A reunião da OMC, em Cancún

por Carlos Flanagan [*]

Camponeses coreanos e de outras partes do mundo, organizados pela Via Campesina, fizeram uma manifestação pacífica no centro de convenções oficial da Reunião Ministerial da OMC, em Cancún. Apesar da dificuldade de acesso, dezenas conseguiram trazer suas flores para homenagear o coreano Lee Kyung-hae, que se suicidou na quarta-feira em protesto contra a OMC.         Começa hoje em Cancún (México) a nona ronda de negociações da Conferência Ministerial da Organização Mundial de Comércio (OMC), que agrupa 146 países membros. A reunião prolongar-se-á até 17 de Setembro.

        Surgida em 1995 como parte da estratégia neo-liberal de dominação traçada no “Consenso de Washington”, a OMC agrupa os membros do finado GATT (sigla em inglês do Acordo Geral de Comércio e Tarifas). A sua trama de complexas negociações e regulamentações, quase ininteligível, salvo para especialistas, constitui em definitivo em conjunto com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, parte substancial dos instrumentos de subjugação da soberania dos povos dos países dependentes pelo imperialismo.

        Da mesma forma que, tanto o Banco Mundial como o FMI, concedem os chamados empréstimos “stand-by”, eufemismo em inglês para “ empréstimo condicionado ”, pelos quais estes organismos concedem créditos leoninos sobretudo aos países dependentes, com a condição de submeterem a sua política económica e social aos seus ditames e aceitarem o férreo controle da sua gestão por meio de missões de fiscalização, a OMC pretende também fixar “as regras do comércio mundial”.

FAZ O QUE EU TE DIGO E NÃO OLHES AO QUE EU FAÇO

Polícia mexicana reprime manifestantes contra a OMC.         É um velho ditado que retrata como poucos a hipocrisia das potências capitalistas quando falam em fixar regras claras e equitativas para o comércio mundial.

        De acordo com o “evangelho neo-liberal”, a fixação dos preços das mercadorias deve ser deixada “ao livre jogo do mercado”. Por isso mesmo e em consequência não é desejável que o Estado intervenha nessa livre interacção da oferta e da procura. Em resumo e falando claro: não pode haver pautas de importação ou subsídios às exportações que protejam a produção nacional da concorrência de outros países, sem importar as assimetrias que resultem da sua diferente escala de país e grau de desenvolvimento económico. Trata-se, uma vez mais da velha fábula da “igualdade” entre o tubarão e a sardinha, que nos pretendem impor como verdade absoluta a “Santíssima Trindade” (ou Tripla Aliança?) das potências europeias, dos EUA e do Japão.

        Mesmo não tendo em conta a mencionada assimetria, seriam coerentes com as suas palavras se nos propusessem a eliminação de barreiras tarifárias e de subsídios às exportações para todos por igual.

        Mas os números, teimosos, mostram algo muito diferente. O próprio Banco Mundial publicou um relatório sobre aquilo que se avançou em matéria de comércio mundial desde a anterior Conferência Ministerial realizada em Novembro de 2001 em Doha (Qatar), sob o lema "As perspectivas económicas mundiais e os países em desenvolvimento 2004: cumprindo a promessa do Programa de Doha". Neste documento torna-se evidente como os países industrializados se negam a baixar ou a eliminar as tarifas sobre os produtos que importam (fundamentalmente matérias-primas) provenientes dos países dependentes, e por sua vez, exigem destes que não protejam as suas economias fixando tarifas sobre os produtos manufacturados de importação, com que as potências os inundam, causando a ruína das indústrias locais, com o consequente desemprego e miséria.

        Diz-se que o Governo dos EUA dá mais dinheiro aos seus agricultores que todo o que destina para a sua ajuda à África; e que enquanto os países industrializados cobram em média cerca de um por cento sobre os produtos manufacturados importadas entre si, cobram 2 por cento aos provenientes da América Latina, 5 por cento aos da Ásia Oriental e 6 por cento aos do Médio Oriente.

"A Mongólia, por exemplo, paga tarifas aos Estados Unidos quase do mesmo montante em dólares que a Noruega, apesar de vender apenas 3 por cento do que vende a Noruega aos EUA. Pode alguém defender que este sistema cumpre a sua função de desenvolvimento para com os pobres?" Defende-o Richard Newfarmer, assessor do Banco Mundial e principal autor do relatório. [1]

Na agricultura, esta duplicidade de discurso é especialmente escandalosa. Exactamente no sector produtivo mais importante para os países dependentes, uma vez que mais de 140 milhões de pessoas dependem dessa actividade produtiva. Os países industrializados pagam fortunas por ano aos seus agricultores que, de acordo com os seus custos de produção, têm prejuízos, mas obtêm avultados benefícios graças a esses subsídios. A União Europeia por exemplo destina 100.000 milhões de dólares por ano para subsidiar os seus agricultores, e nos EUA só os plantadores de algodão recebem à sua conta subsídios à produção no valor de 3.000 milhões de dólares por ano. Isto explica a baixa de preços internacionais dos produtos agrícolas e que encontremos, por exemplo, latas de pêssego em calda europeias a preços mais baixos que os de produção nacional nas prateleiras dos supermercados, com as previsíveis ruinosas consequências para os nossos agricultores.

OS OUTROS PERIGOS QUE NOS AMEAÇAM

        Mas isto ainda não é tudo. A OMC é portadora de outros “vírus” letais para as nossas economias, sob siglas em inglês aparentemente inofensivas; por exemplo TRIPS (acordos de propriedade intelectual relacionados com o comércio), o GATS (acordo sobre o comércio e serviços). Isto é a tentativa de implantar novas regras em matéria de patentes ou serviços, em benefício das grandes corporações transnacionais, tal como tentaram em 1998 com o AMI (Acordo Multilateral de Inverstimentos), negociado em segredo e frustrado logo a seguir, devido a fuga de informação através da Internet, o que provocou uma grande mobilização de repúdio em todo o mundo.

        Utilizando o TRIPS, tentaram apropriar-se da nossa biodiversidade, com os grandes laboratórios farmacêuticos a registarem patentes inclusive de ervas medicinais que integram o acervo cultural milenário dos nossos povos autóctones. Ou recordemos a batalha que travou o Brasil com os EUA sobre patentes de informática que as grandes corporações do Norte pretendiam impor-lhe em detrimento do seu próprio desenvolvimento tecnológico.

        Através do GATS, por exemplo, pretende-se que os países mais empobrecidos abram os seus mercados de serviços – que abarcam tudo, desde energia, combustíveis, telecomunicações, água potável, televisão e entretenimento – às empresas transnacionais. Decerto que é apenas por “acaso” que estas privatizações fazem parte das amáveis recomendações que nos receita o FMI em cada carta de intenção...

Estimados leitores: entendem melhor agora a lei de associação da ANCAP do divertido superior governo, que deveremos repelir no próximo 7 de Dezembro? Ou a licitação do Aeroporto Nacional (?) de Carrasco [2] , a do cais de contentores do porto e a sua dragagem, a PLUNA [3] , a mega-concessão, etc, etc?

        Ante este novo atropelo e para combater estes “vírus” que nos querem inocular, só pode aplicar-se o “remédio infalível” da informação e da mobilização organizada dos nossos povos em defesa da sua soberania, em torno de um programa de profundas mudanças do qual se consciencializem, para a seguir poderem defende-lo até às últimas consequências.

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NOTAS
[1] citação do relatório publicado em "El Tiempo", de Bogotá, de 03/Set/03.
[2] Principal aeroporto do Uruguai [NT]
[3] Primeras Lineas Uruguayas de Navegación Aérea [NT]

Secretário de Relações Internacionais do Partido Comunista do Uruguai.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

14/Set/03