando nela se rompeu a legitimidade do regime republicano, o presidente
Lázaro Cárdenas não teve dúvida em colocar-se ao
seu lado. O México, que jamais reconheceu a ditadura franquista,
recebeu com os braços abertos muitos milhares de exilados
espanhóis. Sua presença e actuação entre
nós enriqueceram nossa vida em múltiplos aspectos. Os exilados,
tal como muitos outros espanhóis ao longo dos anos,
entrelaçaram-se connosco.
A Espanha, o México e toda a Iberoamérica têm muito em
comum. Basta dizer que participamos de uma mesma visão do mundo e
falamos uma mesma língua. E, se a língua é a
pátria, como bem disse Günter Grass, não é preciso
acrescentar mais elementos para avaliar nossa afinidade. Por isso nos indigna,
senhor Aznar, sua postura no caso do Iraque.
Na Espanha formularam-se os princípios do direito internacional, tal
como os dos direitos humanos, com Francisco de Vitoria, Domingo de Soto,
Francisco Suárez, Bartolomé de las Casas, Alonso de la Veracruz e
outros. Como é possível que ali mesmo o seu actual presidente do
governo faça suas as loucuras de um indivíduo eleito sem clareza
para a primeira magistratura do país mais poderoso da Terra? Por acaso
V. Exa. adere ao senhor Bush precisamente por isto? Que espera ao participar
numa agressão que pode ter consequências muito graves? Aceita V.
Exa. o perigosíssimo argumento de "uma guerra preventiva"? Se
possuir armas de destruição maciça é a razão
que se esgrime, então porque não exigir, como solicitou a
prémio Nobel da Paz Rigoberta Menchú, que sejam investigados
todos os países suspeitos de tê-las? Enquanto não consta
que as tenha Saddam Hussein, que foi apoiado pelos Estados Unidos na sua guerra
contra o Irão, pode-se duvidar que este a possua? Esqueceu-se de que
esse país foi o único na história que, de facto,
utilizou-as, e por duas vezes, em Hiroshima e Nagasaki? Ignora que esse mesmo
país cometeu atrocidades no Vietname? E, para tocar a própria
ferida, peço-lhe que recorde as agressões dos Estados Unidos
contra a Espanha na guerra de 1898, contra o México em 1847 e contra
muitos países latino-americanos como Cuba, Santo Domingo, Honduras,
Nicarágua, Guatemala, Panamá, e intervindo em outros, como as
derrubadas de Madero no México, de Arbens na Guatemala e de Allende no
Chile. Não sabe, senhor Aznar, que os Estados Unidos estão
decididos a lançar-se na guerra e para isso já tem o Iraque
cercado com mais de 200 mil homens, com aviões e navios? E não
suspeita que, por trás de tudo isso, encontra-se a avidez pelo
petróleo? Senhor Aznar, não podemos entender porque, contra a
vontade manifesta do povo espanhol, está V. Exa. a conluiar-se com os
Estados Unidos. Por favor, senhor Aznar, não venha V. Exa. ao
México para induzir-nos a romper uma tradição que honrou a
nossa vida diplomática. Recorde que aqui Benito Juárez proclamou
o princípio de que o respeito ao direito alheio é a paz.
Terminarei reiterando que a grande maioria dos mexicanos compartilha a
decisão do povo espanhol e, uma vez mais, repetimos, enquanto ainda
é tempo, Não à guerra.
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Historiador mexicano, autor de "La voz de los vencidos" (sobre o
genocídio de Tenochticlan). O original deste artigo foi publicado pelo
diário mexicano
La Jornada
e pelo sítio web
Rebelión
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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