Venezuela: Uma revolução sui generis

por Marta Harnecker [*]

CAPÍTULOS
1- Governo eleito democraticamente

2- Ideologicamente indefinido

3- Um exército diferente

4- Construir uma força nacional e internacional

5- A radicalização do processo e suas consequências

6- Os meios de comunicação: organizadores da contra-revolução

7- A actual correlação de forças

8- Uma contra-revolução sem uma revolução



Marta Harnecker 1. Hugo Chávez Frías, um militar que, em Fevereiro de 1992 por meio de uma rebelião militar com apoio civil, pretendeu destituir um presidente corrupto, Carlos Andrés Pérez, seis anos depois ganha a Presidência da República por ampla maioria (56% dos votos).

2. Tem a convicção, desde antes daquela sublevação, de que a profunda crise estrutural que vive o seu país já desde há décadas, só tem uma saída: uma verdadeira revolução social. Decide iniciar o processo revolucionário convocando uma Assembleia Constituinte que permita alterar a corrupta e ineficiente estrutura jurídico-política do país e, no âmbito destas novas regras do jogo, iniciar as transformações económicas e sociais que o país tanto requer.

3. Tenta fazê-lo em Fevereiro de 1992 por via insurreccional, que não é o mesmo que golpe militar. Na mira de Chávez esteve sempre a participação do povo. Esta tentativa fracassa. Vai para a prisão e durante esta e quando sai e percorre o país, continua a agitar esta bandeira e a pensar numa nova insurreição. Contudo, a seguir, dada a nova situação existente no país – os militares do seu grupo desmembrados e o povo rejeitando a via das armas, – decide integrar-se no processo eleitoral. O objectivo estratégico de convocar uma Assembleia Constituinte mantém-se. O que mudou foi a táctica.

4. Trata-se de um processo sui generis absolutamente deformado pelos grandes meios de comunicação e pouquíssimo compreendido pela esquerda, porque rompe todos os esquemas: Primeiro , surge a partir da esmagadora vitória de Chávez numa contenda eleitoral e continua avançando pela via institucional apesar de todas as provocações que recebe por parte dos opositores. Segundo , é catalogado ideologicamente de indefinido, porque não assume o marxismo como ideologia orientadora do processo mas sim o bolivarismo. Terceiro , é conduzido por um militar que ousou promover um levantamento militar contra o regime e conta com muitos militares no governo. Quarto , trata-se de um militar populista. Quinto , não conta com um partido de vanguarda para conduzir o processo. Sexto , foi incapaz de eliminar a corrupção – uma das suas principais bandeiras de luta. Sétimo , não materializou ainda transformações económicas de envergadura e é um fiel pagador da dívida externa.

5. Dadas estas características, pode-se dizer se este é um processo revolucionário? Analisando estas objecções, penso que se entenderá melhor o que se passa na Venezuela e porque considero que o processo que vive a Venezuela é um processo revolucionário.

1- GOVERNO ELEITO DEMOCRATICAMENTE

1) Como construiu uma opinião pública favorável
6. Chávez decide apresentar-se às eleições presidenciais de 1998 sem contar com recursos económicos nem espaços nos meios de comunicação, nem um instrumento político consolidado: o partido que representa o chavismo, o Movimento V República, havia sido formado recentemente e para esse objectivo: um objectivo claramente eleitoral. Para muitos esta intenção era só um sonho de adolescente.

7. Esta fraqueza porém foi compensada pela sua figura carismática, dada a conhecer ao país logo a seguir à fracassada intentona armada de 1992, quando reconhece na Cadeia Nacional da TV a sua responsabilidade perante os factos, num país onde nenhum político era capaz deste tipo de gestos. Na altura reconhece a sua responsabilidade e lança a sua famosa frase: “Por agora!”, clara mensagem ao seu povo de que não tinha renunciado a continuar na luta.

8. Este gesto permitiu-lhe construir uma opinião pública favorável à sua pessoa e ao projecto que encarnava, num país onde o cepticismo pela política e pelos políticos era dominante em amplos sectores da sociedade, entre os quais as camadas médias.

2) Não há governo que se tenha submetido a tantas consultas democráticas
9. Como dizíamos, ganha as eleições presidenciais por ampla maioria .Desde então realiza 5 processos consultivos que demonstram nas urnas o apoio popular com que conta: referendo para convocar a Assembleia Constituinte; eleição dos constituintes; referendo para aprovar a nova Constituição, eleições para relegitimar os mandatos de: presidente, membros da Assembleia Nacional, governadores, presidentes e membros dos executivos municipais, juntas paroquiais; eleição da direcção da Confederação de Trabalhadores da Venezuela (CTV).

10. Salvo neste último caso, onde se cometem muitas irregularidades (a actual direcção da CTV autoproclamou-se eleita mas nunca mostrou publicamente as actas a avalizar tal afirmação), em todas as outras eleições o Movimento V República ganha a maioria dos cargos.

11. A oposição, no entanto, invocando a bandeira da democracia, pretende tirar o cargo a quem ganhou desde 1998 seis processos de consulta democrática: quatro eleições e dois referendos. Não houve regime político na história do país que se tenha submetido a mais processos de consulta democrática do que o actual.

2- IDEOLOGICAMENT INDEFINIDO?

12. Este processo é catalogado ideologicamente como indefinido, porque não assume o marxismo como ideologia orientadora do processo. Tem de se esclarecer, contudo, que embora não se declare marxista, também não se declara antiparasita.

13. Chávez procura fundamentar o seu projecto num ideário enraizado nas tradições nacionais. São três as principais figuras que o inspiram: Simón Bolívar; Simón Rodríguez e Ezequiel Zamora.

14. Contudo, que sentido tem uma revolução do Século XXI inspirar-se num pensador dos inícios do Século XIX? O que acontece é que nestes pensadores se encontram ideias hoje em dia absolutamente válidas para o país.

15. Bolívar , a mais destacada figura da luta independentista da América Latina contra a Espanha, embora não falasse de luta de classes referia-se à necessidade de abolir a escravatura e em todo o seu pensamento nunca deixavam de estar presentes os sectores populares. O seu maior contributo terá sido talvez a sua compreensão da necessidade da integração latino-americana. Viu então que os nossos países não tinham futuro se não se articulassem para enfrentar juntos os países da Europa e os Estados Unidos. E já na segunda década do Século XIX foi capaz de prever que os “Estados Unidos da América do Norte pareciam destinados pela providência a assolar a América de misérias em nome da liberdade”. Por outro lado, na sua filosofia política Bolívar concebia a democracia como o sistema político que devia dar a máxima felicidade ao povo. Além disso, considerava que um militar nunca devia virar as suas armas contra o povo.

16. Por seu lado, Simón Rodríguez , mestre e amigo de Bolívar, foi um grande educador e reformador social. Defendeu fortemente a originalidade da nossa realidade latino-americana, a sua composição pluriétnica e a necessidade de integrar os povos indígenas e os escravos negros nas futuras sociedades latino-americanas. Insistia na necessidade de criar instituições originais adaptadas à nossa realidade. Rejeitava o copiar soluções provenientes de Europa e afirmava: “Ou inventamos ou erramos”.

17. Por sua vez, Ezequiel Zamora foi um general liberal que, na guerra federal de 1850, lutou contra os conservadores. Impulsionou uma luta de morte contra a oligarquia e a entrega de terras aos camponeses.

18. Trata-se pois de um núcleo ideológico democrático, que reivindica a soberania nacional, anti-imperialista e antioligárquico; núcleo que, sem dúvida, é necessário enriquecer e aprofundar, mas que já contém um conjunto de ideias-chave para impulsionar o avanço do processo revolucionário

3- UM EXÉRCITO DIFERENTE

19. Há quem rejeite o processo revolucionário bolivariano por ter um líder militar e pelo destacado papel dos militares em muitas instituições do Estado e planos do governo.

20. Afirma-se que os militares fazem parte do corpo repressivo do Estado burguês, que estão impregnados da ideologia burguesa, que não têm salvação. Penso que esta visão é muito mecanicista; que não podemos generalizar a situação desta maneira, mas que se deve analisar os corpos armados do Estado em cada situação concreta em que estão inseridos.

21. O exército chileno que levou a cabo o golpe de Estado contra Allende não pode comparar-se com o exército venezuelano. Este último, a partir da geração de Chávez, não formou os seus quadros na Escola das Américas mas na Academia Militar venezuelana que sofreu na altura uma profunda transformação. O chamado Plano Andrés Bello elevou a docência a grau universitário. Os quadros do Exército começaram a estudar ciências políticas, a conhecer pensadores da democracia e analistas da realidade venezuelana. Muitos destes militares acabaram por se especializar em determinadas matérias nas universidades e começaram a fazer intercâmbios com outros estudantes universitários.

22. Em estratégia militar estudava-se Clausewitz, estrategos asiáticos, Mao Tse Tung. Chávez particularmente foi muito influenciado por algumas ideias de Mao como a que afirma que a moral das tropas é muito mais importante do que qualquer sofisticado meio tecnológico; ou que o povo está para o exército como a água para o peixe.

23. Esta geração surge quando o país já estava quase pacificado, eram pouquíssimos os núcleos guerrilheiros que persistiam, e portanto não tiveram de actuar contra a guerrilha, pelo contrário, quando percorriam as zonas camponesas onde estas podiam refugiar-se, não encontravam guerrilheiros mas a imensa pobreza dessas zonas. Enquanto a ideologia burguesa dominante nos nossos países nos tenta fazer crer que os pobres são pobres porque são bêbedos, porque não têm espírito de trabalho nem iniciativa, porque são pouco inteligentes, e é esta ideologia que geralmente impregna as nossas forças armadas, os militares venezuelanos vêem que é a oligarquia venezuelana açambarcadora das riquezas que se encontra por trás da pobreza, bem como os Estados Unidos, vocacionados para a disseminar.

24. Alguns quadros militares jovens ao chegarem às zonas fronteiriças com os seus pelotões repartiam a ração das suas tropas com a gente pobre desses lugares.

25. Por outro lado, nas Forças Armadas venezuelanas não existiu a casta militar como noutros países. Filhos de famílias de pouquíssimos recursos, do campo ou da cidade, podem ter acesso a altos cargos dentro da corporação militar.

26. A tudo isto vem acrescentar-se a comoção que causou na geração de Chávez o Caracazo. Houve uma grande rejeição a deixar-se usar como instrumentos de repressão. Alguns comandantes mais conscientes recusaram-se a usar as suas tropas para reprimir o povo. Um militar entrevistado por mim contou-me que ao ver o povo faminto saqueando um supermercado decidiu pôr disciplina no saque. Mandou a multidão organizar-se em bichas para obter determinados produtos: a bicha da carne, a do arroz, a dos produtos lácteos; mas não deixou levarem as máquinas registadoras, porque isso não era uma necessidade da gente mas sim aproveitar-se da situação para roubar.

4- CONSTRUIR UMA FORÇA NACIONAL E INTERNACIONAL

27. Não se pode entender o processo venezuelano sem ter em vista o contexto mundial em que está inserido. Existe hoje uma correlação mundial de forças muito negativa para as forças progressistas: com a derrota do socialismo nos países de Leste, e especialmente na URSS, desapareceu o campo socialista com todo o seu peso simbólico e prático, e os Estados Unidos tornaram-se a primeira potência militar mundial sem contrapeso nenhum, a ponto de poder levar por diante uma aventura guerreira e fazê-lo contra toda a opinião mundial. A situação no mundo era muito diferente quando triunfou a revolução cubana, ou quando Allende levou a cabo o processo chileno.

1) Construir uma força internacional
28. A primeira coisa que faz o líder bolivariano ao assumir a Presidência da República, consciente de que não pode levar por diante uma revolução social de forma isolada na actual correlação mundial de forças, é dedicar-se a construir uma força internacional de apoio ao processo bolivariano. Impulsionou processos de integração sul-americanos e caribenhos para fortalecer uma posição unívoca; privilegiou a relação com os seus parceiros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e aproximou-se de outros pólos de poder mundial como a Índia, Rússia e China, estreitando ao mesmo tempo os vínculos com as associações de nações emergentes, como o Grupo dos 15 de cooperação Sur-Sur e o Grupo dos 77, que reúne mais de 120 nações em vias de desenvolvimento. No cone Sul, Chávez procurou uma aliança com o Brasil para se opor à ALCA e entrar como membro no Mercosur.

29. Em lugar da ALCA ergueu a bandeira da ALBA: Aliança Bolivariana para as Américas.

30. Estabeleceu também o compromisso de fornecer a 11 países centro-americanos e caribenhos um tratamento preferencial na venda de petróleo, como um gesto de cooperação. Estreitou também as relações com Cuba.

2) Construir uma força interna
a) Correlação favorável nas instituições
31. No âmbito interno, as sucessivas eleições de relegitimação de mandatos depois de aprovada a nova Constituição, permitem-lhe iniciar o seu governo com uma folgada maioria na Assembleia Nacional, com governadores simpatizantes do seu projecto na maioria dos Estados, e com instituições judiciais dispostas a fazer cumprir a nova Constituição. Mas esta situação tem vindo a variar à medida que o processo revolucionário foi avançando, como veremos mais adiante.

b) Debilidade organizativa nos campos social e político
32. No terreno organizativo popular o processo parte com uma grande debilidade. Comparado com o Chile de Allende ou o Brasil de Lula, que contaram ou contam com partidos de esquerda de longa data e com movimentos sociais e sindicais fortes, a Venezuela é um país que não conta com partidos de esquerda suficientemente consolidados. O próprio Movimento Revolucionário Bolivariano 200, fundado por Chávez em começos dos anos Oitenta, contava com um grupo muito reduzido de militantes, e o Movimento V República, partido que se funda para enfrentar as eleições presidenciais de 1998, é um partido eleitoral aluvial, que recruta muitos oportunistas que sabem que só debaixo do guarda-chuva de Chávez podem ser eleitos para diferentes cargos. O país, nesses momentos, também não conta com movimentos sociais fortes. Tanto o movimento popular dos moradores como o sindical não conseguiram desenvolver-se de forma autónoma: durante os últimos 50 anos foram sempre muito dependentes dos partidos que se alternavam no poder: Acção Democrática e COPEI.

c) Apelo a refundar o MBR 200 e impulso a Círculos Bolivarianos
33. Consciente destas debilidades e da imperiosa necessidade de contar com um instrumento político eficaz para levar por diante o seu programa e, sobretudo, para promover um processo de organização popular capaz de dar um aval orgânico ao grande apoio com que conta o seu governo na população venezuelana, Chávez indicou publicamente, a 7 de Maio de 2001, a necessidade de refundar o Movimento Revolucionário Bolivariano (MBR-200). E juntamente com essa iniciativa, lançou outra: a dos “círculos bolivarianos”, apelando ao povo, onde quer que esteja e seja como for, a organizar-se através de pequenos grupos para difundir a Constituição e fazer alguma tarefa concreta: responder às necessidades do bairro, formar uma cooperativa, conseguir um empréstimo no banco, etc.

34. A ideia parece ser que o MBR 200 se transforme num movimento de movimentos, que aglutine as forças sociais que estão com o processo e que não militem necessariamente em partidos, com o objectivo de organizar a sociedade para a transformação, enquanto o MVR governa.

35. Tratar-se-ia, segundo alguns, de construir o que não existe hoje: um movimento popular e social com um comando centralizado, democrático, onde estejam as expressões dessas lideranças que existem mas estão dispersas, a nível estudantil, camponês, de mulheres. Seria a unidade do movimento social popular, ligado aos sectores mais avançados e progressistas do campo revolucionário. O grande repto e desafio do MBR 200 seria conseguir que ali estivessem as grandes maiorias [que participam] e dotar este processo de força não só ideológica e política, mas também organizativa . [1]

36. O dirigente bolivariano tem plena consciência da necessidade de contar com um povo organizado, o que se vai tornando mais evidente na medida em que vai perdendo espaço no terreno institucional.

d) Comando Político da Revolução
37. Paralelamente a este esforço de organizar a população, Chávez tenta formar uma direcção única do processo: o Comando Político da Revolução, convocando reconhecidos militantes de partidos de esquerda e colocando Guillermo García Ponce, ex dirigente comunista, à cabeça de tal comando. No entanto, por diferentes razões que aqui seria difícil explicar, ainda hoje, quatro anos após ter iniciado a sua gestão presidencial, o processo bolivariano não conta com um instrumento político à altura dos enormes desafios que tem de enfrentar.

5- A RADICALIZAÇÃO DO PROCESSO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

a) A oposição radicaliza-se
38. É provável que não poucos dos seus actuais detractores tanto nacionais como internacionais tenham esperado que Chávez se ficasse por simples promessas verbais como muitos outros políticos da América Latina, que a nova Constituição fosse letra morta, ou que poderiam torcer-lhe a mão usando as habituais formas de pressão e outorga de favores.

39. Quando se dão conta que Chávez não é comprável, nem dominável, e está resolvido a levar avante o processo revolucionário, adoptam a decisão de o depor através de um golpe militar. Isto ocorre em Dezembro de 2001, quando o governo manifesta pela primeira vez publicamente a sua decisão de alienar interesses económicos da oligarquia venezuelana decretando – habilitado pela Assembleia Nacional – 49 leis, entre as quais a Lei da terra, a Lei da pesca, a Lei dos hidrocarbonetos, a Lei dos microcréditos e a Lei das cooperativas, entre outras.

40. É preciso ter em conta que as nossas oligarquias latino-americanas nada têm a ver com os sectores burgueses dos países nórdicos. Nunca se mostraram dispostas a ceder nenhum dos seus privilégios para distribuir melhor as riquezas entre toda a população, como o fez a burguesia europeia. O presidente liberal norte-americano John Kennedy viu com clareza que a única forma de impedir que a revolução cubana alastrasse pela América era fazer um plano para o desenvolvimento dos nossos países em que se distribuísse melhor a riqueza, mas esse plano, a Aliança para o Progresso, fracassou porque grande parte das nossas oligarquias fizeram ouvidos de mercador ao seu apelo. E continuaram até hoje sem ceder o mínimo dos seus privilégios.

b) Vai ficando gente pelo caminho
41. A reacção da direita assusta alguns companheiros de estrada de Chávez, entre os quais Miquilena, o seu operador político durante todo o processo constituinte e as eleições de legitimação de mandato que se lhe seguem. E como o Presidente não recua para apaziguar a oposição e se mostra decidido a levar por diante o processo revolucionário, Miquilena retira-lhe o seu apoio – e com ele muitos dos que haviam conseguido cargos nas instituições graças à sua mediação – e passa a ser um dos líderes do campo opositor. Isto explica a negativa correlação de forças com que conta hoje Chávez na Fiscalía (o Ministério Público, cuja maioria são antichavistas); no Tribunal Supremo de Justiça (de 20 juizes, 11 consideraram que não houve golpe de Estado no 11 de Abril); e no Conselho Nacional Eleitoral (5 antichavistas e um partidário do governo).

c) A insurreição da oligarquia: o Golpe de 11 de Abril
42. A insurreição do bloco oligárquico para tirar Chávez do governo, que se põe em marcha em Dezembro de 2001, consegue atrair importantes sectores médios da sociedade e alguns sectores populares. À sua cabeça não estão os partidos tradicionais – que tinham desaparecido do cenário político nos processos eleitorais, – mas sim a associação patronal Fedecámaras, a Confederação dos Trabalhadores da Venezuela (CTV), a alta hierarquia da Igreja Católica, e os meios de comunicação de massas, que desempenham um papel protagonista como organizadores colectivos da oposição.

43. Após uma greve laboral que não consegue os seus objectivos, a 11 de Abril de 2002, um golpe militar bem sucedido destitui Chávez do governo e coloca como presidente Pedro Carmona, o mais alto executivo da associação empresarial Fedecámaras. Ao assumir o governo, este decide eliminar a nova Constituição e dissolver todos os poderes públicos, e os seus adeptos começam a agredir fisicamente funcionários chavistas.

44. A seu lado, além dos generais golpistas estão os embaixadores de Espanha e dos Estados Unidos. Este último país e El Salvador são os únicos governos no mundo que se apressam a reconhecer o mandatário usurpador.

45. Nessa manhã chegou ao forte Tiuna, sede do comando golpista, o adido militar da Venezuela em Washington, o general Medina Gómez, acompanhado de assessores do Departamento de Estado. [2] Às 9 da noite estão presentes o adido militar dos Estados Unidos na Venezuela e o seu assessor. Entretanto sabe-se que os radares da Força Aérea detectam três vultos: trata-se de duas fragatas e um helicóptero que vêm de Curaçao, o helicóptero viola o espaço aéreo venezuelano.

46. Pouco durou a vitória da oposição. Daí a poucas horas, ao difundir-se a notícia de que Chávez não renunciara e que estava preso, uma imensa vaga de povo sai dos morros e dos bairros populares para os quartéis e para o palácio do governo, exigindo o regresso do seu presidente. Em menos de 48 horas esse povo, juntamente com a imensa maioria das Forças Armadas que lhe permanecera fiel, conseguem o seu objectivo: Chávez reassume a Presidência da República.

47. Isto prova, segundo o líder bolivariano, que não é certo o dito afirmando que “Amor com fome não dura”, porque foram exactamente os mais famintos que vieram para a rua apoiá-lo. Como se explica isto? Porque o povo com Chávez recuperou a sua dignidade. Sente-se ouvido, atendido. Sabe que conta pela primeira vez na história com um presidente da República que é seu presidente. Este povo intui que se ele não consegue resolver os problemas económicos e sociais que o afectam não é por ele não querer mas porque a oligarquia não o deixa.

d) Representantes que deixam de representar
48. Nos processos revolucionários não só há gente que vai ficando pelo caminho, como a consciência, tanto dos sectores populares que apoiam o processo revolucionário como a dos seus opositores, sofre modificações.

49. A história demonstrou que Lenisse tinha razão quando dizia que em períodos de comoções sociais profundas (ou períodos revolucionários) os actores tendiam a mostrar as suas verdadeiras intenções e os povos aprendiam em poucos dias muito mais do que poderiam aprender durante anos em livros.

50. O golpe de 11 de Abril de 2002 permitiu à população ver quem era quem: desmascararam-se os comandos golpistas dentro das Forças Armadas; tornaram-se evidentes as intenções fascistas de muitos dos políticos opositores que se autoproclamavam democratas. O seu nível de consciência política aumentou enormemente.

51. Mas não só se consciencializou e radicalizou o povo, também a contra-revolução se vai radicalizando nos seus ataques ao governo e vai ganhando adeptos. Sectores vacilantes das camadas médias, que costumam inclinar-se para onde percebem que existe mais força, muito influenciados pelo panorama pintado pelos grandes meios de comunicação, que fazem crer que a oposição a Chávez é muito mais forte do que é, passaram a engrossar as fileiras oposicionistas.

52. Tudo isto conduziu a uma situação em que muitos representantes já deixaram de representar os seus eleitores. Quantos deles não chegaram aos seus cargos por terem sido identificados pelo povo como partidários de Chávez e logo lhe viraram as costas. É este o caso, concretamente, do presidente do município da área metropolitana: Alfredo Peña.

53. Parece então fundamental, se se desejar a transição pela via institucional, que se apliquem mecanismos criados pela nova Constituição para revogar os mandatos dos que deixaram de representar os seus eleitores, elegendo-se novas pessoas. São possíveis dois caminhos: os referendos revogatórios ou uma emenda constitucional que permita a antecipação das eleições gerais. Os partidários de Chávez já iniciaram processos de revogação de mandatos de várias personagens da oposição, entre as quais Alfredo Peña.

54. É importante saber que a nova Constituição venezuelana admite a existência de 4 tipos diferentes de referendo: o consultivo , onde se submetem a consulta problemas de transcendência nacional como, por exemplo, se o povo está de acordo ou não em privatizar o petróleo; ou se aceita ou recusa a integração da Venezuela na ALCA; o referendo revogatório , que é o instrumento indicado pela Constituição para submeter a consulta popular se um funcionário deve ou não permanecer no seu cargo, depois de ter decorrido metade do seu mandato; o referendo aprovatório , que submete a consulta para sua aprovação acordos, convénios ou tratados internacionais; e, por fim, o referendo ab-rogatório , que submete a consulta a possibilidade de abolir leis ou decretos com força de lei.

55. Se não se aceitarem estas regras do jogo para revogar os mandatos poderá ocorrer uma situação de completa anarquia: qualquer grupo minoritário descontente com um funcionário eleito poderia recolher assinaturas para pôr em causa o seu mandato. Além dos gastos e da perda de tempo que implicaria uma consulta deste tipo, não haveria assim nenhuma estabilidade nos cargos.

6- OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO: ORGANIZADORES DA CONTRA-REVOLUÇÃO

56. O papel dos meios de comunicação como organizadores da contra-revolução foi tão evidente em Abril que se falou do primeiro golpe mediático do Século XXI.

57. Salvo um canal de televisão – com muito escassos recursos técnicos e sem recepção em todos os estados, – e duas ou três rádios amigas, a imensa maioria dos grandes meios de comunicação, nas mãos dos grandes grupos económicos, fizeram uma inflamada e sistemática oposição ao governo de Chávez. Mais do que liberdade de imprensa, o que vemos na Venezuela é uma libertinagem, o uso dos meios de uma forma absolutamente anti-ética: ignoram a maior parte das acções que realiza o governo e desinformam e mentem sobre aquelas a que fazem referência. A sua programação de entretenimento e a propaganda comercial foram eliminadas, ocupando o seu lugar: a) o acompanhamento minuto a minuto das acções oposicionistas; b) a manipulação de imagens para pretender dar a ideia de que a força da oposição é muito maior do que é na realidade; c) a exacerbada propaganda contra o regime democraticamente instituído; e d) a condução do processo oposicionista, dando continuamente instruções do que há a fazer.

58. Dada a passividade do governo perante esta situação, à espera de recursos legais que lhe permitam actuar, sectores populares decidiram passar à ofensiva boicotando os canais privados de TV, não comprando jornais e ameaçando não comprar os produtos que se anunciam através destes meios. Os seus donos reconheceram publicamente que as vendas diminuíram de forma significativa.

59. Recentemente o governo anunciou que não permitirá que se continue a fazer este uso anti-ético dos canais de TV. Por mais privados que sejam, para transmitir usam uma concessão outorgada pelo Estado e este tem todo o direito de lhas tirar se eles não se submeterem às normas estabelecidas para o seu uso. É o mesmo caso do dono de um automóvel a quem o governo concede uma licença de condução que lhe permite usar o veículo, mas que lhe pode ser retirada se não cumprir as normas do trânsito. Já se iniciaram processos de investigação contra a Venevisión, Rádio Caracas Televisión e Globovisión, com o propósito de decidir a revogação das concessões do espectro radioeléctrico que detêm estes meios televisivos. Igualmente deu entrada na Assembleia Nacional o projecto de Lei de Responsabilidade Social em Rádio e Televisão. A oposição impediu até agora que fosse aprovada, quer não dando quorum, quer inscrevendo 60 oradores por cada artigo do projecto de Lei, com o que as sessões de trabalho se prolongariam por meses.

60. Esperamos que se o governo chegar a tomar uma medida dura contra estes meios – que não só não informam do que faz o governo como desinformam do que faz, e têm criado em crianças e adultos uma verdadeira psicose colectiva pela forma como apresentam o que denominam “as hordas chavistas” – ela seja apoiada por quem advoga a verdadeira liberdade de imprensa no mundo, que nada tem a ver com a libertinagem de imprensa que tem existido na Venezuela.

61. Entre os recursos com que conta o governo para informar do avanço do seu projecto e formar ideologicamente o povo, está o programa radiotelevisivo “Aló presidente”. Através dele, Chávez dirige-se todos os domingos ao seu povo durante várias horas e num estilo muito simples e compenetrado com a idiossincrasia popular. Contudo, este programa não chega a todas as regiões do país, porque o canal do governo ainda não tem os recursos técnicos para o fazer.

7- A ACTUAL CORRELAÇÃO DE FORÇAS

1) O golpe de Abril cria condições mais favoráveis
62. O Golpe de Abril de 2002 em lugar de enfraquecer o governo fortaleceu-o. Foi um verdadeiro presente para o processo revolucionário.

63. Em primeiro lugar , porque os actores se desmascararam e o povo tem agora muito maior nível político. O presidente já sabe com quem conta e com quem não conta dentro das fileiras militares e dentro dos quadros civis.

64. Em segundo lugar : o facto de uma parte da alta oficialidade das Forças Armadas ter revelado as suas posições golpistas, criou o terreno propício para Chávez avançar na depuração desta Instituição. Isto apesar da atitude pouco ética do Tribunal Supremo de Justiça, que não aceitou submeter a julgamento os generais golpistas. Nenhum deles tem já comando de tropas e a sua presença é repudiada nos seus respectivos corpos.

65. Em terceiro lugar , a seguir ao fracasso da intentona golpista a oposição, que se tinha mobilizado unida para o golpe, dividiu-se. De um lado os fascistas que estão a tentar realizar um novo golpe militar; e do outro, os moderados que pretendem livrar-se de Chávez através de medidas institucionais. Além disso a oposição mostrou que não conta com um líder nem com um projecto para o país que não seja o do regresso ao passado. Dizer tudo isto não significa menosprezar a sua força. Embora se trate de uma minoria, é uma minoria activíssima, que consegue mobilizar combativamente dezenas de milhares de pessoas em Caracas e noutros lugares do país, e que ainda tem profunda influência em vastos sectores das camadas médias.

66. Em quarto lugar, sectores cada vez mais numerosos das camadas médias, que antes estavam contra o processo, começaram a reconsiderar ao verem a anarquia a que poderia conduzir a marginalização de Chávez. Apercebem-se de que o Presidente é o único que pode tornar governável esse país, tendo em conta a efervescência dos ânimos das duas partes em litígio; a sua marginalização forçada poderia desencadear uma guerra civil. Mais recentemente tem vindo a influenciar as nefastas medidas adoptadas pela oposição: encerramento de escolas, sabotagem da empresa produtora de petróleo, cujos efeitos atingiram negativamente amplos sectores médios. O facto de o Presidente se ter manifestado firme nestes terrenos mostrando que tem força suficiente para enfrentar as diversas tácticas usadas pela oposição para o combater, e o crescente apoio popular e dentro dos militares com que conta é outro elemento que está a mudar a atitude de crescentes sectores médios.

67. Em quinto lugar, de 12 de Abril em diante a organização popular aumentou de maneira acelerada. Chávez desde então não perdeu oportunidade de chamar à organização do povo, insistindo que não pode permanecer isolado ninguém que queira apoiar o processo. Os círculos bolivarianos têm-se multiplicado por todo o país adoptando as formas mais variadas. Nesta altura existem 190 mil círculos com uma média de 7 pessoas por círculo, isto é, mais de 1 milhão e 300 mil pessoas organizadas deste modo. Surgiram novas organizações do povo como os Comités de Terras Urbanas, diferentes agrupamentos das camadas médias: médicos, professores, advogados, etc.

68. Por outro lado, os dirigentes sindicais dos diferentes ramos da produção, críticos da gestão da CTV (Confederação de Trabalhadores da Venezuela), estão a trabalhar para construir uma força sindical autónoma mas disposta a apoiar o processo.

69. Além disso, os motorizados – trabalhadores que se movem de moto fazendo recados para diferentes empresas, – um grémio muito solidário entre os seus membros, descobriu que podia desempenhar um importante papel nas comunicações entre sectores populares e como poder dissuasivo nas marchas da direita.

70. E se estes sectores populares cresceram enormemente em consciência política nesses dias de Abril, cada novo ataque da oposição ao governo foi aumentando a sua consciência e o seu protagonismo: hoje não só crescem os círculos bolivarianos, os comités de terras urbanas, as assembleias de cidadãos, entre outras; como cada nova ofensiva da oposição provoca a aparição de novas formas de organização popular: os grupos que se encarregam de reabrir as escolas que a oposição quis paralisar; círculos agrícolas e piscatórios que defendem os seus direitos e as respectivas leis promulgadas pelo Executivo; os grupos de defesa do consumidor que promovem o boicote dos meios de comunicação; os grupos que protegem as bombas de gasolina e a adequada distribuição do gás; grupos presentes nos lugares onde enchem os camiões que transportam o combustível e caravanas que escoltam estes camiões; o movimento Classe Média em Positivo de apoio às decisões do governo; grupos para recolher assinaturas para diferentes objectivos; o grupo que permanece há mais de um mês na sede da empresa petroleira em La Campiña, centro nevrálgico dessa empresa, protegendo as instalações das possíveis sabotagens da oposição; grupos que rodeiam o Palácio de Miraflores e se mobilizam em sua defesa perante qualquer ameaça dos antichavistas; círculos que prestam apoio social aos mais necessitados.

71. Em sexto lugar, os diferentes partidos de esquerda, que continuavam a apoiar Chávez, mas com atitudes muito críticas, decidem rearticular-se e fazer uma frente comum de apoio ao seu governo.

72. Em sétimo lugar, hoje existe uma opinião mundial contrária a qualquer outra tentativa de golpe de Estado. Tanto a OEA como a União Europeia, os países da OPEP e o próprio governo dos EUA mais recentemente se pronunciaram neste sentido. A comissão mediadora tripartida formada pelo Centro Carter, a OEA e o PNUD, não pôde deixar de reconhecer que a Venezuela vive um processo autenticamente democrático.

73. Em oitavo lugar , como uma das falhas maiores que teve o plano de defesa de Chávez foi a das comunicações com as tropas fiéis à sua liderança, estudaram-se formas que permitam ao presidente ter contacto directo com os comandantes de tropas, no caso de os comandos superiores não poderem cumprir a sua função.

74. Em nono lugar , estabeleceram-se canais de comunicação entre os regimentos e as populações próximas.

75. Em décimo lugar, a atitude golpista e repressiva que teve a Polícia Metropolitana nos acontecimentos de Abril de 2002 e noutros confrontos com o povo, permitiu fazê-la depender da Comissão de Segurança dos Cidadãos quanto à sua participação em acções de manutenção da ordem pública no Distrito Metropolitano, e não do presidente do município, Alfredo Peña. Esta situação manter-se-á até se proceder à criação de uma única Polícia Nacional que ficará sob o controlo do Governo Central.

2) O golpe institucional
76. Tudo isto nos faz pensar que não haverá um novo golpe militar bem sucedido, o que não quer dizer que alguns sectores recalcitrantes da oposição não continuem a tentar pela força tirar Chávez do governo.

77. Percebendo esta situação a maioria da oposição inclinou-se por levar a cabo um golpe de tipo institucional. Lança-se a iniciativa do referendo consultivo. Numa campanha muito activa anuncia-se que conseguiram recolher mais de um milhão e meio de assinaturas a favor da sua realização. O Conselho Nacional Eleitoral, no entanto, rejeitou por inválidas mais de 700 mil assinaturas. Há denúncias de que se usaram nomes e assinaturas de fichas pessoais dos clientes de algumas entidades bancárias privadas para fraudulentamente aumentar o número de signatários.

78. Chávez tem sempre afirmado que está disposto a submeter-se ao veredicto popular, mas que isto se deve fazer dentro do âmbito estabelecido pela Constituição: o referendo revogatório e que este processo contra ele poderia iniciar-se a 19 de Agosto de 2003. momento em que atinge o meio do seu mandato.

79. Recentemente 5 juizes contra 2 da Secção Eleitoral do Tribunal Supremo de Justiça manifestaram-se contra a intenção da oposição de realizar o referendo consultivo sobre se Chávez devia ou não continuar no governo. Era muito difícil que pudessem passar por alto o texto explícito da Constituição sobre o assunto e, por outro lado, como muitos destes juizes só jogam pelo seguro, a força que demonstrou Chávez para enfrentar as recentes manobras oposicionistas levou alguns a reconsiderar.

3) O golpe petroleiro: o último recurso
80. Cortados os caminhos do golpe militar e do golpe institucional, ganha mais força a estratégia do golpe económico.

81. Tentou-se paralisar o país economicamente, mas o que houve realmente foi um lock-out patronal. A maior parte dos operários estava disposta a trabalhar, foram os donos das empresas que tentaram fechar as portas das fábricas para impedir a sua entrada.

82. Foi uma greve mais comercial que produtiva, e localizada fundamentalmente nos sectores do Leste de Caracas, onde se encontram os bairros residenciais. No centro da cidade e nos bairros populares as lojas abriram. Em plena época natalícia os grandes beneficiários foram os vendedores ambulantes. Nos restantes Estados a situação foi muito variada. Nos governados por seguidores de Chávez a maioria das escolas e lojas manteve-se aberta; nos governados por pessoas contrárias a Chávez, pressionou-se as escolas e as lojas para fecharem, mas aí a greve nunca chegou a atingir as dimensões que conseguiu nas urbanizações do Leste de Caracas.

83. Vendo que não podiam paralisar o país por essa via, lança-se a ofensiva dos executivos da empresa petrolífera venezuelana (Pdvsa). Como a maioria dos trabalhadores do petróleo estava disposta a não parar a produção, tinham de tentar detê-la por qualquer meio. Começa assim a criminosa sabotagem dos altos executivos da Pdvsa. Graças aos seus conhecimentos técnicos e ao controlo absoluto da informação da empresa alteram as suas chaves de acesso, interrompem processos, danificam gravemente instalações e estiveram prestes a fazer algumas ir pelos ares se o novo pessoal altamente qualificado não descobrisse que tinham alterado o sistema de controlo da temperatura de algumas refinarias. Por fim, como apesar de tudo, embora diminuída, a produção continua, optam por bloquear o transporte do petróleo bruto tanto dentro do país como para o exterior. Durante duas semanas conseguem paralisar a circulação de navios. O golpe petroleiro fracassa, não consegue fazer vergar o governo, mas a economia do país sofre graves danos económicos, cujas consequências negativas não poderão ser superadas em menos de dois anos.

8- UMA CONTRA-REVOLUÇÃO SEM UMA REVOLUÇÃO?

84. A complicada correlação de forças internacional; a catástrofe climática de 1999; o pesado lastro do aparelho institucional herdado; a lenta elaboração das novas leis que permitam concretizar os avanços revolucionários e a necessidade de enfrentar as tácticas desestabilizadoras da oposição têm impedido de realizar transformações económico-sociais profundas durante os primeiros 4 anos de governo do presidente Chávez. Por esta razão houve quem defendesse que na Venezuela se dá o paradoxo da existência de uma contra-revolução sem que tenha havido uma verdadeira revolução.

85. Para discutir esta afirmação é necessário discutir o que entendemos por revolução. Se a revolução for entendida como o assalto ao poder, a destruição do aparelho do Estado, e a adopção de medidas económicas drásticas que expropriem os antigos donos dos meios de produção, sem dúvida o que sucede na Venezuela não pode ser catalogado de revolução social.

a) A revolução como um processo
86. Contudo, entendemos a revolução como um processo que leva a cabo um projecto que se propõe em primeira instância passar o poder político de um bloco social para outro e, a partir daí, ir realizando transformações profundas em todos os aspectos da sociedade. E se entendemos que o fundamental deste processo é ir criando o sujeito protagonista da sociedade alternativa que se pretende construir, então já podemos dizer que o processo bolivariano é um processo revolucionário.

b) Êxitos
87. Um dos êxitos iniciais foi ter podido convocar, a partir da Presidência da República, uma Assembleia Constituinte e aprovar a seguir uma nova Constituição que muda as regras do jogo político e põe um freio ao neoliberalismo, colocando-se contra a privatização da empresa venezuelana do petróleo e o latifúndio; a favor dos pequenos pescadores em detrimento das empresas transnacionais da pesca; pela propagação das empresas cooperativas e do microcrédito; contra a privatização da educação e por um ensino gratuito; contra a privatização da segurança social. Esta Constituição defende também os direitos dos povos indígenas, das crianças, pelo direito à livre informação, e reivindica um modelo participativo, em que os cidadãos desempenhem um papel protagonista. Mas todos estes planos poderiam ter ficado letra morta se o governo não fizesse as leis que permitiam pôr em prática os princípios constitucionais. É então, como referimos acima, que a oligarquia começa a sentir-se ameaçada nos seus interesses económicos e a sua resposta não se faz esperar.

c) Limitações institucionais
88. Mas nem tudo tem sido avanços, é importante examinar as limitações institucionais que têm impedido que o processo prossiga com mais força na realização do seus objectivos. Acusa-se o governo, por exemplo, de não ter feito nada contra a corrupção, quando tomou importantes medidas para lutar contra ela como a diminuição radical (em 80%) dos gastos secretos e portanto da corrupção que se escondia atrás deles. Por outro lado, o Executivo mandou para os tribunais competentes centenas de casos para investigação e sanção. O que acontece é que tanto a Fiscalía como a Contraloría (Procuradoria-Geral), que deveriam actuar nestes casos, pelas razões acima indicadas, costumam sabotar as respectivas investigações ou chegam a acordos com as pessoas a elas submetidas e acabam por absolvê-las.

89. Por outro lado, bem pouco se pôde fazer com o aparelho burocrático herdado. No se puderam erradicar os procedimentos e os vícios dos funcionários públicos. Na sua maior parte, foram incorporados de forma clientela pela AD e COPEI e ainda não se elaborou a lei que permita retirar os funcionários corruptos, sabotadores e incompetentes.

d) Insurreição do bloco oligárquico fortalece o sujeito revolucionário
90. Mas o mais importante de tudo é que a insurreição do bloco oligárquico fortaleceu o sujeito revolucionário. Os acontecimentos de Abril e os mais recentes de fins de 2002 e inícios de 2003, permitiram que o povo e os soldados, expressão armada desse povo, dessem um salto qualitativo na sua consciência política. Não vieram dos morros nem se rebelaram nos quartéis contra os comandos golpistas por terem recebido soluções as suas necessidades materiais; fizeram-no para conseguir o regresso de Chávez ao governo. E o importante é que o seu amor por Chávez se materializou num triunfo que se deveu à sua acção. Começam então a sentir-se actores do seu próprio destino, a sentir-se sujeitos. Constatam que eles mesmos podem determinar a história.

91. Por outro lado, os actos de sabotagem petrolífera e de destruição económica do país acabaram por inclinar a favor do processo os sectores vacilantes que ainda restavam dentro das Forças Armadas. O comandantes prestam-se com gosto para intervir na Pdvsa, em empresas que açambarcam alimentos, em barcos que boicotam a transferência do petróleo e tantas outras cosas.

92. Vai-se constituindo assim um sujeito revolucionário cada vez mais amplo, combativo e consciente. E é este precisamente o maior êxito do original processo venezuelano e o que permite defini-lo como revolucionário. Não se avançou muito em transformações socio-económicas, mas avançou-se enormemente na constituição do sujeito protagonista da nova sociedade que se quer construir. E Chávez – ao contrário do que faria um dirigente populista – tem contribuído enormemente para este crescimento, porque sabe que uma revolução que pretende resolver os problemas da pobreza de importantes sectores da população não se pode levar a cabo sem entregar poder aos pobres, que são os realmente interessados em levar avante o processo.

93. Por último, queria dizer que o processo revolucionário de hoje deve pensar-se mais como uma maratona do que como uma corrida de 100 metros planos. Partir com o ímpeto de uma corrida de 100 metros, é a fórmula mais segura para ser derrotado: as forças esgotar-se-ão antes de chegar à meta. A actual correlação de forças a nível mundial obriga a avançar de forma lenta para poder conseguir os objectivos estratégicos. O importante é que se avance e que em lento caminhar se vá construindo o sujeito do processo revolucionário, porque só ele poderá garantir o triunfo definitivo da revolução.

FACTOS QUE ESTÃO A OCORRER APÓS A INTERVENÇÃO NO SEMINÁRIO

Não tendo conseguido os resultados esperados nem a greve nem o golpe petroleiro, a oposição usa como tábua de salvação a proposta de solução do conflito que apresenta o ex presidente Carter a 30 de Janeiro: que a oposição se comprometa a levantar a greve – uma greve já fracassada – e que o governo se comprometa a aceitar uma saída eleitoral, ou pela via do referendo revogatório que poderia ser convocado a partir de 19 de Agosto de 2003, ou por uma emenda à Constituição para antecipar as eleições gerais; e a restituir aos seus postos de trabalho os empregados da Pdvsa que se tinham declarado em greve. Este último ponto foi rejeitado pelo governo. Até agora foram despedidos pelo governo mais de 8500 trabalhadores.

Por último, apesar do duro golpe que significou para a oposição o despacho do Tribunal Supremo de Justiça contra o uso de um referendo consultivo para tirar Chávez do governo, esta não renunciou a criar uma situação embaraçosa para o Presidente organizando a recolha de assinaturas a favor da sua saída e de outras 8 propostas. Segundo esta num só dia recolheram-se perto de 4 milhões de assinaturas contra Chávez, dado absolutamente irreal de acordo com cálculos de especialistas. Não pode surpreender-nos esta contínua tergiversação da verdade. Mente, mente, que alguma coisa fica sempre, é o lema da propaganda antichavista.
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NOTAS
[1] Tarek William Saab, “Vigencia del MVR no está en peligro”, op. cit.
[2] Ver registo in Libro de Novedades de la Alacábala 2 del Fuerte Tiuna.

[*] Intervenção da autora no seminário de LAC (Forum Social Mundial III), em 24/Jan/2003. Tradução de José Colaço Barreiros.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

28/Fev/03