Crítica a John Holloway

por Octávio Rodríguez Araujo [*]

Mudar o mundo sem tomar o poder: Quadratura do círculo ou cubagem da esfera? Comecei a ler com todo o respeito e seriedade o livro mais recente do meu amigo John Holloway até chegar às páginas 41 e 42. Refiro-me a Cambiar el mundo sin tomar el poder, publicado pela Universidade Autónoma de Puebla e pela revista Herramienta, do partido Autodeterminación y Libertad dirigido por Luís Zamora, na Argentina.

        Ao chegar àquelas páginas disse a mim mesmo que teria que escrever sobre o assunto. Não se pode deixar passar em claro que um autor, mesmo sendo nosso amigo, se assuma como sumo pontífice e diga, sem mais nem menos, que “o desafio revolucionário do início do século XXI ” é “mudar o mundo sem tomar o poder”. Não se trata de uma hipótese, mas de uma afirmação. E o seu ponto de partida, a sua nota mais importante, é que o objectivo da revolução é “criar uma sociedade baseada no reconhecimento mútuo da dignidade das pessoas”. O que Holloway não explica é como, a partir de que e com quem se vai criar essa sociedade baseada no reconhecimento mútuo da dignidade das pessoas. De que pessoas fala? Das que vemos na rua subjugando outras? Das que regateiam nos mercados, inclusive os índios que vendem com grande dificuldade o seu artesanato? Das que ultrapassam nos cruzamentos ou não respeitam a fila para apanhar um auto-carro? De que pessoas e de que lugar nos fala Holloway?

        Essas perguntas são meros exemplos, a que poderia juntar muitos outros de pessoas, de todas as classes sociais e etnias, inclusive no âmbito zapatista em Chiapas, que não consideram ou, nalgum momento, não levaram em conta a dignidade das pessoas, nem mesmo na vida quotidiana. O que John pressupõe é que umas pessoas, não alienadas pelas relações de produção e de consumo do capitalismo, que não são influenciadas pela televisão, pela rádio, pela escola nem pela família, nem por tradições e usos e costumes, criarão uma sociedade baseada no reconhecimento mútuo da dignidade. E de onde sairão essas pessoas? E mais, onde se encontram? Gostaríamos de conhecer esse mundo ideal de pessoas boas, honestas, altruístas, solidárias, sem ambições pessoais, desprendidas e bondosas que criarão essa sociedade ou, por acaso, serão essas pessoas comuns e normais, com atitudes mesquinhas e egoísmos, competitivas e e gananciosas, as que criarão essa sociedade baseada no reconhecimento mútuo da dignidade?

        Usemos a mesma dialéctica de Holloway. Se “o que está em discussão na transformação revolucionária do mundo não é quem detém o poder mas a própria existência do poder” (pag. 36), por que não usamos a mesma lógica para a sociedade? Por que não dizemos também que o que está em discussão na transformação revolucionária do mundo não são apenas os que integram a sociedade mas a própria sociedade? A sociedade não é uma abstracção, compõe-se de pessoas concretas com suas qualidades e defeitos; com umas ou outras alienações; com suas influências, assumidas conscientemente ou não; com suas ambições, livres ou alienadas; com seus desejos, válidos ou não para elas e para outras pessoas; etc. Se a sociedade determina de algum modo os indivíduos, estes não determinam também a sociedade? Cada escalão social, inclusive comunitário, tem os seus códigos e estabelece hierarquias e, com esses códigos e hierarquias se entendem e convivem, como se entendem numa determinada língua. Mas os códigos de uns podem não ser compatíveis com os de outros, da mesma maneira que o idioma de uns não é compreensível para outros (e serve, diga-se a propósito, para discriminar o outro). É como se tratasse de um problema de auto-consciência e que esta se assumisse como se toda a gente estivesse psicanalisada ou, para não entrar numa disciplina discutível para muitos, como se todo o mundo fosse perfeito e incapaz de matar ou roubar por comida ou simplesmente para se defender de outros.

        Holloway, como outros, glorifica Seattle como um dos pontos de partida nas lutas contra o neoliberalismo (e anticapitalistas, acrescenta) mas esquece que em 30 de Novembro de 1999 também estiveram nessa cidade do estado de Washington vários sindicatos da AFL-CIO que estão muito longe de ser anticapitalistas e, pior ainda, organizações neo-nazis como a AGAN ( Anti-Globalism Action Network ), também contrárias à globalização neoliberal, e que se apresentaram como National Alliance (Alianza Nacional) cuja finalidade é atrair jovens activistas anti-globalização não politizados. É a diversidade-identidade da sociedade em movimento e, para citar John, fonte de “importantes focos para o movimento anti-poder” (p. 42, nota). Todos ou apenas alguns?

[*] Colaborador do jornal mexicano "La Jornada". Tradução de João Ogando

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09/Nov/02