O Manifesto Comunista e o pensamento histórico

por Virgínia Fontes [*]

Karl Marx jovem O objetivo deste texto é, partindo do Manifesto do Partido Comunista, apresentar alguns traços constitutivos do pensamento histórico elaborado por K. Marx e F. Engels e desenvolvido em sua extensa obra. Toda a reflexão histórica ulterior dialogou com esses autores. A ousadia e a originalidade de suas proposições permanecem atuais, num final de milênio em que nos defrontamos com desafios e transformações a explicar, assim como novas alternativas sociais a construir.

        A genialidade do texto do Manifesto reside no fato de, em algumas poucas páginas, expor uma elaborada reflexão sobre a história. Nele estão presentes os principais pontos que já vinham norteando a reflexão de Engels e de Marx e que se constituirão em referências fundamentais para qualquer pensamento histórico subsequente.

        Antes, porém, de entrarmos nos conceitos e categorias que balizam a reflexão histórica no Manifesto Comunista, vejamos as condições a partir das quais — e contra as quais — construíram-se idéias tão novas e férteis. O século XIX assistiu a uma mudança significativa na forma de conceber a vida social e o processo histórico. Duas tendências principais ancoravam o pensamento histórico na primeira metade do século XIX: sobrevivências do providencialismo cristão, embora bastante alteradas e a generalização do pensamento liberal [1] .

        O providencialismo, enfraquecido pelas árduas contestações que sofrera, ainda exercia algum fascínio sobre o pensamento histórico. Traduzia-se pela suposição da existência de um “plano” exterior ao processo histórico, plano que se realizaria no mundo a partir de desígnios externos. Classicamente, o conhecimento desse plano intangível ocorreria através da Revelação divina e sua concretização deveria ser assegurada através de alguns grupos sociais restritos, tradutores desses desígnios (Igreja ou Monarquia). Em sua forma laicizada, a Razão ocupava o lugar dessa entidade pairando acima e fora da vida social e dos homens. De maneira similar, em ambos os casos, o processo histórico tornava-se apenas uma ilustração de tal “plano”.

        Bastante alterado pelos combates que teve de enfrentar ao longo dos séculos XVII e XVIII, o pensamento de cunho providencialista forneceria ainda o lastro para grandes reações conservadoras do século XIX (como a Santa Aliança) [2] e, de forma “modernizada”, forneceria subsídios para o eurocentrismo, no processo de expansão capitalista. O conhecimento do plano ou dos desígnios divinos transmudava-se, no século XIX, para a certeza de um projeto civilizacional ocidental, de cunho cristão, porém não mais submetido à estreita vigilância de uma única Igreja. Alterava-se, ao deixar de estar submetido ao controle de uma única instituição, ao laicizar seus objetivos, mas mantinha laços com seu antecessor na medida em que se considerava imbuído de uma missão civilizadora assegurada pelo contato com uma entidade própria, de origem divina ou derivada de uma Razão absoluta.

        O pensamento liberal havia se constituído em oposição ao pensamento providencial e religioso. O liberalismo, herdeiro das tentativas anteriores de laicização da reflexão sobre o poder, rejeitava a visão histórica dominante, mas não elaboraria uma preocupação propriamente histórica. Incidindo sobretudo sobre as formas de organizar e/ou controlar o poder, abandonaria os princípios generalizantes para calcar-se nos atributos dos indivíduos. Os liberais enfatizavam a organização do cerne central do poder (o Estado), partindo de uma definição da natureza do homem como base para sua reflexão.

        A sociedade, despida de uma aura externa que a dirigiria e iluminava, deixava de ser uma “humanidade abstrata” e tornava-se o lugar do encontro de indivíduos, palco de um pacto necessário e problemático, pois, ao mesmo tempo que asseguraria a vida, a propriedade e/ou a liberdade, implantaria uma ameaça permanente, o Estado, condição e resultado do pacto. Homens de natureza tornam-se seres sociais (sociedade civil) pela pactação que supõe a obediência a um Estado (sociedade política) cuja base não é mais religiosa, mas resultado do temor de todos. Sua função deveria reduzir-se a assegurar a vida, a propriedade e a paz civil (a ordem).

        Embora sedutora, a imagem metafórica do pensamento liberal não correspondia a nenhum processo histórico efetivo [3] . A sociedade seria apenas uma soma de indivíduos ou teria a sociedade atributos próprios, constituídos de forma endógena e não divina? Essas características seriam de toda a humanidade ou referir-se-iam especificamente a cada agrupamento tomado separadamente? Seriam permanentes ou, ao contrário, estariam sujeitas a mudanças e transformações? Esta última questão interrogava diretamente as duas vertentes, pois ambas calcavam-se em pressupostos imutáveis — uma divindade (ou projeto) intangível e inalterável ou uma “natureza” humana constante e permanente.

        O final do século XVIII verá emergir essa questão de forma inesperada. Um autor em especial formulará uma série de reflexões abrindo uma cunha no pensamento liberal: Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Partindo de Hobbes e de Locke, Rousseau levará o pensamento liberal até seus limites máximos, evidenciando as dicotomias que o forjavam: Estado versus sociedade civil e, sobretudo, indivíduo versus sociedade. Invertendo a concepção liberal de natureza do homem, passa a considerá-la sob dois ângulos distintos e contraditórios: como “boa” natureza, desvirtuada e corrompida por uma sociedade onde imperava a desigualdade, e como “natureza perfectível”, isto é, dotada da capacidade de “desnaturalizar-se”. Essa contradição inauguraria possibilidades inéditas para a ação política, posto que a noção de “natureza oprimida” por uma ordem social injusta conferia dignidade ao descontentamento social e porque sua permanente perfectibilidade abria campo ilimitado para a ação política. Depois de Rousseau, não haveria mais filosofia política como tal. A idéia de natureza do homem esgotara-se. Dois outros critérios assumiriam seu lugar: história e liberdade. Ulteriormente, todas as teorias políticas seriam “filosofias da história” [4] .

        Duas experiências concretas tornariam a “questão social” e, consequentemente, a história, temas centrais: a Independência norte-americana e, sobretudo, a Revolução Francesa. A partir da Revolução francesa, evidenciava-se, tanto entre intelectuais quanto entre os segmentos populares, a existência de características próprias à sociedade, sem se confundirem com os destinos e as opções individuais. Essa percepção, cuja cristalização é longa e difícil, transparecerá também na Economia Política (sob a forma da “tradição”) e em algumas variantes da Filosofia.

        Do pacto como algo já instaurado, emergia na prática política a aventura das conquistas sociais e a possibilidade da participação popular. Mais ainda, evidenciava-se que a questão social não dizia respeito a todos os participantes de forma idêntica. As reivindicações, demandas e exigências dos grupos sociais eram não só diferenciadas, como podiam ser opostas e totalmente contraditórias.

        Outros pensadores enunciariam fórmulas capazes de integrar todas essas interrogações, como Hegel ou, ainda, de procurar intervir na sociedade de forma a incrementar ou reduzir a participação de certos segmentos, de promover o “progresso” ou a “felicidade”  [5] .

        Após a Revolução francesa, o sentimento de incompletude das conquistas sociais remetia diretamente à percepção de uma outra dimensão na vida coletiva, para além de um multidão de indivíduos, para aquém de um projeto teleológico. Essa dimensão corresponde exatamente à percepção da sociedade como local de ação, transformação coletiva e de possibilidades tanto para o conjunto social quanto, em especial, para o pleno desenvolvimento dos indivíduos. A questão social tornava-se um ponto nevrálgico  [6] . Vale ressaltar que não se tratava de uma questão meramente intelectual. Ao contrário, envolvia segmentos sociais crescentes, constantes reivindicações, abafadas ou duramente reprimidas em alguns momentos, virulentas em outros.

        Sob a bandeira da transformação social, moviam-se grupos de operários, camponeses, pobres urbanos, filantropos, filósofos e intelectuais. Procuravam ir mais adiante do que a expressão política então cristalizada em governos liberais do ponto de vista econômico mas conservadores quanto à participação social e política.

        No terreno econômico, descortinava-se um mundo fáustico, repleto unicamente de futuro. A industrialização crescente, a generalização européia da mecanização da produção, amparadas pelos pressupostos da Economia Política (ou da escola histórica escocesa) acreditava numa capacidade produtiva e num domínio sobre a natureza ilimitados. A expansão européia através do mundo, a consolidação do domínio da produção capitalista e a crença no progresso apareciam como justificativas para um presente limitado e desigual, mas portador de um porvir perfeito. Para a concretização de tal futuro prometido, impunha-se disciplinar os indivíduos, controlar seus impulsos, impedir que se manifestassem formas de “bárbarie”  [7] . A desigualdade social era mantida e estimulada, contrapartida de uma inclusão forçada no mundo da produção industrial  [8].

        A Economia Política, ao expor os princípios do valor, da formação de mercados, em suma, os fundamentos capazes de estimular a expansão capitalista, reduzia a história ao crescimento contínuo da produção e da capacidade produtiva. A humanidade, similarmente a uma criança, teria “aprendido” finalmente a produzir em grande escala. O mundo europeu, capitalista e cristão deveria educar e disciplinar os demais, a começar por seus próprios pobres  [9] . A idéia de progresso fincava pé nas estatísticas da produção econômica, as sociedades eram niveladas pelo montante de sua capacidade de produzir. Havia parco espaço, nesse terreno, para a questão social e as reivindicações que portava. Simultaneamente, a Economia Política, em especial David Ricardo, evidenciava o papel de construtor de riquezas — eixo central da produção — do trabalho e dos trabalhadores.

        O Manifesto Comunista aborda diretamente a questão social, encarada como problema prático, como reflexão teórica e como questão histórica. Não procura expor um instantâneo fixo e congelado da sociedade, mas um processo social em constante movimento, contendo em si próprio as forças capazes de levar adiante transformações mais profundas. Dois eixos são centrais: a síntese e prática (a ação). O processo histórico deve ser explicado em sua abrangência maior (síntese), evidenciando as classes sociais e os grupos capazes de levar adiante as possibilidades contidas naquelas circunstâncias (o agente histórico).  [10]

        Antes de sua redação, Marx e Engels realizaram uma série de trabalhos que constituiriam a base para suas análises ulteriores. Na Gazeta Renana (1842), Marx havia abordado o famoso caso do roubo de lenha, mostrando como a apropriação privada das antigas terras comunais na Europa, subvertendo as antigas práticas sociais, transformava em “roubo” o uso que os camponeses tradicionalmente faziam da lenha nas florestas comunais. Embora punissem os camponeses, a expropriação das terras era realizada pelos grandes proprietários, que se assenhoreavam das terras comunais. Marx demonstra, nesse texto, como a consolidação da propriedade capitalista da terra trazia mudanças nas relações jurídicas (a penalização dos camponeses).

        A redação dos Manuscritos de 1844 e da Ideologia Alemã , em 1846 , consolidavam a recusa da intervenção de qualquer fator extra-social na análise do processo histórico. A explicação para o aparecimento das diferentes formas de singularidade (individuais e coletivas) e para as dinâmicas que asseguravam a permanência de determinadas formas sociais ou, ao contrário, estimulavam suas transformações, deveria ser encontrada na vida dos homens em coletividade.

        Marx e Engels superavam e abandonavam o dilema clássico que separava liberais e providencialistas: quem nasceu primeiro, o homem ou a sociedade? Para liberais, um homem de “natureza” “criava” a sociedade. Para os demais, a sociedade era resultado de uma inspiração externa, que a moldava com suas características peculiares  [11] . Marx e Engels criticaram com agudeza o liberalismo, mostrando como o próprio processo de individualização era parte da história, somente compreensível se relacionado à vida social e, em especial, às transformações que geraram o capitalismo  [12] . Com relação aos segundos, evidenciavam como a insistência em pressupostos metafísicos nada mais fazia do que consolidar (e reconstruir) mitologias sobre as quais se assentava o poder, fundamentalmente derivado da exploração do sobretrabalho de enormes contingentes populacionais.

        A história passava a ser pensada como uma dinâmica permanente, mesmo quando a visão à distância só percebia imensas continuidades. Na vida social, nada derivava de um estado de natureza, assim como nada provinha de uma “vontade” ou “razão” externas à vida dos homens nem derivada de alguma gênese imprecisa ou ideal. As sociedades forjam os homens e estes buscam mantê-las ou transformá-las, a partir das condições encontradas.

        Com isso, iluminavam a percepção dos múltiplos conflitos a atravessar os períodos de “permanência”, as lutas, vitórias e derrotas que alteravam cursos, ajustavam ou adaptavam as formas dominantes, assim como em determinados momentos, transformavam completamente as bases da vida em comum.

         Reapropriavam-se criticamente de todas as contribuições disponíveis, oriundas da filosofia alemã, especialmente de Hegel, da reflexão e da prática dos utopistas (como Owen, Fourier e Cabet, mencionados no Manifesto), da Economia Política, da prática política dos movimentos sociais e operários europeus. A redação, por Engels, d'A situação da classe trabalhadora na Inglaterra  (1845) significou um formidável trabalho de pesquisa aplicada. Partindo de elementos de reflexão já instaurados, rompiam com suas bases de sustentação, inauguravam um pensamento original e fecundo, cuja marca principal seria a dimensão crítica .

        Reflexão rebelde em sua própria concepção, o pensamento histórico proposto só ganha consistência com a manutenção de sua rebeldia original: uma crítica permanente, inclusive com relação às suas próprias conclusões. Não há uma “receita” a ser aplicada: há o desafio de ousar pensar de forma crítica, num processo a ser reiterado e reconstruído sem cessar.

        O Manifesto Comunista se inicia por uma provocação política, breve porém incisiva — “um fantasma ronda a Europa: o fantasma do comunismo” — e apresenta as concepções, objetivos e tendências dos comunistas. Antes, porém, de apresentá-las, de definir alianças ou projetos políticos, o primeiro capítulo é dedicado à explanação sobre o processo histórico no qual se constituem tanto os burgueses como os proletários.

        Essa análise é fundamental para a formulação política que o Manifesto estabelecerá mais adiante. Não se trata de um mero “pano de fundo” ilustrativo, com elementos pitorescos ou marcantes pontuando o texto, onde exemplos bem escolhidos e colocados realçariam suas propostas  [13] . Também não há, nesse capítulo, nenhuma descrição exaustiva de qualquer situação específica. Mais significativo ainda, a explicação construída dispensa laivos moralistas, evitando contraposições entre princípios virtuosos e um mundo “contaminado”, assim como não se erige sobre uma base maniqueísta, onde aos “bons” e “puros” opor-se-iam segmentos cruéis e voluntariamente “maus”  [14] .

        A reflexão histórica, como sugere o Manifesto, objetiva identificar os possíveis, através da explicitação da dinâmica social central e de seu percurso. Expõe a espinha dorsal organizadora da produção social e os grupos sociais que a constituem. Liga-se diretamente à prática política, pelo apoio à construção social das vontades coletivas. A referência ao passado afirma-se numa nova dialética, integrando o presente como ponto de partida e o futuro, não como antecipação “visionária”, mas como instigação para a efetivação de possibilidades reais.

        Há, em breves e precisas pinceladas, a explicação de um processo e de suas linhas tendenciais fortes, a começar pela proposição de que a “história de todas as sociedades até hoje foi apenas a história da luta de classes”. Essa afirmação teve leituras dogmáticas e impositivas, buscando a aplicação à la lettre em toda e qualquer circunstância no tempo, transformada em “receita de bolo” da qual se ausentava a reflexão. Gerou-se assim a famosa “teoria das etapas”, em que uma e apenas uma única disputa entre classe dominante e dominada em cada período era levada em consideração. Abandonavam-se os próprios pressupostos de Marx em nome de uma pretensa aplicação positiva de seus princípios.

        No entanto, a riqueza da afirmação permanece intocada. Não é possível pensar no processo histórico e em suas transformações sem levar em consideração as formas de estruturação dos conflitos sociais; mais ainda, nenhuma reflexão histórica ao longo desses 150 anos conseguiu descartar a dinâmica conflitiva dos processos históricos ou separar tal dinâmica da produção da vida social.

        Traduzindo essas colocações abstratas e conceituais para o próprio texto do Manifesto, destacaremos apenas alguns pontos:

1. O capitalismo é apresentado como uma relação social - e não meramente uma maneira de produzir. Esta relação social permite o surgimento e é consolidada, por seu turno, por um tipo de produção — industrial, com o crescimento da divisão do trabalho, com imenso desenvolvimento das forças produtivas e com uma subordinação crescente de toda a vida social a esse sistema produtivo. No Manifesto, cuja ênfase é a divulgação dos princípios do comunismo, este tópico fundamenta todo o texto. Ele será longa e profundamente desenvolvido em outros textos de Marx e Engels, onde evidenciam a matriz profunda do capitalismo: a separação dos trabalhadores dos instrumentos e meios de produção, com a expulsão dos camponeses de suas terras. Isso os torna livres da subordinação anterior aos grandes proprietários de terra, mas despossuídos de qualquer atributo que lhes possa assegurar a garantia de sua sobrevivência. Tornam-se assim “proprietários” de uma única mercadoria: a força de trabalho.

2. a definição de capitalismo, presente no Manifesto e em outros textos, não se limita à descrição da vida na Inglaterra ou em qualquer país específico. O território de sua emergência é europeu, mas atravessa as fronteiras nacionais. A relação social que envolve capitalistas e operários surge em diferentes locais e com colorações específicas, encontrando na Inglaterra seu modelo mais completo. Sua dinâmica não pode ser reduzida a um único espaço nacional: não surge circunscrito e, sobretudo, amplia-se constantemente, expandindo sua modalidade própria de relação social de produção. A história não se encontra previamente limitada por fronteiras políticas, geográficas ou de qualquer outro tipo. Ao contrário, deve permitir explicar como tais fronteiras são erigidas.

3. o capitalismo é um processo no qual as posições dos indivíduos na sociedade não se dão por capacidade (competência, mérito, etc) nem por qualidades (inteligência, bondade, maldade, etc.). Não se trata de uma natureza humana ou um “pendor” natural para o lucro. Com isso, não há nenhuma naturalização de uma “bondade” ou “maldade” intrínsecas a grupos sociais. A burguesia não é vista por Marx de forma “maquiavélica”, ou o capitalismo como uma “imensa maquinação” levada a cabo por alguns. Essa caracterização permite mostrar como o capitalismo — a relação social entre o trabalho e o capital — atua expandindo poderosamente a capacidade de produção, revolucionando-a constantemente.
        Cria imensas possibilidades, ao eliminar o isolamento entre as regiões, ao socializar a produção intelectual, ao criar forças produtivas colossais. Ao mesmo tempo, destrói sem piedade numerosas liberdades conquistadas anteriormente, reduz todas as relações sociais a relações mercantis, generalizando o “frio interesse”  [15] e volatizando todas as formas tradicionais de permanência e coesão social.

4. Essa caracterização da relação social conduz à definição e ao papel do proletariado. O trabalho, pólo gerador de toda a riqueza social, encontra-se socializado, isto é, a produção de qualquer bem depende de uma imensa e internacional divisão do trabalho. Criam-se formas de cooperação entre os trabalhadores nunca antes imaginadas, dirigidas e controladas pelo capital. A classe operária, ao generalizar-se de forma interligada através do mundo, como condição e “efeito” da produção capitalista, evidenciava o papel de criação de riqueza que lhe incumbia e estaria apta, portanto, a lutar para eliminar o controle capitalista da produção. Simultaneamente, estaria eliminando a própria existência das classes sociais. O capital havia organizado e concentrado o mundo do trabalho e, ao potencializar sua capacidade produtiva, havia multiplicado sua força transformadora quanto à sociedade. A revolução consiste, numa primeira dimensão, no controle, pela própria sociedade, daquilo que consistia no fruto de seu próprio trabalho, generalizando-se a socialização incompleta levada a cabo pelo capitalismo, que reservava a alguns a propriedade dos meios de produção.

5. A imagem utilizada, a de um “exército” de trabalhadores, dá bem conta da forma que revestiria a revolução, tal como Marx e Engels a percebiam em 1848: uma transformação de cunho militar. Frente a um verdadeiro bloqueio liberal no plano político, que impedia sistematicamente todas as formas de organização social dos trabalhadores (proibição de sindicatos, de representação política operária, de consolidação de formas nascentes de solidariedade e reivindicação), opunham a destruição desse mesmo sistema. Essa imagem será depois alterada, em função das diversas conjunturas políticas. O próprio conceito de revolução incorporará diversos significados.

6. A revolução é também uma construção social. Vale atentar para a ausência de automatismos na análise de Marx e Engels. Se a tensão entre o trabalho e o capital se instaura com o início da relação que os une, e, assim, se a luta de classes é constitutiva dessa relação, sua forma e seu alcance se alteram pela construção gradativa de formas de luta, pelo aprendizado do processo, pela experiência que se acumula  [16] . A liberdade do trabalhador, ainda que penosa e limitada pelo capital, significou o fim do jugo direto dos senhores, trazendo maiores condições para a formulação de novas possibilidades. Gradualmente, constróem-se formas de solidariedade, a luta isolada vai acumulando indícios e forças, estabelecendo alianças por indústrias, por localidades, em alguns momentos reagindo contra a máquina — não percebendo portanto que não eram as máquinas as responsáveis, mas a relação social que as capitaneava — para, em seguida, generalizar-se a aliança tanto a nível nacional quanto — e esta é a proposta do Manifesto — a nível internacional.

7. O papel do proletariado, assim como a possibilidade da revolução, revelam-se através da reflexão histórica. A análise histórica opera duplamente: identificação da forma de articulação específica que caracteriza o capitalismo em cada situação particular (síntese) e inclui a transformação das diversas sociedades anteriores (processo). Não são dois momentos separados, mas complementares. Para Marx, a reflexão histórica não se exaure no presente, característica de alguns pensadores liberais que tendem a ver o presente como ponto de chegada e, portanto, cristalizado como momento final  [17] . Para Marx, o presente é outro ponto desse processo, possibilitando ajustes, resistências e transformações (lutas sociais) a partir do investimento político — ou não — nas possibilidades inscritas no sistema geral que o organiza, evidenciadas pela análise histórica.

        O capitalismo, cuja lógica é demonstrada em O Capital (desde a acumulação primitiva até os matizes da produção de valor) não se torna, com isso, estático. Ao contrário, é dinâmico e revolucionário. Qual a dimensão propriamente histórica do proletariado?

        Na concepção de Marx, o proletariado aporta, ao mesmo tempo por seu lugar no processo de produção, por seu lugar na sociedade capitalista como um todo e pelas lutas que trava, a possibilidade de construir algo de radicalmente novo na história: a socialização completa da estrutura produtiva e, com isso, da vida social. É assim que não reduz o terreno da luta apenas ao próprio proletariado, mas o estende para incorporar e incluir outros segmentos sociais. O processo permanece histórico: a possibilidade não é mecânica ou assegurada, ela existe como tal (daí, provavelmente, a excessiva certeza de Marx e Engels quanto à proximidade da revolução) no próprio processo, mas depende para sua realização da ação política. Essa conexão entre estrutura e processo, entre o que é dado (divisão social do trabalho, num dado momento) e o construído (formas de ação política), entre o econômico (definido de sua forma ampla) e o político é central na reflexão marxiana. A história não é apenas uma lógica (embora a contenha); também não pode ser reduzida à vontade consciente dos indivíduos (mas não pode dela prescindir).

        O proletariado, base constitutiva da produção capitalista e massa populacional crescente, tanto a nível nacional quanto internacional, figurava, no século XIX, como o agente histórico potencial mais significativo. A rigor, cumpriu esse papel até período bem recente, sendo as principais conquistas sociais frutos de intensas lutas sociais, em grande medida capitaneadas pelas organizações operárias. As atuais transformações na esfera produtiva que vêm reduzindo suas dimensões, principalmente nos países centrais  [18] , trazem consigo a destruição dessas mesmas conquistas sociais.

8. O pensamento histórico em Marx incorpora uma tensão constitutiva na própria dimensão temporal. O compreensão do presente liga-se estreitamente à capacidade de identificar suas linhas de força organizadoras (síntese, determinações centrais que ordenam a vida social, impondo limites e coerções). Tais linhas não são estáticas, não são o fruto de uma natureza pré-determinada ou de uma lógica ahistórica. Isso implica admitir o movimento, identificar as formas anteriores das transformações - elas são o próprio cerne da História - e que, portanto, podem ainda vir a se alterar. Admitem pois tanto a explicação e a evidência de um papel determinante quanto uma indeterminação quanto ao futuro e suas possibilidades. Determinante: o passado está dado, não é alterável ou transformável; determinante ainda pois configura os homens, os grupos sociais e as classes segundo formas de organização que são sempre dadas. Indeterminada: aceita formas de luta, admite transformação — e mesmo revolução — em seu transcorrer. Indeterminada, pois é o conflito social — a luta de classes, os múltiplos conflitos sociais — o que a faz mover-se no seu núcleo central. A possibilidade de futuro inscrita no presente não está pronta. Permanece uma possibilidade.

        No entanto, essa indeterminação, diferentemente de outros, não se abre para o impossível (o que caracterizaria a visão dos utópicos) nem inaugura um “tudo é possível” que obscurece a ação sócio-política e impede a prática consistente. A construção do futuro, em Marx, procura ligar exatamente passado e presente, como desdobramento das possibilidades neles contidas, através da ação humana. É sua capacidade de identificar as tensões principais, o cerne da manutenção das classes dominantes, que permite imaginar um futuro radicalmente transformado. Mas é ela também que permite acumular lutas, reagir e resistir, alterando o padrão do conflito e construindo — abrindo — mais possibilidades.

        O Manifesto, panfleto de 1848, antecipa uma série de formulações retomadas detalhadamente por Marx e Engels em muitos trabalhos posteriores. Gostaria de precisar o que estou considerando por reflexão histórica, incorporando categorias que estarão mais refinadas nos textos subsequentes ao Manifesto. As contribuições de Marx e de Engels não se limitam à construção de conceitos gerais e de categorias operacionais, diretamente aplicáveis. Ao pensarem a história como processo, inauguram a possibilidade de um crescimento extraordinário, pois não há uma referência fechada em si mesma, algo cujo círculo de ferro impedisse a construção de novas categorias e novos conceitos. Longe de uma visão historicista, que tudo relativiza, instauram uma dialética entre o processo e a verdade, entre o presente e o passado, entre pensar e agir.

        Por pensamento histórico estou designando a busca da explicação das formas de organização das sociedades e de sua transformação no tempo. Trata-se, portanto, da construção de conhecimento. Não se limita apenas à pesquisa empírica e à evidenciação de fatos ou processos ocorridos no passado, mas a incorpora. Não se reduz, também, a especulações de cunho filosófico e genérico, buscando um padrão fixo (natural, humano, intelectual) que modelasse o processo histórico.

        O conhecimento histórico, como qualquer outro conhecimento, implica articular dois movimentos. Numa ponta, as constatações e o trabalho cuidadoso de levantamento de dados singulares; na outra, uma dimensão criativa, imaginativa e interrogativa, capaz de integrá-los. De um lado, incorporar o maior número possível de elementos significativos (dados), organizados segundo formas de pertinência. Por outro lado, submetê-los ao crivo de uma explicação (e não mera descrição), exigindo para tanto formulações teóricas.

        As sociedades são compostas por infinitas variáveis e dados, assim como o processo histórico abrange um número infinito de acontecimentos. Experimentam continuamente transformações para as quais múltiplas vontades colaboram, ainda que não se possa determinar uma delas como a definidora de cada processo.

        Assim, o conhecimento histórico pressupõe articular as múltiplas dimensões da vida social, de forma a permitir explicá-la. Como em todo conhecimento, não pode esgotar a variedade das manifestações da vida social e, mais que isso, somente se pode erigir enquanto conhecimento se, de fato, abstrair os elementos aglutinadores e significativos da imensa variedade de acontecimentos.

        As contribuições de Marx nesse terreno são fundamentais. Em parte, pela crítica pertinaz e contundente que dirige às formas especulativas que atravessavam o pensamento histórico no século XIX. Em seguida, pela cuidadosa atenção dispensada ao trato das evidências empíricas, especialmente em O Capital e na famosa trilogia sobre as transformações na França  [19] . Há uma constante preocupação em associar os elementos de evidência, em cruzar e ampliar os dados de que dispunha (em especial aqueles fornecidos pela Economia Política, mas a eles agregando longa e minuciosa pesquisa realizada no British Museum).

        Sua maior contribuição é, sem dúvida, a articulação entre essas dimensões, articulação que incorpora também uma dimensão processual, de transformação. Chegamos assim à formulação clássica da síntese, ou da noção de totalidade. A totalidade, no sentido marxiano, não quer dizer a incorporação de todos os fatos e de todas as ocorrências do passado. Isso não faz sentido em nenhum processo cognitivo. A totalidade no pensamento histórico corresponde a uma evidência primeira: não se pode esgotar com um único significado nenhum fato da vida social. Nada pode ser considerado unicamente econômico, por exemplo, sequer a ação mais conscientemente dirigida para o econômico. Um ato de compra e venda, por exemplo, pode envolver sentimentos os mais diversos (amor, ódio, indiferença); pode exemplificar a mais perfeita liberdade de ambos os contratantes como a mais profunda coerção; envolve sutis partilhas anteriores e posteriores (salário, herança, poupança, casamento, etc). Da mesma forma, os sentimentos mais puros e as relações mais etéreas podem envolver mesquinhas preocupações.

        A constatação da imbricação entre os inúmeros laços entre os indivíduos conduziu frequentemente ao desânimo quanto à possibilidade de explicar qualquer ato social. Quando isso ocorre, a história esteriliza-se pelo abandono da dimensão explicativa, ainda que descreva o mais exaustivamente possível alguns desses momentos, realçados através de recursos narrativos. Reduzida a belas narrativas, perde sua capacidade social de estimular a transformação.

        Ora, para Marx, o desafio era estimulante. Se todos esses elementos se encontram, influenciam-se mutuamente, como pensar aqueles que podem vir a ter uma dimensão de formação, uma dimensão determinante, ainda que se saiba de antemão que ele jamais agirá sozinho? Como identificar aquelas transformações que implicam numa rede, numa cascata subsequente de movimentos, levando os próprios atos cotidianos a mudarem de sentido? Como escapar à facilidade de impor um único significado à todos os elementos da vida social e, ao mesmo tempo, percebê-los em suas formas específicas de conexão?

        Marx opera um salto qualitativo com relação ao pensamento político de sua época. Hobbes e Locke, por exemplo, ao buscar entronizar a vida como fundamento último da sociedade, (e a propriedade, no caso do segundo), retornam a um princípio de natureza (permanente, portanto ahistórico). Ora, para Marx, a vida também terá um papel fundamental. Mas — e aqui o reside o salto incomensurável — ela é sempre social. Desnaturaliza portanto o ser humano, compreendido como formado sempre através grupo ao qual pertence, marcado profundamente pela época na qual se insere. Desloca pois a base da reflexão da preservação individual da vida (um contra todos) para a preservação da vida social. A vida social incorpora a vida individual, mas altera seu significado. Os indivíduos deixariam de ter “valor próprio” para Marx? Evidentemente que não, mas ressalta o fato — decididamente histórico — de que a própria individuação, a construção da noção de indivíduo e de seu valor, dependem da coletividade na qual se inserem, de circunstâncias que muitas vezes subordinam a vida individual, implicando variadas formas de coerção e assentimento.

        A percepção da dimensão social dos indivíduos não basta entretanto para dar conta da diferença significativa entre um momento histórico e outro, entre uma forma da vida social e outra. Era, aliás, essa percepção que fundamentava a consolidação da questão social no século XIX, como mencionado acima. A interrogação crucial era: o que fundamenta a vida social? O que significa, exatamente, a preservação da vida social?

        Os economistas que seguiam a vertente inaugurada pelo pensamento liberal utilizariam a economia (o impulso individual para a sobrevivência e para o ganho) como a chave explicativa para toda a existência humana. Essa proposição segue, aliás, até hoje inalterada, baseando-se o pensamento de cunho liberal exatamente no impulso único para o ganho como explicação de todos os atos da vida humana. A mercantilização das relações sociais encontra-se assim perfeitamente legitimada e mesmo engrandecida, considerada como adequada à “natureza” humana.

        Para Marx isso representava uma redução inadmissível da complexidade tanto da vida humana quanto da vida social. No entanto, apontava para um elemento importante: a condição de preservação da vida (social e individual) passa, efetivamente, pela garantia de sua reprodução. Certamente, a vida dos homens não oscila apenas em torno de suas condições de sobrevivência. Muitos outros aspectos fazem parte das preocupações, inquietudes, prazeres e felicidades humanas. No entanto, as formas sociais da sobrevivência (que, pensando historicamente, se traduz nas condições dadas pelas sociedades nas quais os indivíduos e grupos sociais se encontram) lastreiam possibilidades, abrem horizontes ou encerram-nos, permitem a ampliação de desejos (felicidade ou bens materiais) ou, ao contrário, limitam e amesquinham a existência. Não há produção cultural ou elevação espiritual onde a própria vida não é assegurada.

        A produção da vida, segundo Marx, não é infinitamente idêntica ou “natural”: fruto de imposições e construções sociais, altera-se ao longo do tempo. Exatamente por ter escapado do dilema que opunha o pensamento liberal ao pensamento providencial, a vida agora passa a ser pensada sempre como algo socialmente construído. Dos mais profundos sentimentos aos mais banais objetos de consumo, todos se transformam segundo a organização da sociedade. Se podemos nos reconhecer em homens e mulheres de outras épocas, só podemos fazê-lo ajustando o foco de nossas lentes e retirando as imensas diferenças que nos separam.

        Chegamos assim a um dos pontos mais delicados, mais debatidos e combatidos do marxismo. A relação entre a política (a luta de classes) e a assim-chamada economia. No Manifesto, o processo de produção da vida social demarca as condições nas quais os indivíduos e classes conduzem sua existência. A economia, aqui, não pode ser reduzida apenas aos atos administrativos, às escolhas de inversões, aos tipos de produtos ou à dinâmica do mercado; também não se limita à esfera única e direta da relação fabril ou da relação entre o proprietário e o operário: ela é uma relação social na medida em que organiza e centraliza toda a vida social.

        A rigor, o próprio termo economia ajusta-se mal ao que em Marx corresponde à produção da vida social (produção, circulação, distribuição, consumo), uma vez que, embora relacione-se diretamente aos bens e riquezas produzidos, sua importância deriva de duas condições centrais: de um lado, a identificação da estrutura da reprodução social (sobrevivência) e, por outro lado, a organização dos indivíduos que ela implica.

        Abrangendo o que muitos economistas definem como economia (o universo estrito da produção e do interesse), ultrapassa-o de muito. Não se trata de centrar o estudo apenas nos modos de gestão ou nas modalidades de maior produtividade e enriquecimento. A questão central para Marx e Engels é a identificação da maneira pela qual uma dada sociedade assegura sua própria existência e permanência (indivíduos e instituições). Para isso, deve produzir não apenas os bens e riquezas, mas também todo o aparato que a reproduz enquanto tal. Deve não apenas nutrir os indivíduos, mas também suas instituições  [20] , assegurando sua reprodução como sociedade.

        A produção, pensada como organização social, exige explicar os automatismos que instaura e ritualiza, as tensões sobre as quais se ergue, as possibilidades (individuais e grupais) que abre e os limites e constrangimentos que erige, assim como formas que fazem-na parecer com algo derivado da própria natureza humana. A cultura faz assim parte integrante dessa “produção da vida social”, pois é nela que tal naturalização ocorre, é através dela que as classes, os grupos e os indivíduos se percebem como partes integrantes e “vestem a camisa” da existência social como sendo uma segunda pele, uma “natureza” peculiar. Mas é também através dela que encontram os recursos para contestar a naturalidade dessa ordem social e sua posição em seu interior.

        A conjunção entre a desnaturalização das relações sociais e a percepção das tensões, conflitos e lutas de classe que atravessam a história constitui-se em algo original e instigante, a base para o desenvolvimento ulterior do pensamento histórico. No Manifesto, em que pese a brevidade do texto, pode-se perceber a centralidade dessa articulação. Não há uma “sociedade de natureza”, embora haja uma relação entre sociedade e natureza. Há o fruto de transformações históricas, há um processo construído socialmente que desfaz laços anteriores e reconstitui uma nova e mais potente forma de produzir (bens, homens e instituições). Marx e Engels mostram como o capitalismo, impulsionado por uma força impessoal (a divisão do trabalho, a grande indústria), é capitaneado por uma classe social bem demarcada — a burguesia, por sua vez atravessada por contradições. A complexa relação social que assegura a reprodução capitalista atua em todos os níveis, da dimensão internacional ao cotidiano. O Manifesto enfatiza a organização dos Estados em prol da produção capitalista e a submissão das nações ao capital, o recuo de liberdades duramente conquistadas, a crescente inter-conexão entre as regiões, a relação entre o campo e a cidade, a concentração e centralização — de populações, de meios de produção e de propriedade — o crescimento da capacidade de produzir e a concomitante destruição de produtos, equipamentos e de pessoas, a cultura como mero adestramento para o trabalho industrial, etc.

        A dinâmica peculiar do capitalismo implica numa permanente transformação. Dentre suas próprias condições de existência (sua característica permanente) estaria exatamente o fato de “somente poder existir revolucionando a produção” e fazendo com que “tudo o que era sólido se evapore como fumaça”. Essa capacidade de auto-revolucionar-se deve ser constantemente levada em conta, pois pode implicar em transformações fundamentais ou, ao contrário, indicar ajustes na disciplinarização da força de trabalho (ou da sociedade como um todo).

        O que Marx definirá como economia vai portanto muito além do mesquinho “homem-mercado” sugerido por alguns liberais. Se a economia passa a ser compreendida como o agenciamento existente entre os homens, numa dada sociedade, uma série de dimensões até então ocultas ou dissimuladas adquirem relevo. Em primeiro lugar, o fato de que cada sociedade não é, nunca, um grupo isolado, uma cultura fechada e impermeável. Contacta-se com os demais, aprende e ensina, diferencia-se e constrói similitudes, mescla-se e elabora articulações peculiares entre grupos distintos, se expande ou se retrai.

        Em segundo lugar, formas de dominação podem, simultaneamente, assegurar um crescimento da capacidade de produzir, pelo incremento de formas compulsórias (com modalidades variadas de coerção) de trabalho, e a subordinação e, mesmo, o distanciamento crescente entre as classes sociais. A concentração de poderes, de um lado, estribada sobre um crescimento real da capacidade de produzir do grupo como um todo, implica na contrapartida da consolidação de formas de coerção. Em nada tal diferenciação depende da natureza: as classes sociais não são o fruto de capacidades individuais, mas elas também, resultante de lutas, vitórias e derrotas e, mais do que tudo, da manutenção de formas não-econômicas de coerção, subordinação, convencimento. No entanto, a própria existência dessa diferenciação provoca as tensões que atravessam essas sociedades: as lutas de classes.

        A totalidade em Marx traduz-se na busca dessa síntese, que, fruto da história, conduz a vida social. Tal como as próprias sociedades, essa lógica pode ser mutável, alterando-se de acordo com os conflitos que plasmam novas relações ou, ao contrário, adaptam, reforçam e mantêm formas de dominação.

        Nesse sentido, o conceito de modo de produção busca dar conta das linhas mais gerais que se imbricam — a produção econômica (com ênfase para a distribuição das classes, grupos e indivíduos tanto na produção quanto na distribuição dos bens produzidos), as formas políticas e culturais que oferece como horizonte, a organização da família, a distribuição no território, etc. Portanto, o conceito não se limita a descrever a situação de um dado país ou de um dado grupo específico: ele ilumina a forma geral pela qual operou, historicamente, o agenciamento entre a produção de bens materiais e as classes sociais, entre as condições dadas e as vontades conscientemente exercidas.

        Diferentemente do que alguns pensaram, a dimensão da totalidade não basta para tudo explicar. Ela se constitui, a rigor, num permanente desafio, uma vez que exige perceber, a cada momento, em cada local e a cada processo, como tal agenciamento ocorre, qual o seu núcleo central, de que forma se constituem as tensões internas e externas à sociedade e quais as mais sensíveis, de forma a potencializar os conflitos de classe. O Manifesto, juntamente com a obra de Marx e Engels, fornece a mais poderosa pista — e não há nenhum historiador no século XX que possa dela se distanciar sem graves consequências — para compreender a vida social e suas transformações até aqui formulada. Não há estritamente nenhuma outra grande explicação capaz de superar a fertilidade da formulação marxiana. O rigor de suas exigências é grande, mantendo-se uma relação necessária entre a pesquisa, a identificação de novos horizontes de problemas (que se manifestam sempre na atualidade, mas que indicam a possibilidade de sua existência em tempos pregressos) e as formas variadas de resposta, formuladas pelas diferentes sociedades.

        O horizonte aberto pela proposta de síntese marxiana atua também como uma denúncia: o recorte arbitrário de segmentos da vida social, ao deixar de lado os elos que os articulam, tende a naturalizar as relações sociais, justificando a manutenção do status quo . Ao não explicar as formas sociais que exprimem dominação e exploração, apresentam-nas como necessárias, consolidando a segmentação social cuja raiz se encontra na própria capacidade de reprodução da vida social.

        Se algumas respostas do Manifesto Comunista pertencem ao passado, as questões que ele contém e os problemas que aponta permanecem atuais. A sólida base fornecida para pensar criticamente, a ousadia da explicação, a busca da totalidade, a dialética temporal e a relação proposta entre o conhecimento e as questões sociais do seu tempo permanecem elementos cruciais para uma reflexão histórica consequente.

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[*] Professora da Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil. Artigo publicado em coletânea organizada por Daniel Aarão Reis Fº, Rio, Editora Contraponto, 1997, juntamente com retradução do Manifesto do Partido Comunista, de K. Marx e F. Engels. A tradução francesa encontra-se em
http://www.u-paris10.fr/ActuelMarx/indexm.htm .


NOTAS
1- Em Polanyi, K. A grande transformação . Rio, Campus, 1980, encontra-se uma interessante descrição da generalização do liberalismo na Europa do século XIX. O fulcro do trabalho, porém, é a reação ao liberalismo a partir de 1930.
2- A Santa Aliança consistiu no sistema de reação e repressão estabelecido pelas grandes monarquias absolutistas na Europa após 1815.
3- Pelas dimensões deste trabalho, não incluímos as contribuições do Iluminismo (francês, alemão, inglês). Ressalte-se porém que, apesar da variedade da reflexão iluminista, há uma preocupação em formular uma história do progresso das idéias.
4- Cf. Manent, Pierre. História Intelectual do liberalismo . Rio, Imago, 1992.
5- Bentham, Jefferson, Paine e Mill, por exemplo, que estabelecerão as bases do pensamento democrático liberal. Ver Vergara, F. Introdução aos fundamentos filosóficos do liberalismo . SP, Nobel, 1995 e Macpherson, C. B. A democracia liberal . Rio, Zahar, 1978.
6- Vale lembrar que o termo socialismo nasce por volta de 1830, difundindo-se em francês a partir de 1840.
7- Foucault, M. Surveiller et punir . Paris, Gallimard, 1975.
8- Ver Fontes, V. “Capitalismo, exclusões e inclusão forçada.” Tempo .Rev. do Depto. História da UFF, vol. 2, n. 3, jul. 1977.
9- A esse respeito, ver Castel, R. Les métamorphoses de la question sociale . Paris, Fayard, 1995, pp. 217-67 e Polanyi, K. op. cit .
10 - Decerto, pode-se fazer uma dupla leitura: na primeira, empobrecedora, a classe operaria seria a culminância da história, carregando em si o destino da humanidade, independentemente de sua ação política. Na segunda, mais rica e original, o fato da classe operária ocupar o cerne central da produção capitalista indicava uma possibilidade radicalmente nova, a do final das classes sociais. Mas essa possibilidade dependeria da capacidade de construção social e política dessa classe, e da avaliação das transformações que sua própria ação introduzia nessa dinâmica.
11 - Essa inspiração externa poderia ser de cunho religioso (providencial) ou cultural (um 'espírito' específico a cada grupo social ou uma 'tradição' de origens imprecisas).
12- Esse tema foi trabalhado diversas vezes por Marx e Engels. Como exemplo, ver Marx, K. Para a critica da economia política . SP, Abril, 1978 (Os Pensadores). Recentemente, um sócio-psicanalista francês ressaltou as dificuldades psicológicas derivadas da contradição exacerbada entre uma interdependência social crescente e o elogio de comportamentos individualistas. Mendel, G. On est toujours enfant de son siècle . Paris, R. Lafont, 1986.
13- Esse tipo de procedimento ainda hoje é muito utilizado. A incapacidade de formular uma verdadeira análise e, principalmente, de integrar seus elementos numa avaliação sintetizadora tende a exacerbar recursos de erudição, onde a remessa a exemplos pontuais substitui a explicação do processo histórico.
14- O recurso à dimensão moral, usual no século XIX, volta também a substituir a argumentação explicativa em nossos dias, num final de século de certa forma melancólico. A dificuldade de aceitar o desafio de nosso próprio tempo e de construir uma explicação histórica consequente, capaz de lastrear um pensamento alternativo, tem conduzido a um retorno a práticas próprias do século XIX, já fartamente criticadas pelo próprio Marx.
15- Com relação à sacralização do interesse, ver Hirschman, A. As paixões e os interesses . Rio, Paz e Terra, 1979.
16- Esse aspecto foi enfatizado, em várias análises históricas, por E.P Thompson. Ver, por exemplo, Tradición, revuelta y consciencia de clase . Barcelona, Crítica, 1979.
17- Esse tipo de reflexão embasa trabalhos como o de Fukuyama, F. O último homem e o fim da história .Rio, Rocco, 1992.
18- Qualquer referência mais aprofundada quanto a um pretenso fim do proletariado (André Gorz) não pode se limitar aos países centrais, dada a internacionalização crescente da produção. Mais ainda, deve ser capaz de explicitar sobre que bases passaria a se apoiar um capitalismo sem trabalho.
19-  As lutas de classe na França (1850), O 18 brumário de Luis Bonaparte (1852) e A guerra civil em França (1871).
20- Puderam assim evidenciar como, historicamente, muitas sociedades implicam em sacrifícios de parcela de seus membros, sacrifícios que podem variar ser rituais, podem implicar na pena de morte por razões variadas, na escravização ou na penúria extrema de alguns grupos sociais.

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06/Jul/02