O marxismo e os desafios actuais
Entrevista de Marta Harnecker
Tradução de José Colaço Barreiros
Sergio Quiroz:
Quero agradecer-te a disponibilidade para te entrevistarmos para
"Cuadernos de Marxismo"
e esclarecer-te que a nossa revista se dirige a um público variado de
operários, estudantes, intelectuais e outros sectores da
população mexicana, na sua maioria militantes do nosso partido, o
Partido dos Comunistas Mexicanos. Sem mais cerimónias passemos à
primeira pergunta. Marta, como se inicia a tua inquietação pela
política e pelas Ciências Sociais?
Marta Harnecker:
Além de estar identificada com o cristianismo dos pobres desde os 15
anos, creio que a Revolução Cubana desempenhou um papel muito
importante. Vim a este país em 1960 como dirigente estudantil.
Impressionou-me grandemente a dignidade do seu povo. Para aqui chegar tive de
passar pelo México. O contraste entre o empregado do restaurante dos
nossos países, que é muito servil, que nos põe a toalha e
faz vénias, e o camarada que nos atendia em Cuba era abismal. Aqui os
empregados tratam-nos por tu e falavam do processo revolucionário como
uma coisa deles.
Nessa altura eu era presidente da Acção Católica
Universitária e não tinha nada de marxista. Quando volto ao Chile
e quero fazer uma defesa pública da Revolução Cubana,
pedem-me que não o faça porque com isso se punha em risco a
possibilidade de um determinado bispo ser nomeado arcebispo de Santiago. Foi
então que comecei a distanciar-me da Acção
Católica; embora ainda fosse à missa quase todos os dias.
Uns tempos depois ganho uma bolsa para estudar em Paris e ali conheço
Althusser, um filósofo marxista que começava então a
despontar como um dos grandes filósofos europeus. Ele também fora
militante da Acção Católica e andava a elaborar uma
visão do marxismo não contraditória com a possibilidade da
fé; então começo a aderir ao marxismo sem deixar de ser
cristã. Althusser foi o meu grande mestre e continuo a pensar que o que
aprendi com ele foi fundamental para a minha formação. Aprendi
com ele e com as suas obras, fundamentalmente uma metodologia de leitura
crítica.
Sergio:
Vem daí o estruturalismo de Marta Harnecker?
Marta:
Bem, eu rejeito o termo de estruturalismo aplicado a Althusser ou a mim; salvo
se quem o defender pensar que Marx também é estruturalista. Se
entender a dinâmica social a partir da forma como se estruturam os
processos produtivos é ser estruturalista, Marx é estruturalista,
e Althusser também, e obviamente eu como expositora do seu pensamento.
Sergio:
Mas não coincides com o estruturalismo de Levi Strauss.
Marta:
Não, claro que não!
Sergio:
Aí se inicia a tua inquietude...
Marta:
Aí comecei a estudar Marx guiada por Althusser e conversando muito com
ele. A origem do texto que a seguir se transformou nos "
Conceitos Elementares do Materialismo Histórico
", foi um pequeno curso sobre o ponto de vista althusseriano desta
temática numa escolinha de quadros que se formou em Paris para uns 14 ou
15 militantes do Brasil, México, Chile e Haiti, que propiciou um
mexicano que tinha dinheiro suficiente para pagar aos que dávamos o
curso um modesto salário de sobrevivência. Deves conhecê-lo,
chama-se Adolfo Oribe. Naquela época era maoísta.
Sergio:
Sim, de facto.
Marta:
Para esse curso escrevi umas notas tentando explicar de forma mais simples a
interpretação althusseriana do marxismo no que se refere ao
materialismo histórico.
Antes tinha traduzido "
A revolução teórica de Marx
"
(1)
deste autor e escrito um prefácio à versão em espanhol.
Foi a primeira coisa que escrevi na minha vida. Althusser estimulou-me
muitíssimo, disse-me que era muito bom porque captava muito bem o
espírito do seu pensamento e conseguia explicá-lo de uma forma
muito compreensível. O problema de Althusser é que as suas obras
são difíceis de compreender para quem não tiver
formação filosófica. Na América Latina houve um
período de snobismo pró-Althusser e a seguir veio outro
anti-Althusser, mas penso que muitos dos que o elogiaram e depois o atacaram
nunca conheceram a fundo o seu pensamento. A prova disso é o que ocorreu
com a tradução do seu livro "
A revolução teórica de Marx
". Na primeira edição, a editora Siglo XXI não
respeitou a minha tradução do conceito de
structure "à" dominante
por
estrutura "a" dominante
. O filósofo francês diferencia entre
estrutura dominante
e
estrutura "a" dominante
. Este último termo pretende dar conta da estrutura global da sociedade
e
estrutura dominante
(sem o "a") designa uma estrutura parcial, ou seja, pode designar a
estrutura económica ou a política ou a ideológica.
De acordo com o autor, dependendo de qual for o modo de produção,
uma destas estruturas passa a ser dominante na estrutura social global. Esta
encontra-se organizada de modo tal que nela existe sempre uma estrutura parcial
que domina as outras e por isso a denomina estrutura "a"dominante.
Como parecia um tanto esquisito, propus a Althusser
estrutura com dominância
mas ele não concordou porque achava que "com" indicaria
alguma coisa acrescentada, o que não exprimia exactamente o que ele
queria dizer.
Investigando o assunto vi que existe um "a" em espanhol que se
utiliza em frases elípticas, por exemplo: "
chaqueta 'a' quadros
", e muitas outras coisas que se dizem com esse "a".
Concordámos finalmente que iríamos traduzi-la como
estrutura "a" dominante.
Mas o que sucedeu? Que a Siglo XXI simplesmente eliminou o "a" do
termo
estrutura "a" dominante
sem me consultar, com o que impedia o diferenciar entre os dois tipos de
estruturas e assim se deformava o pensamento de Althusser. Eu reclamei e
discuti com eles, e na segunda edição de "
A revolução teórica...
" supunha-se que já viesse corrigido o termo. Dei-o como facto
consumado e nunca revi como tinha saído. Mas uma vez, vários anos
depois, lendo um artigo de Jorge Insunza, membro da direcção do
Partido Comunista do Chile, que ficara entusiasmado com a obra de Althusser
quando esteve exilado em Paris, vejo que ele falava: "...como Althusser
diz: a estrutura dominante ou a dominante..." Foi então que me
perguntei: Mas porque é que Jorge escreve isto? E fui rever "
A revolução teórica...
"
e vejo que tinham ficado passagens com a palavra rectificada misturadas com
passagens que continham o erro da 1ª edição. E
ninguém reclamou durante 16 anos. Supõe-se que muitos professores
usaram nas suas aulas esse livro de Althusser, mas ninguém alertou a
editora para o que se passava. Eu interpreto este facto como que eles
não lhe deram importância, talvez nem sequer tenham detectado o
erro, porque não compreenderam a fundo o pensamento de Althusser.
Confundir os dois termos é realmente não entender nada do
contributo fundamental de Althusser para a compreensão de um conceito
central do marxismo, o conceito de modo de produção.
Não sei se leram a terceira edição corrigida e aumentada
de "
Os conceitos...
", porque aí, numa nota, explicava isto que te acabo de contar.
Costuma acontecer que quando se lê uma primeira edição
geralmente já não se lêem as outras.
Sergio:
Exactamente, só li a primeira.
Nesta terceira correcção do livro que fiz em 1985, na
edição 51, introduzi bastantes alterações,
não de fundo mas de forma e de ampliação de conceitos.
Tenho um longo capítulo sobre a transição do capitalismo
para o socialismo que é completamente novo e que creio trazer uma
série de reflexões que hoje em dia ainda são úteis.
A seguir a ter escrito a introdução à "
Revolução teórica
"
,
vieram essas notas de aulas.
Sergio:
E como conheceste Althusser?
Marta:
Vim para Paris com intenções de estudar o marxismo. Jacques
Chonchol, um amigo meu, que anos mais tarde foi ministro de Agricultura de
Allende, tinha-me recomendado contactar um sacerdote católico que
militava no PC francês. Foi ele que me recomendou a Althusser dizendo-me
que ele gostava muito de trabalhar com jovens. Foi a leitura de vários
artigos seus (ainda não tinham sido reunidos no livro que saiu em 1965,
"
Pour Marx
") que me entusiasmou para estudar Marx. Também teve
influência a observação que me fez uma amiga quando ouviu a
minha explicação acerca da situação na
América Latina. Como latino-americanos, os franceses convidavam-nos a
explicarmos a nossa realidade. Eu estava muito influenciada pelo jesuíta
belga, Beckeman, que dirigia a Escola de Sociologia da Católica no
Chile. Ele falava-nos do círculo vicioso da miséria (como os
países do Terceiro Mundo eram pobres, não podiam acumular para
sair sozinhos da miséria, tinham de pedir ajuda externa). Lembro-me que
uma camarada marxista me disse: Marta, o que estás a dizer, isso
é uma aberração, o que acontece é que são os
países capitalistas desenvolvidos que provocam o nosso
subdesenvolvimento, a nossa pobreza. É a nossa dependência deles
que não nos permite avançar. Foi aí que percebi que a
pobreza não era uma questão de herança, de falta de
capacidade, de frouxidão, mas sim produto do sistema capitalista mundial.
Entusiasmei-me tanto com o que estava a aprender, sentia que pela primeira vez
tinha os pés tão firmes na terra, que decidi depois de
consultar um grupo de amigos que ia deixar a Psicologia e dedicar-me a
estudar o marxismo. Nessa altura pensava sobreviver no Chile dando aulas de
francês. Mas quando cheguei ao Chile, produziu-se a reforma
universitária e, entre as coisas que foram aprovadas, estava o iniciar
programas de formação marxista para os alunos
universitários. Como eu tinha publicado um livro de marxismo ("
Os conceitos elementares...
"), convidaram-me a participar na elaboração dos primeiros
programas. Foi assim que, ao contrário de tudo o que tinha imaginado,
comecei a poder sobreviver graças ao marxismo. Fui dos primeiros
professores que deram cursos universitários de marxismo.
Sergio:
Quando foi isso?
Marta:
Foi no ano de 1970, cheguei nos fins de 68 de França. Mas não
durou muito porque logo no de 1971 me pediram que assumisse a
direcção da revista política
Chile Hoy.
O jornalismo naquela conjuntura tão especial que estava a viver o
país entusiasmou-me grandemente. Tinha muitas discussões com os
meus alunos de Sociologia na Universidade do Chile, onde dava aulas. Na altura
militava no Partido Socialista, um partido da Unidade Popular e os meus alunos
miristas (do MIR) criticavam-me por reformista; tudo o que eu dizia era
interpretado como reformismo. Era um diálogo de surdos. Recordo-me,
porém, de que alguns desses estudantes, os mais honestos, vieram ter
comigo ao finalizar o curso para me dizerem que eu tinha razão nas
coisas que dizia e reconheceram que haviam actuado mal. Por isso inclinei-me
muito mais para fazer cursos a operários e camponeses do PS do que a
universitários. Os operários que assistiam a estes cursos iam com
uma grande ansiedade de aprender para aplicarem de imediato o que aprendiam,
não era o caso dos universitários. Foi então que se
acentuou a minha vocação pedagógica e foi devido a isso
que comecei a escrever os caderninhos de educação popular que
vocês conheceram, porque para mim o mais fundamental é ser capaz
de transmitir conhecimento de uma forma fácil e acessível a todos
para ajudar as pessoas a entenderem melhor e a militarem melhor.
Sergio:
E a transformarem melhor?
Marta:
Evidentemente.
Antonio:
Existe um ponto de confluência entre o marxismo e o cristianismo na tua
formação?
Marta:
Bem, para explicitar a relação entre este cristianismo dos
pobres e o marxismo devo explicar-te que a forma cristã de tratar o
problema dos pobres era uma forma muito assistencialista. Depois descobri logo
que para não haver pobreza se tinha de transformar a sociedade. É
aí que a preocupação pelos pobres é enriquecida com
a explicação acerca da origem da pobreza que me fornece o
marxismo.
Antonio:
Tem-se falado ultimamente de um socialismo cristão e existe um
esforço para descobrir coincidências conceptuais com o
cristianismo acima de tudo e de unificar os conceitos de "ama o teu
próximo como a ti mesmo" com o de "a cada um conforme as suas
capacidades e as suas necessidades"...
Marta:
Creio que as duas afirmações se referem a coisas bastante
diferentes e que "amar o próximo como a ti mesmo" é uma
solução voluntarista. A outra refere-se a uma análise
social que nos leva a pensar numa solução. Neste campo
faço uma autocrítica. Tive a sorte de conhecer o cristianismo no
seu aspecto positivo de preocupação pelos pobres, e ainda antes
da teologia da libertação, quando se falava da teologia da
revolução a época de Camilo Torres e dos
dominicanos franceses. Estes, na sua revista
Frères du Monde,
chegavam até a defender o partido único no socialismo
claro que pensavam num partido único com democracia interna, e os
nossos amigos sacerdotes nos retiros espirituais a que assistíamos
diziam-nos que o pecado era o egoísmo e impeliam-nos a preocupar-nos com
as pessoas. No entanto, apesar de ter conhecido o melhor lado do cristianismo,
quando comecei a militar no Partido Socialista do Chile, nunca me preocupei com
o tema dos cristãos revolucionários. Depois, num livro que
escrevi em meados dos anos Oitenta que foi publicado no México
com o título: "
Indígenas, cristianos, estudiantes en la revolución
"
tentei corrigir este silêncio. Penso que um cristão pode
perfeitamente ser marxista. O que interessa é o programa, o projecto de
sociedade, e não a ideologia, e nisso Althusser foi bem claro. Dizia
ele: nem o teísmo nem o ateísmo são problemas que
pertençam ao terreno da ciência marxista.
Sergio:
Contudo Althusser dizia que a religião era um dos aparelhos
ideológicos do Estado.
Marta:
Bem, essa é outra coisa, tem de se distinguir entre crença e
instituições como a estrutura eclesiástica ou os
sindicatos. Quando Althusser afirma que os sindicatos se transformaram em
aparelhos ideológicos do Estado não está a atacar o
sindicalismo, está a dizer que os aparelhos institucionais sindicais
foram cooptados, porque de facto se têm submetido às regras do
jogo do sistema.
Sergio:
Marta, nestes últimos 15 anos o movimento revolucionário mundial
e da América Latina registou o que se conhece como
"transfuguismo". Muita gente de esquerda, gente ortodoxa do marxismo,
passou à posição de apóstata do marxismo. Tu que te
manténs firme, qual é a tua opinião a este respeito?
Marta:
Para mim o marxismo nunca foi um dogma. Aprendi com Althusser que Marx
só colocou as pedras angulares, que se a realidade mudava se tinha de
fazer todo um desenvolvimento de acordo com a nova realidade. Não
encontrei explicação mais coerente do funcionamento do
capitalismo do que a que dá Marx; independentemente de afirmar no meu
último livro:
Tornar possível o impossível. A esquerda no limiar do
Século XXI
, que não temos hoje em dia um estudo crítico do capitalismo
actual à altura da crítica que Marx fez do capitalismo da sua
época. Penso que a esquerda está saturada de diagnóstico e
falta de terapia. Como diz o próprio Althusser, não basta
conhecer os problemas, tem de se conhecer as suas causas. Não basta
reconhecer os erros, é preciso conhecer as suas causas.
E a propósito disto, creio que a esquerda conseguiu uma coisa positiva,
superou a etapa de se julgar dona da verdade. Está na
disposição de se autocriticar em muitas coisas, de reconhecer os
seus erros, mas falta-lhe conhecer com maior profundidade as causas destes e
por isso costuma voltar a repetir esses mesmos erros de que se autocritica.
Aqui faço outra autocrítica. Se lerem a terceira parte do livro
mencionado verificarão que falo de erros cometidos nas décadas de
70 e 80, mas não reflicto acerca de quais teriam sido as causas destes
erros. Foi só recentemente que estive a pensar onde estaria a sua
origem, quais seriam os elementos teóricos que estariam por
detrás destes erros. Tentei escrever alguma coisa já há
mais de um ano, mas não pude continuar por falta de tempo. Eu vivo
bastante angustiada pelo tempo. Falta-me tempo para ler, para aprofundar
algumas coisas. No MEPLA, o centro que dirijo em Cuba, já não
fazemos investigações teóricas, dedicamo-nos a investigar
experiências comunitárias de protagonismo popular e a escrever
livros testemunhos e videos acerca delas. Às vezes dá-me vontade
de me dedicar só a estudar e a escrever, mas por outro lado apercebo-me
de que se caminha um pouco em ziguezague, como dizia Lénine. O estudar
experiências concretas e entrevistar gente concreta, militantes e
lutadores concretos, é o que me permitiu fazer este último livro,
porque para o escrever me alimentei de lutas reais, de reflexões reais e
não de reflexões académicas de quem escreve livros sobre a
esquerda.
Eu não sou socióloga de formação, não
conheço o léxico sociológico; sou psicóloga e,
portanto, quando me começam a falar de "anomia",
"sinergia", e de uma série de outros termos pertencentes
à gíria dos sociólogos, muitas vezes não compreendo
de que estão a falar. Tenho vindo a aprender alguns destes termos, mas a
minha vocação pedagógica leva-me a empregar uma linguagem
o mais simples possível, ao alcance de todos. Não nego que para o
avanço de uma ciência é necessário elaborar
conceitos que dêem conta da realidade que ela investiga, que sintetizem
em poucos termos um fenómeno que sem eles necessitaria de uma longa
explicação; é por isso que entendo a necessidade, por
exemplo, de usar o termo "estrutura a dominante". O que ponho em
causa é o uso desnecessário da gíria se queremos comunicar
com a gente comum, tanto da gíria sociológica como da marxista.
Se algo nos ensinou Fidel foi que era possível formar todo um povo na
compreensão marxista da história sem empregar nenhuma palavra da
gíria.
Obviamente, também não estou de acordo com o introduzir palavras
em inglês nos nossos trabalhos escritos em espanhol. E a propósito
de palavras em inglês, não concebo que gente que se diz de
esquerda aceite sem reagir que nos nossos países hispanófonos
apareçam cada vez com maior frequência termos em inglês nos
lugares públicos e que nas nossas conversações
diárias usemos termos em inglês. Porventura não dizemos
nós que a luta pela soberania começa com a luta pela identidade e
que esta está muito relacionada com o idioma?
Sergio:
No teu livro "
A esquerda não limiar do Século XXI
", fazes uma crítica aos que se guiam pela ideia de que
política é fazer o possível.
Marta:
Definir a política como a arte do possível, é isso que
critico. É dizer a quem considera que só é possível
adaptar-se à situação, unir-se ao coro neoliberal. Vou
entregar-te um texto meu onde resumo este ponto de vista. Mas talvez seja
importante aproveitar para explicitar o que entendo por esquerda, porque no
livro que tu mencionas não defini o que entendia por ela...
Quando falo de esquerda como explico no meu último livro, ainda
não publicado: "
América Latina: Tarefa estratégica: articular a esquerda
partidária e a esquerda social para formar um grande bloco social
antineoliberal
" estou a pensar no conjunto de forças que se opõem
ao sistema capitalista e à sua lógica do lucro. Forças que
lutam por uma sociedade construída a partir dos interesses das classes
trabalhadoras; uma sociedade alternativa humanista e solidária, livre da
pobreza material e das misérias espirituais que engendra o capitalismo.
Não reduzo, portanto, a esquerda aos sectores que militam em partidos ou
organizações políticas de esquerda, mas incluo
também actores e movimentos sociais. Estes são muitas vezes mais
dinâmicos e combativos, e estão mais identificados com os ideais
indicados, mas não militam em nenhum partido ou
organização política. Entre os primeiros há quem
aposte em acumular forças pela via do uso transformador das
instituições, outros por meio da luta guerrilheira
revolucionária; entre os segundos há quem procure ir construindo
movimentos sociais autónomos e diferentes tipos de redes.
Estou convencida de que só a união dos esforços militantes
das mais diversas expressões da esquerda criará as
condições subjectivas para reunir numa
única grande coluna
a crescente e dispersa oposição social.
Sergio:
Tu falas de sociedade alternativa; como construir uma alternativa à
globalização neoliberal? Uma alternativa local para o mundo
global. Qual é a tua opinião sobre o assunto?
Marta:
Creio que a esquerda tem de ter os pés muito firmes na terra se quiser
tomar o céu de assalto, e ter os pés bem firmes, para mim,
significa reconhecer as mudanças que tem sofrido o mundo. Há
sectores da esquerda que ao verem as dificuldades do presente adoptam a atitude
de ter saudades do passado melhor porque evidentemente foi um tempo melhor para
a esquerda. De certo modo procura voltar ao passado e não quer que se
reveja nenhum dos pontos que foram chaves para nós no passado, por
exemplo o papel do Estado. Eu penso que o Estado tem um papel importante,
especialmente nos países pouco desenvolvidos. Mas a questão
radica em se se deve pensar esse Estado da mesma maneira como o fazíamos
antes, ou se tendo mudado o mundo temos de pensar em novas formas
de Estado, em novas instituições, novos instrumentos
políticos. Se a sociedade mudou e o partido não é um
objectivo em si mesmo, mas antes um instrumento para a
transformação dessa sociedade, parece claro que este instrumento
se tem de adequar a esta nova realidade.
Por outro lado, se hoje se dá uma forma nova de
internacionalização do capital o que não significa
negar o imperialismo, ou seja, negar que existem impérios ?
é natural que isto se traduza em alterações dentro do
próprio processo de trabalho: as características do trabalhador
de hoje não são as mesmas que as do trabalhador das grandes
concentrações industriais do passado. A empresa-rede, os
fenómenos da subcontratação, fragmentação,
flexibilidade laboral e muitos outros, são fenómenos que
não podem deixar de ser tomados em conta quando se reflecte sobre a luta
sindical de hoje, que não se pode orientar pelas mesmas linhas das lutas
do passado.
Considero que uma esquerda realmente transformadora não pode ser uma
esquerda nostálgica do passado, mas sim tem de ser capaz de enfrentar
criativamente o porvir. Por isso não estou de acordo quando se tenta
minimizar as grandes mudanças que tem sofrido o mundo nestas
últimas décadas; não me parece correcto negar a novidade
da actual forma de internacionalização do capital que é
denominada por muitos "globalização" ou
"mundialização". Lá porque o primeiro termo foi
inventado pelos norte-americanos não podemos negar a novidade para que
aponta. Não vou desenvolver isto aqui porque na segunda parte do meu
livro "
A esquerda no limiar do Século XXI
"
me refiro pormenorizadamente a este tema.
E a propósito, é por isso não gosto da capa que fez a
Siglo XXI do México para este livro.
(4)
Penso que me prende ao passado ao
pôr as caras de Marx e do Che, não porque eu hoje renegue Marx ou
o Che, mas porque toda a gente me conhece pelos
"
Conceitos elementares do materialismo histórico
", onde exponho o pensamento de Marx. O facto de aparecer Marx nesta capa
poderá fazer o leitor pensar que neste novo livro não proponho
nada de novo. Por isso me parece tão interessante a capa da
edição canadiana que traz uma foto a cores com a rede de
Québec a ser derrubada pelos Black Block simbolizando a
rejeição da juventude à actual globalização.
Esta capa está mais próxima da temática que abordo na
segunda parte deste livro onde trato o tema da globalização
neoliberal e a necessidade de lutar por uma globalização
humanista e solidária, e da minha linha de orientação
central que defende que se o mundo mudou, também têm de mudar as
respostas da esquerda.
Creio que talvez a maior dificuldade que temos de enfrentar seja a falta de uma
proposta alternativa rigorosa e credível ao capitalismo actual. E isto
tem a sua origem, creio eu, em não termos sido capazes de elaborar uma
crítica do capitalismo de hoje o capitalismo da
revolução da informação com a profundidade e
a amplitude com que Marx fez a crítica do capitalismo da sua
época. Sabemos que a futura sociedade que queremos construir não
vai surgir das nossas cabeças e desejos, mas sim da
superação das contradições da actual sociedade e da
adequada orientação que se der às suas potencialidades. Se
não soubermos bem como funciona esta nova etapa do capitalismo,
não vamos poder elaborar soluções eficazes para superar os
seus problemas.
Sergio:
É necessário fazer a recriação de "O
Capital"?
Marta:
Mais que recriação eu diria actualização. Tem de
se criar novos conceitos para dar conta das novas realidades.
Mas não falta só esta análise crítica do
capitalismo de hoje. Também não podemos ignorar o que aconteceu
ao socialismo soviético. O facto de este ter caído em tão
curto tempo e de ninguém no mundo o ter previsto, nem sequer os seus
piores inimigos, que fizeram tudo para o destruir, coloca à esquerda um
grande desafio. Creio que não estudámos a fundo estas
experiências e, por consequência, não extraímos delas
os ensinamentos pertinentes.
Sergio:
Não há aí muito pessimismo?
Marta:
Apesar de tudo o que te disse, sou optimista e creio que no livro se
entrevê um caminho, se assim não fosse não faria sentido
tê-lo publicado. Este optimismo assenta na convicção de que
a nova sociedade democrática e participativa que queremos construir
não pode ser construída por decreto, a partir de cima. A
democracia não se decreta, constrói-se, requer uma profunda
transformação cultural das pessoas, para que estas passem a ser
os verdadeiros sujeitos protagonistas da história, que se sintam
comprometidas com o rumo que segue a sociedade, ou seja, que essa sociedade
seja construída entre todos, que cada um se sinta parte dessa
construção. Para mim não há socialismo se
não houver isto.
O grande problema do socialismo real foi justamente que o Estado assume quase
todas as tarefas e tenta resolver de cima os problemas da gente. Um estado
forte e centralista foi eficaz durante vários anos em muitos
países do chamado "campo socialista" para tirar esses
países do atraso e da miséria. Tem de se recordar que os
problemas económicos eram tão grandes que em muitos deles a gente
morria de fome. Tinha de se pôr esses países a produzir fosse como
fosse, com uma grande disciplina empresarial e usando o taylorismo para o
conseguir. Mas embora este esquema ou modelo altamente estatizante e
centralizado tenha sido capaz de sucessos económicos significativos, que
espantaram o mundo, subsistia nele um problema que não se conseguiu
resolver: sob um estado central que decide tudo, com escassíssima
autonomia local, como se podia fazer que os trabalhadores se sentissem
participantes desse processo, ou seja, como gerir o sujeito protagonista da
nova sociedade?
Por isso creio que tudo o que fizer a esquerda desde já com o fim de
contribuir para esta transformação cultural que mencionei
é ir preparando a partir de baixo as condições que
permitam a construção da futura sociedade por que lutamos. Embora
o trabalho nos movimentos populares, nos espaços locais, seja um
trabalho muito lento, quase de formiga em certos casos, é um trabalho
que vai ficando, que se vai somando.
Na minha opinião os governos locais, sob governos de esquerda que
promovam a participação popular, podem tornar-se espaços
privilegiados para ir criando sujeitos, para ir criando homens que tomem
decisões, que participem democraticamente, que cresçam
humanamente, que cresçam em dignidade.
Ainda não construímos a grande alternativa mas sabemos para onde
temos de caminhar. Por outro lado, sabemos que as alternativas também se
vão construindo a partir da própria prática, por meio de
métodos de tentativa e erro. Quando constato que não há
uma alternativa bem elaborada ao capitalismo, não estou a propor que
fiquemos de braços cruzados. Enquanto se vai elaborando teoricamente,
há muito para avançar no terreno prático.
Creio que o que temos de compreender é que a construção se
faz a partir de diferentes espaços e tem de ser complementar. Acho muito
importante estudar a experiência de Porto Alegre, o orçamento
participativo e todo o tipo de gestão colectiva que vai nascendo sob
diferentes formas nessa cidade e que se está a dar em muitos governos do
PT no Brasil e noutros lugares da América Latina.
Os prefeitos do PT em Porto Alegre têm compreendido muito bem, por
exemplo, que a pressão popular é fundamental para se conseguir
que esse pesado aparelho herdado se possa orientar, pelo menos parcialmente,
num sentido diferente. Porque perante essa institucionalidade herdada há
duas possibilidades: uma é adaptar-se à institucionalidade e
limitar-se a administrar de forma eficiente, a outra é usar essa
institucionalidade para educar a população, para fomentar o
protagonismo da gente e tem de se aceitar que se vão produzir conflitos
entre as reclamações populares e as possibilidades de
satisfazê-las e que a pressão popular sobre o governo pode ajudar
quem nele está a desenvolver soluções. A esquerda tem de
compreender que uma coisa é ser de esquerda na oposição e
outra ser uma esquerda com posição. Quando se está no
governo tem-se de tomar decisões, elaborar respostas em ritmos e tempos
limitados. Tem-se de tomar posição.
Sergio:
O que está a acontecer a Rosario Robles no Distrito Federal, por
exemplo. Ela teve de resolver problemas de segurança pública e
ser a governadora de uma das cidades maiores da América Latina. Teve de
usar a polícia para deter desordens geradas por provocadores infiltrados
em movimentos encabeçados por partidos de esquerda. É um problema
difícil tomar uma decisão neste caso, não é?
Marta:
É muito complicado!
Sergio:
Complicadíssimo!
Marta:
Um dos grandes problemas dos governos de esquerda e viveu-o o
presidente Allende durante o governo da Unidade Popular no Chile
produz-se quando a própria esquerda não tem uma estratégia
comum. O governo considerava que era conveniente atingir só as grandes
empresas, controlar os centros económicos estratégicos e procurar
uma aliança com os pequenos e médios empresários. O MIR
(um grupo da esquerda radical) não compartilhava desta estratégia
e dedicou-se a tomar pequenas empresas. Criou-se assim uma
situação de insegurança que afectou todo o empresariado,
dando a ideia de que se ia estatizar tudo, o que permitiu que os grandes
capitalistas tivessem como aliados os pequenos, anulando a política de
alianças da UP. Tabaré Vázquez, candidato a presidente da
República do Uruguai e presidente da coligação de esquerda
Frente Ampla parece ter aprendido a lição. Decidiu renunciar
à condução da Frente Ampla quando um dos grupos que faziam
parte da Frente Ampla não respeitou as normas de funcionamento
concordadas. Se não se parasse a tempo com tais indisciplinas, o que
não poderia acontecer se ele chegasse ao governo do país...
Antonio:
Queria fazer-te uma pergunta acerca do futuro imediato. Afirma-se que com os
novos avanços tecnológicos só 20% da
população mundial são suficientes para trabalhar, para
criar os produtos de que necessitam os 80% restantes. O que irá suceder
então ao conceito de classe operária?
Marta:
No meu livro sobre a esquerda há todo um capítulo dedicado a
este tema. Aí interrogo-me sobre qual será o futuro do trabalho.
Se vamos ou não a caminho de um mundo sem trabalho. Eu não creio
que o trabalho tenda a desaparecer. Se se analisarem algumas experiências
de introdução da informática no processo produtivo
separadas do contexto global, pode-se constatar que nesses processos
indubitavelmente diminuiu enormemente o trabalho humano: que se reduziu o tempo
de trabalho e o número de trabalhadores. Mas o que a análise
casuística não permite é ver que juntamente com a
redução do trabalho em determinadas áreas se abrem novas
fontes de trabalho noutras áreas. O problema que temos de pensar como
esquerda marxista é que estes novos trabalhos hoje em dia têm
outra qualidade, ou seja, que a produção hoje é muito mais
imaterial do que era antes. Na área da informática, do
conhecimento, crescem enormemente os postos de trabalho, enquanto noutras
áreas aumentam os despedimentos. Costuma acontecer que enquanto
há desemprego em profissões que tiveram grande auge no passado,
sobram postos de trabalho para as novas profissões, porque não
há pessoal suficientemente qualificado para as assumir.
Não nego com isto que o avanço tecnológico no mundo, o
avanço das forças produtivas, implica a possibilidade de reduzir
o tempo de trabalho necessário. Marx pensa que será na medida em
que o conseguir que o homem se libertará. É claro porém
que enquanto houver capitalismo a tendência será para que um
sector trabalhe muito enquanto uma parte significativa da
população não terá onde trabalhar. Creio que a
nossa preocupação como esquerda tem de ser, pelo
contrário, que todos trabalhem menos para que todos tenham trabalho.
Há quem considere que a única solução para o actual
desemprego é que todas as pessoas recebam uma determinada receita,
trabalhem ou não; que recebam para não morrerem de fome. Esta
fórmula que parece muito humanitária e que até pode
ser necessária na actualidade no meu entender é uma
fórmula imperfeita. Não basta que o homem tenha com que viver,
precisa de se sentir útil à sociedade.
Por outro lado, também se tem de redefinir o que entendemos por
trabalho, porque quando pensamos em trabalho estamos a pensar muitas vezes
só no trabalho assalariado fixo, com um horário de 8 horas,
segurança social e férias pagas, e costuma-se achar estranho quem
trabalhe 5 horas de forma instável, ou 3 ou 4 meses por ano.
O nosso conceito de trabalho tem muito a ver com o anterior processo produtivo
que requeria dias de trabalho longos e estáveis. Dever-se-ia perguntar
aos jovens se querem trabalhar 8 horas diárias durante todo o ano ou se
as suas aspirações são outras. E não seria estranho
verificarmos que o jovem quer dinheiro suficiente para viver mas não lhe
interessa trabalhar 8 horas; quando muito interessa-lhe trabalhar 3 meses
intensivamente para poder viajar os outros 3 ou poder fazer o que quiser;
porque eu creio que o homem vai ter sempre de dedicar um tempo da sua vida a
trabalhar no que não lhe agrada, são pouquíssimos os
privilegiados que podem trabalhar todo o tempo no que lhes agrada. Por isso,
penso eu, é que Marx afirma que o reino da liberdade vem a seguir
às horas de trabalho necessário. Vai haver sempre trabalhos
monótonos e mecânicos e alguém terá de
fazê-los.
Por outro lado, os que prognosticam um mundo sem trabalho, estão a
pensar partindo da realidade de países altamente desenvolvidos onde a
nova revolução tecnológica contribuiu para eliminar grande
quantidade de postos de trabalho; mas isto não se passa assim noutras
regiões do mundo. Nalgumas delas o capitalismo industrial está a
expandir-se com muita força e a criar novos postos de trabalho. O mundo
não é a Europa, nem é só os Estados Unidos.
Sergio:
Isto podia ser uma estratégia para enfrentar o neoliberalismo com a
redução ao máximo do horário laboral porque haveria
mais trabalho para todos como indicas tu...
Marta:
Estou convencida de que uma política laboral que diminua o
horário de trabalho para que se trabalhe menos e todos tenham trabalho
só se consegue se se acabar com o capitalismo, dado que a lógica
do lucro que move este sistema não permite este tipo de
soluções. É necessário outro modelo em que a
economia funcione em função do homem e não do lucro.
Sergio:
Agora há um elemento que a mim me preocupa bastante, que é o
papel dos meios de comunicação, fundamentalmente da
televisão na formação da consciência das grandes
massas. Que possibilidades existem de empregar os meios como instrumentos de
resistência e libertação das massas?
Marta:
Este tema também é tratado no livro. Aí refiro-me
à indústria do consenso e à forma de domesticar o rebanho
perplexo de que fala Chomski. Creio que entre as armas mais poderosas para
reproduzir o sistema actual se contan os meios de comunicação. No
entanto, dou razão a Castells quando diz ser paradoxal que a esquerda,
que se coloca como tarefa a transformação do mundo, diga que
estamos submetidos a uma máquina infernal que nos esmaga, porque, no
fundo, se sobrevalorizarmos o efeito das mensagens da televisão
então realmente só nos resta pensar que a gente está
aniquilada, e não é assim.
Eu tenho a experiência prática de saber o que aconteceu em Porto
Alegre, um lugar onde os meios de comunicação estão
completamente controlados pela direita e não se dá nenhum
espaço ao governo local de esquerda, salvo se pagar anúncios
nesses meios. O que aconteceu aí? Uma prática política
democrática diferente por parte do governo do Partido dos Trabalhadores
fez que as pessoas tenham um distanciamento crítico perante as mensagens
da televisão.
É por isso que nesta época de globalização cada vez
maior adquirem cada vez mais importância os espaços locais, que
são os espaços onde realmente se pode dar o protagonismo da
gente. E em relação com isto creio que a esquerda tem de repensar
o papel do Estado e o papel das instituições. Costuma acontecer
que às vezes se valorizam mais as soluções institucionais
para a distribuição de riquezas porque parecem ser mais
racionais, e seguramente são-no, para implementar uma série de
coisas entre outras, para uma distribuição mais
igualitária, etc. Não há dúvida de que do ponto de
vista da eficiência isto parece muito razoável. Mas o problema
é outro. O problema não é só de eficiência,
é de crescimento humano: de participação na tomada de
decisões, de sentir-se envolvido, consultado. Não há
dúvida de que é mais eficiente e igualitário que o Estado
reparta os excedentes de determinadas empresas de cima para dar uma quantidade
igual de bens a todas as escolas do país, mas isto significa que se
perde a relação concreta de uma empresa determinada com uma
comunidade escolar determinada, e dos trabalhadores dessa empresa com os
vizinhos da comunidade, discutindo en conjunto como empregar os recursos e como
aumentá-los. Estes espaços concretos são os espaços
onde a gente discute, onde avança com prioridades, onde se compromete,
onde cresce. Quer dizer, pode-se pensar uma solução
técnica muito perfeita para uma cidade, mas resulta que é mais
importante talvez que a gente cometa um erro mas que se sinta envolvida, que se
sinta protagonista do que decide e constrói.
Sergio:
Isto na época do estalinismo teria sido uma heresia, não?
Marta:
Provavelmente. Penso que se tem de apostar na autonomia, em criar
espaços en que a gente realmente possa decidir o que fazer sem que seja
tudo decidido a partir de cima. Não acham que quando lemos o texto de
Marx sobre a Comuna de Paris, o que nos ficou gravado como a novidade da comuna
foi a necessidade de destruir o aparelho de estado burguês? O que eu pelo
menos não captei nessa época é que Marx estabelecia que se
tinha de destruir o aparelho
centralista
do estado burguês. Esta palavra "centralista" não a
assimilei na altura. Por outro lado, como líamos Marx a partir de
Lénine e no "
Estado e a revolução
" Lénine esclarecia que Marx não se opunha à ideia de
ter uma gestão central do estado, ficava-se com a ideia da necessidade
da centralização e esquecia-se a necessidade de destruir o estado
centralista. Na minha opinião, Marx criticou a ideia de um estado
hipercentralizado que impedia a autonomia das comunas, embora reconhecesse a
necessidade de articular estas comunas. Mas uma coisa é articular
comunas autónomas e outra é eliminar a autonomia a favor do
centralismo. Penso que o desafio da esquerda é pensar um Estado
mínimo, contudo não no sentido neoliberal, mas sim no sentido de
delegar nas comunidades poder, que não é outra coisa senão
poder fazer, poder decidir o que fazer, e para isso é necessário
descentralizar recursos, ou, pelo menos, descentralizar a tomada de
decisões acerca dos recursos, porque sem recursos não há
autonomia, não há
poder real
que não é senão
poder fazer
. Não sabemos porventura que a mulher só é realmente livre
quando deixa de depender do salário do seu marido para sobreviver?
Sergio:
Marta, em nome da revista agradecemos a tua disponibilidade para esta
entrevista.
__________
(1)
O título da citada obra em francês é "
Pour Marx
".
(2)
...
(3)
Vertiente Artiguista,
De primera fuerza a governo nacional. Perspectivas estratégicas y
propuestas para el período,
Versão final do documento N° 5 apresentado nas Jornadas de
Reflexão desenvolvidas pela Vertiente Artiguista a 28 e 29 de Outubro de
2000 em Maldonado, op.cit. p.1.
(4)
A esquerda no limiar do Século XXI
foi publicada pela Siglo XXI Editores do México (Julho de 1999) e
Espanha (1ª ed. Dez. 1999, 3ª Out. 2000); em Cuba pela editora
Ciencias Sociales (Janeiro de 2000); em Portugal por Campo das Letras
(Março de 2000, 2ª ed. 2001); no Brasil por Paz e Terra; em
Itália, por Sperling & Kupfer (Janeiro de 2001) e em Montreal,
Canadá, por Lanctôt editeur (Set. 2001); El Salvador,
Instituto de Ciencias Políticas e Administrativas Farabundo Martí
(Set. 2001).
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