337. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil
(MST)
que
reúne parceiros, arrendatários, meeiros, assalariados rurais,
ocupantes e pequenos camponeses
(224)
é, sem dúvida, o movimento social mais poderoso da América
Latina. Foi fundado há já 17 anos
(225)
e neste momento se calcula que
das 400 mil famílias que têm tido acesso à terra desde a
ditadura militar até hoje, umas 250 mil estão ligadas ao MST e
outras 80 a 100 mil estão acampadas em todo o país pressionando
por terra.
(226)
.
A PRINCIPAL REFERÊNCIA CONTRA O NEOLIBERALISMO NO BRASIL
338. Nestes anos de resistência e de luta este movimento tem conseguido
crescer e se consolidar como o principal referencial nacional de luta contra o
neoliberalismo, promovendo a articulação de todos os setores
excluídos pelo sistema: os sem terra, os sem teto, os sem trabalho.
Atacado pela direita por seu radicalismo é, no entanto, crescentemente
respeitado por setores cada vez mais amplos da sociedade, que vêem neste
movimento a coerência política e a preocupação com
os aspectos ideológicos que com freqüência falta aos partidos
políticos de esquerda.
339. Este movimento começa a ser mais conhecido nacional e
internacionalmente a partir de 1995 em seguida ao seu II Congresso
quando expõe que não haverá reforma agrária
no Brasil se não se conseguir mudar o modelo econômico neoliberal,
e que só se pode avançar neste terreno se toda a sociedade
começar a ver a luta pela terra como uma coisa legítima e
necessária.
UM MOVIMENTO CAMPONÊS DIFERENTE
340. Trata-se de um movimento camponês diferente dos clássicos. Em
primeiro lugar, a luta de massas que promove não se limita ao
caráter corporativo, associativo ou sindical, próprio de outros
movimentos camponeses, porque entende que os objetivos que persegue
não só terra, mas instrumentos e créditos para
trabalha-la, educação, saúde e outras
transformações da vida camponesa somente serão
conseguidos mudando o modelo de sociedade. Trata-se, portanto, de um movimento
sócio-político que participa da vida política do
país, mas que não pretende "se transformar em partido
político"
(227)
. Em segundo lugar, envolve em suas atividades e lutas
toda a família e não apenas o homem. A participação
da mulher, da juventude, das crianças, é muito destacada. De um
coletivo de 23 pessoas que formam a direção nacional, 9
são mulheres e têm sido eleitas não por cotas, mas por seus
próprios méritos. Em terceiro lugar, reúne em seu seio
não somente trabalhadores rurais mas todas as pessoas que estejam
dispostas a se dedicar à luta pela reforma agrária. Em quarto
lugar, é um movimento que tem como uma de suas
preocupações centrais a formação política de
seus quadros.
341. As experiências nesse sentido o levaram à
convicção de que as conquistas sociais só são
alcançadas com luta de massas, quer dizer, com a
participação massiva do povo. Aprendeu que se se limita a ser
uma organização de fechada, sem poder de
mobilização,
ou se esperar que as soluções cheguem a partir do
governo
ou da aplicação de seus
direitos, apenas porque estão escritos na lei,
não conquistará
absolutamente nada
. Somente uma forte
pressão popular
fará com que a lei seja cumprida
(228)
, já que há poderosos
setores das classes dominantes que se opõem a ela. Daí que a
ocupação tenha se tornado sua arma estratégica para
conseguir a terra. Somente esta forma de pressão social camponesa tem
permitido materializar a entrega de terras ociosas a pequenos camponeses
ávidos por faze-las produzir.
342. A ocupação é, ao mesmo tempo, o instrumento que
permite aglutinar famílias de origem camponesa, fazendo-as sentir na
própria carne a importância da organização, sendo
também um excelente espaço para começar o árduo
trabalho de transformação da consciência individualista,
típica do pequeno produtor, por uma consciência cada vez mais
solidária.
A LUTA NÃO ACABA COM A CONQUISTA DA TERRA
343. Mas a luta não acaba com a conquista da terra, esse é
só o primeiro passo. Os assentados devem continuar lutando para
conquistar os recursos para faze-la produzir, daí ser fundamental que se
mantenham organizados dentro do Movimento.
344. Os princípios e normas organizativas que regem o MST são:
direção coletiva
, evitando cargos que personalizem o poder;
divisão de tarefas
, valorizando a participação de todos e evitando a
centralização e o personalismo;
profissionalismo
, expressado em amor e dedicação de corpo e alma à causa
da luta pela terra e esforços para se superar nas tarefas que lhes foram
destinadas;
disciplina
, cuja regra de ouro é respeitar as regras do jogo voluntariamente
assumidas;
planejamento
de todas as atividades que forem empreendidas;
espírito de estudo
e
vinculação com as massas
um dirigente distante das massas é como um peixe fora
d'água. E por último: exercício da
crítica e autocrítica,
procurando corrigir os erros presentes para melhorar as atuações
futuras.
345. Creio ser importante destacar alguns aspectos da forma em que são
aplicados estes princípios:
- as grandes linhas políticas são formuladas centralmente, mas
devem ser adaptadas a cada lugar respeitando as diferenças regionais;
- descarta-se o uso das grandes assembléias para discutir as
decisões mais transcendentais por serem facilmente manipuladas,
prefere-se discutir em nível local e regional, amadurecer as
idéias dessa maneira e, uma vez conseguido isto, leva-las a
reuniões mais amplas para que ali as votações somente
formalizem o debate ocorrido em níveis mais reduzidos;
- conseguir que todos os seus membros se sintam protagonistas, procurando com
que cada um assuma uma determinada tarefa dentro do coletivo, escolhida esta
levando em conta as inclinações naturais de cada pessoa: que a
pessoa faça aquilo para o que melhor serve.
Aprender COM todos
346. O MST se sente herdeiro de todo um processo histórico de lutas
populares e trata de aproveitar os ensinamentos acumulados nessas lutas para
construir um mundo melhor. Daí sua disposição de estudar
as mais diversas experiências tanto nacionais como de outros
países, não para copia-las mecanicamente, mas para extrair delas
o que possa ser útil para a organização
(229)
.
347. O MST considera que os assentamentos devem servir de carta de
apresentação para o movimento. Devem demonstrar que podem
produzir eficientemente e, ao mesmo tempo, ir gestando a semente da futura
sociedade solidária que deseja construir, em que a técnica seja
posta a serviço do homem e não o homem a serviço da
técnica. Neste sentido, o movimento estimula o estabelecimento das mais
diversas e flexíveis formas de cooperação, desde as mais
simples como o trabalho de ajuda mútua, passando pelas
associações de máquinas, cooperativas de
comercialização, de créditos e serviços, até
chegar às cooperativas de produção.
348. É neste terreno da produção onde o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra faz sua autocrítica mais forte.
Não é possível abordar em detalhes, neste artigo, tema
tão complexo, mas pelo menos podemos mencionar algumas delas: muitos
assentamentos caíram no erro de implantar
o mono-cultivo para o mercado
(soja, milho, algodão, mandioca), no lugar de haver diversificado a
produção para não ficar tão dependentes das
oscilações de preços; por outro lado,
muitas vezes se aplicou uma mecanização desajustada à
escala de produção
: comprava-se um trator para 30 hectares quando este só era
rentável se fossem cultivados 100
(230)
.
NÚCLEOS HABITACIONAIS E PÓLOS DE ASSENTAMENTOS
349. Quanto à organização interna dos assentamentos
(231)
,
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra está hoje empenhado em que
seja materializada uma orientação que existe há anos: a
formação de grupos de famílias neles. Nos acampamentos do
MST as famílias se organizam em grupos de vinte a trinta, e a
idéia era que, uma vez conquistada a terra, fosse mantido este tipo de
organização nos assentamentos, tratando de construir o que eles
chamam "agrovilas", quer dizer, núcleos de moradias umas ao
lado das outras com espaços destinados aos serviços coletivos:
escola, centro de recreação, parque infantil, centro religioso e
algum tipo de agroindústria que permita valorizar a
produção agrícola e criar fontes de trabalho
estáveis para o camponês e sua família.
350. Já há vários assentamentos com agrovilas, mas ainda
são minoritários. Na maior parte dos casos a terra foi
distribuída de forma individual por orientação do Incra
(232)
e
atendendo o desejo do camponês de estabelecer sua moradia em seu
próprio lote: isto deu como resultado que as famílias ficaram
muito distantes umas das outras, o que dificultou a convivência entre
elas e, pela mesma razão, não se chegou a materializar a
orientação de se organizar em grupos de famílias.
351. Hoje o Movimento está pensando em soluções
urbanísticas que permitam que as famílias formem pequenos
núcleos habitacionais com um espaço para encontros coletivos.
Esta é a maneira que o MST tem encontrado para combater a cultura
individualista e ir construindo alternativas de cooperação em
diferentes níveis. A idéia é que em um mesmo assentamento,
nos lugares em que isto seja conveniente, haja vários núcleos
habitacionais que permitam ao camponês viver em seu pedaço de
terra ou muito próximo dela e, ao mesmo tempo, conviver coletivamente
com um grupo de famílias.
352. Há desenhos urbanísticos interessantes que permitem combinar
ambas as coisas. Isto funciona melhor no sul e centro do país, porque
nas zonas mais áridas a tendência é se concentrar em
pequenos povoados, já que é muito pouco o que se pode cultivar de
forma individual, bastando uma pequena horta, o resto são terras para
alimentação do gado ou produções que exigem um
trabalho não individual. Aqui o problema é o inverso: como
conseguir a participação real das pessoas em um povoado que
reúne de mil a mil e quinhentas famílias.
353. A discussão sobre quais são os espaços ideais para a
participação das pessoas é um grande tema para a esquerda.
E o outro é como combinar participação na base e
eficácia local, porque evidentemente os pequenos grupos são
convenientes para conseguir uma maior participação, mas
também sabemos que para conseguir um impacto local se requer ir muito
mais longe.
354. Daí outra interessante idéia que o MST está
desenvolvendo: o que alguns chamam "pólos de assentamento". Um
assentamento isolado e rodeado de latifúndios não tem nenhum
impacto e todo seu esforço de sair para o mercado com um mínimo
de possibilidades tende a fracassar. Para conseguir mudar a lógica do
sistema em alguns aspectos, especialmente levando adiante a idéia de
criar um mercado popular alternativo com produtos das cooperativas
agrícolas do MST, é fundamental reunir em uma zona muitos
assentamentos e criar uma articulação entre eles que potencialize
seu impacto na região, tanto no aspecto econômico, como educativo,
cultural e político. Isto também ajuda a resolver os problemas de
infra-estrutura: não é a mesma coisa fazer uma estrada e estender
a rede de água para um assentamento de vinte famílias, do que
faze-lo para mil e quinhentas.
355. Para conseguir estes objetivos é muito importante que se realize um
trabalho político e ideológico na região, que se conquiste
para o projeto as direções sindicais e políticas e as
administrações locais e, mas importante ainda, que os moradores
da região vejam com simpatia as propostas do MST. Uma rádio
local, como forma de comunicação direta com os habitantes da
região, parece indispensável.
356. Eu sou uma das pessoas convencidas de que, ao invés de dispersar
forças em todo o território, é fundamental que as
forças de esquerda concentrem sua atuação em determinados
espaços geográficos, para tratar de por em prática nesses
lugares experiências alternativas mais integrais que por sua vez sirvam
para mostrar na prática o que a esquerda poderia fazer se conseguisse
ter o poder central em suas mãos.
357. Por outro lado, os assentamentos, ao mesmo tempo em que permitem formar
quadros com uma nova mentalidade, permitem liberar quadros para que possam
participar das atividades de mobilização do movimento
(caminhadas, novas ocupações) ou no trabalho organizativo do MST
em nível local ou nacional. O assentamento é a entidade que os
financia enquanto dura sua missão.
A EDUCAÇÃO: UMA PREOCUPAÇÃO CENTRAL
358. O MST não luta apenas contra o latifúndio mas também
contra a ignorância. A seriedade com que tem abordado o problema
educacional do campesinato fez com que o governo do Estado do Rio Grande do Sul
reconhecesse a metodologia usada e a concepção da "escola
nova" do MST como o melhor programa pedagógico para o meio rural.
359. O movimento atende a todos os níveis de educação.
Convencido de que uma organização só perdura quando forma
seus próprios quadros, tem criado várias escolas de quadros tanto
políticas como técnicas e um instituto que prepara
técnicos agrícolas em diferentes especialidades (ITERRA). E hoje
tem uma brigada médica composta por 45 estudantes se formando em Cuba na
Escola Latino-americana de Ciências Médicas.
360. Por outro lado, oito universidades mantêm convênios com o
movimento para a formação técnica de seus quadros. Desta
maneira, existe um convênio com a Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) através do qual mil jovens se formam em cursos intensivos
durante as férias. Também na Universidade Federal de Juiz de Fora
quinhentos jovens da região sudeste participam nas férias de
diferentes cursos sobre a realidade brasileira
(233)
.
GOVERNO FHC EMPENHADO EM DESTRUIR O MST
361. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra está sofrendo neste
momento uma grande ofensiva por parte do governo de Fernando Henrique Cardoso
(PSDB). Este lhe cortou os créditos para as cooperativas. O MST havia
conquistado um crédito em 1986, em pleno processo de
democratização do país, logo depois de mais de 20 anos de
ditadura militar, que favorecia especialmente a quem trabalhava de forma
cooperada: as famílias que eram sócias de uma cooperativa
recebiam o dobro do que recebia um pequeno camponês independente e
tinham, além disso, um subsidio de 50%. Agora não só
há menos créditos mas todos provêm de um único
fundo: é uma forma de jogar uns camponeses contra outros, fomentando a
divisão entre os membros do MST e outros pequenos agricultores.
362. Por outro lado, como o MST tem conseguido assentar muita gente
graças ao emprego da ocupação de terras, o que lhe tem
dado grande força ao mostrar a suas bases que com
organização e luta podem conseguir os objetivos a que se
propõem, o governo tem procurado uma fórmula de desestimular a
mobilização e as ocupações de terras. Está
oferecendo a quem se inscrever pelo correio a entrega de terras em 120 dias.
363. Estas medidas - junto com a crise da pequena agricultura diante do modelo
agro-exportador significaram um duro golpe para o MST. A
frustração e o desânimo começam a afetar os
assentados com menos consciência: a possibilidade de conseguir renda que
lhes permita melhorar significativamente suas condições de vida
através de uma agricultura alternativa ao modelo oficial, distancia-se
do horizonte imediato. Consciente desta situação, a
direção do movimento está preparando seus membros para
enfrentar um período de resistência. Os assentados não
podem viver da esperança de que vão receber créditos e
ajuda de fora, mas devem procurar como seguir em frente com os próprios
recursos.
364. No entanto, esta ofensiva do governo não tem conseguido curvar o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e este não tem deixado de
lutar. De fato, em alguns lugares, tem conseguido transformar em um
boomerang
a oferta do governo de conceder terra via inscrição por correio.
Ao invés de lutar contra os camponeses que por falta de
consciência vão se inscrever de forma individual o objetivo
perseguido pelo governo -, a tática traçada tem sido a de se
apresentar em massa nas agências dos correios. É preciso imaginar
o que significa para uma agência dos correios o fato de mil a mil e
quinhentas pessoas acampadas cheguem a pedir simultaneamente sua
inscrição. As agências dos correios não estão
preparadas para uma inscrição massiva, não têm essa
quantidade de formulários. Além disso, estas ações
do MST têm deixado evidente a demagogia do governo já que os
prazos terminam e a terra não chega.
365. Por outro lado, tendo claro que a estratégia político-social
do neoliberalismo é fragmentar o movimento popular, este movimento se
colocou de acordo com outras organizações camponesas importantes
no país, como são o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), o
Movimento de Afetados por Represas (MAR), Pastoral Juvenil Rural (PJR) e
Associação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR),
para negociar juntos perante o governo, de tal modo que este não possa
realizar uma política diferenciada para favorecer um movimento em
detrimento de outro.
UMA AMPLA ALIANÇA PARA ENFRENTAR O NEOLIBERALISMO
366. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra compreende, além
disso, que sem alianças amplas em nível nacional e internacional
não se poderá deter o avanço do neoliberalismo. Por isso
é um grande impulsionador de amplas mobilizações como o
plebiscito da dívida externa, a luta contra a ALCA e a luta contra os
transgênicos, que tem permitido uma aliança com os movimentos
camponeses de todo o planeta.