Entrevista ao Presidente Hugo Chávez (parte 2) [*]
A transição pacífica:
|
Enquanto a organização popular cresce de dia para dia, a
oposição embora dividida quanto à táctica a
seguir e carente de uma liderança aglutinadora persiste na sua
ânsia por afastar Chávez de Miraflores. Surda às chamadas
ao diálogo nacional propiciado pelo governo e debilitado o
cenário do golpe militar perante o rotundo fracasso da tentativa de
destituir o presidente da República por essa via, a direita
começou a montar uma estratégia institucional para realizar o seu
objectivo. Tenta criar uma correlação de forças
desfavorável ao governo na Assembleia Nacional que lhe permita destituir
o fiscal geral da República, principal travão para avançar
neste caminho, já que sem o seu beneplácito não é
possível nenhum processo contra o presidente da República.
Por seu lado, Luis Miquilena, antigo aliado e peça chave da articulação política do bloco bolivariano nas contendas eleitorais que dão um esmagador triunfo ao presidente e aos quadros que se identificam com o seu projecto na Assembleia Nacional, nos governos estaduais e municípios, tornou-se um dos líderes da oposição e arrastou consigo a maior parte dos quadros que devem os seus cargos no aparelho de Estado à sua influência, o que está a redundar numa situação bem difícil para o governo em que a correlação de forças se refere tanto na Fiscalía Geral da República como no Tribunal Supremo de Justiça que tem de se pronunciar nestes dias sobre os julgamentos aos militares golpistas. Para um observador superficial o governo parece ter caído na sua própria cilada. A nova institucionalidade criada não será o cavalo de Tróia que permitirá minar por dentro o processo revolucionário bolivariano? O que fazer se o Tribunal Supremo declarar que não há razões para julgar os militares golpistas? O leitor poderá encontrar resposta a esta e outras interrogações neste texto onde Hugo Chávez aponta com grande honestidade os sucessos e as fraquezas do actual processo de transformações políticas que está a viver a Venezuela de hoje. Trata-se de mais um capítulo que adiantamos de um livro em preparação. |
O Movimento Bolivariano 200 apresentou já antes da rebelião
militar de Fevereiro de 1992 a ideia de convocar uma Assembleia Constituinte.
Tratava-se conforme disseste de tentar criar uma
situação, quer através das armas quer por um processo
pacífico eleitoral, que permitisse desencadear a força
constituinte para quebrar numa primeira etapa as estruturas
jurídico-políticas do país e poder avançar a seguir
nas transformações socio-económicas de que o país
tanto necessita. Porquê esta ênfase na Assembleia Constituinte?
Donde vem a ideia?
102. Aqui na Venezuela, quase ninguém falava de Assembleia
Constituinte. Muita gente até nem sabia o que era isso.
103. Tem de se recordar que o Caracazo, 27 de Fevereiro de 1989, foi o
catalisador do Movimento Bolivariano Revolucionário. Quando Carlos
Andrés Pérez enviou as Forças Armadas para a rua com o
objectivo de reprimir aquela explosão social e houve um massacre, os
militares bolivarianos do MBR 200 analisámos que havíamos passado
o ponto de não-retorno e decidimos que se tinha de pegar nas armas.
Não podíamos continuar a ser os cães de guarda de um
regime genocida. Começámos então a acelerar a
organização do Movimento, a procura de contactos com civis e
movimentos populares; a pensar na estratégia, na ideologia, mas
sobretudo na estratégia: o que fazer para transcender uma
situação e procurar uma transição para outra.
104. Começámos a planificar essa estratégia. A
história é assim, pode ser imaginada e transformada em plano
antes de acontecer e daí provém o repto de tornar possível
o impossível. A história é uma sequência de
situações e a questão está em como antever as
próximas situações, para onde vai o curso histórico
ou para onde pode ir e empurrá-lo para lá.
105. Então nessa procura de pontes de transição para
romper com o passado sempre negámos liminarmente a figura de um golpe
militar tradicional ou de uma ditadura militar ou uma junta militar de governo.
Tínhamos bem presente o que aconteceu na Colômbia nos anos de
1990-1991 quando ali se realizou uma Assembleia Constituinte, muito limitada,
claro, porque no fim acabou subordinada ao poder constituído. Foi o
poder constituído que concebeu a Constituinte colombiana e a pôs
em acção, e portanto não pôde transformar a
situação porque a Constituinte ficou prisioneira do poder
constituído.
106. Esse processo foi a fonte de inspiração do movimento de
venezuelanos que se chamou Frente Patriótica. Era um grupo de
intelectuais, entre os quais alguns juristas, que em 1990-1991 emitiu alguns
comunicados e se pronunciou por uma Assembleia Constituinte citando o exemplo
da Colômbia.
107. Então nós começámos a pedir materiais, a ler,
a tentar obter assessoria jurídico-política e, já antes do
4 de Fevereiro, tínhamos algumas ideias sobre o assunto e
pensámos nalgumas acções a impulsionar no caso de a
rebelião ter tido êxito. Chegámos a elaborar decretos para
convocar uma Assembleia Constituinte. Claro, sem termos desenvolvido
suficientemente a ideia. Creio que na altura não tínhamos nem a
força nem os actores preparados para impulsionar esse projecto, mas de
qualquer modo lançámos a semente e foi então que o
país começou a perguntar-se: bom, o que é isso de uma
Constituinte?
108. Da prisão em Yare, continuámos a elaborar, a aprofundar. E
alguns sectores civis, académicos, intelectuais, continuaram a escrever
sobre o assunto. Isto teve algum auge momentâneo, mas a seguir vieram as
eleições em que ganhou Caldera e a ideia foi sendo relegada para
logo ressurgir com força quando saímos da prisão. Porque
saímos de prisão para percorrer o país com esse programa
e, sobretudo, saímos para racionalizar a ideia, para a trabalhar. Foi
para isso que nos pusemos a estudar os teóricos do Poder Constituinte.
109. Recordo Toni Negri
[1]
, por exemplo, e os seus estudos sobre o Poder
Constituinte; os teóricos franceses do Pouvoir Constituante.
Estudámos a fundo o pensamento de Rousseau sobre o contrato social.
Começámos também a procurar experiências na
América Latina. Fomos a Bogotá, conversei com os três
co-presidentes da Assembleia Constituinte colombiana: Álvaro
Gómez Hurtado que foi assassinado uns anos depois, Horacio
Serpa e Antonio Navarro. Trouxemos muitos documentos e conhecemos muitas
iniciativas que lá se tomaram a nível popular. Embora não
hajam tido expressão na Assembleia Constituinte, contudo ficaram como
propostas de participação.
110. Assim fomos amadurecendo a ideia, a semente lançada no 4 de
Fevereiro. Pouco a pouco foi adquirindo uma projecção
histórica, porque então começámos a falar do
processo constituinte, e não só da Assembleia Constituinte. Uma
das lições importantes que extraímos do que sucedeu na
Colômbia é que ali realmente não houve um processo, foi um
facto pontual que acabou por ser dominado pelo Estado imperante, pelo poder
constituído. Realmente não houve a libertação do
poder constituinte.
111. Concebemos uma metodologia para explicar o processo constituinte e para a
nossa gente não se limitar a ver a Assembleia Constituinte como a meta,
o fim em si. Dividimos este processo em etapas.
112. Definimos
a primeira etapa como o despertar do poder constituinte
: a transformação da força em potência real.
Lembro-me de dar o exemplo do gelo que se derrete e corre como a água,
ou uma rocha que está no alto de uma montanha como força
potencial e cai e desencadeia a avalancha, ou coisa assim. Do nosso ponto de
vista isso ocorreu a 27 de Fevereiro de 1989, com o Caracazo.
113. Um escritor venezuelano escreveu uma vez que nesse 27 de Fevereiro o povo
venezuelano saiu à rua e ainda não regressou. A repressão
selvagem fez que a gente se retirasse, mas continuou a agir de dentro de casa:
actos, escritos, murais por aqui; concentrações pequenas, algumas
marchas por ali; então houve estudantes e dirigentes sociais mortos;
houve prisão, perseguição. Esse poder constituinte estava
como que reprimido mas em ponto de ebulição; era como uma
força expansiva que procurava espaço: as massas ocupando tudo por
aqui, por ali, como dizia Ortega.
114. A seguir vieram os acontecimentos de 14 de Fevereiro de 1992. O protesto
popular desencadeou-se quando o povo percebeu que havia um grupo de militares
junto dele. Nesse momento o povo passou dessa situação de
ebulição reprimida a uma expansão explosiva. Esta
rebelião militar, creio que foi a maior da história venezuelana.
Quantos militares participaram nela?
115. Foi muito mais importante o peso qualitativo que o quantitativo, porque
apesar de só termos mobilizado dez por cento dos efectivos, isto
é, uns dez batalhões, eram batalhões de elite,
batalhões importantes; unidades de muito peso: tanques,
pára-quedistas, mísseis antitanques, etc. Abalou as estruturas
internas da instituição militar. Saímos uns 6 mil homens;
movimentámos tanques, helicópteros; tomámos cidades; houve
combates: no Palácio, na Casona
[2]
, em Valencia, Maracay e Maracaibo.
Quantas pessoas foram presas?
116. Presos às primeiras éramos uns 300; depois foram libertando
alguns que não tinham grande comprometimento.
117. Mas enfim, voltando à etapa de expansão explosiva do poder
constituinte. Era como um rio sem leito. Tinha de se orientar esse poder,
encaminhá-lo, canalizá-lo, porque não se podia passar o
que já sucedeu em muitos países, que se desencadeia uma grande
força mas acaba por ser destrutiva e às vezes até
autodestrutiva, anárquica.
118. Agora, como canalizar para objectivos comuns essas forças
desencadeadas: de esquerda, progressistas, revolucionárias, respeitando
a sua diversidade?; como levar avante essa vaga sem que te atropele, sem que te
absorva e te engula? Era este o nosso desafio. Era fundamental orientar esta
força já que sabíamos que só as forças
sociais desencadeadas podem transformar a realidade.
119. Quando Caldera foi eleito presidente e nós saímos da
prisão e nos dedicámos a percorrer o país e a analisar a
situação verificámos que uma nova
insurreição seria uma loucura. Do ponto de vista militar, por um
lado, o nosso movimento tinha a maior parte dos seus líderes militares
que gozavam de grande apoio e tinham gerado uma grande expectativa
popular fora da instituição e; por outra, o movimento
militar interno ficou muito enfraquecido, muito desarticulado, com pouca
capacidade para organizar um novo levantamento militar porque a maioria dos
seus líderes já estavam detectados. E tem de se acrescentar que o
sistema tomara medidas internas para evitar um novo levantamento:
fortalecimento dos seus quadros, colocação da sua gente nos
sítios-chave, etc.
120. Do ponto de vista social, dedicámo-nos a investigar o que pensava o
povo. E embora aqui sempre tenha havido correntes populares partidárias
de um movimento armado, contudo, nesses percursos que fizemos pelo país
porque percorremos o país de ponta a ponta durante esses dois
anos (1994-95), creio que não deixámos de ir a nenhuma cidade,
povoação, acampamento, aldeia indígena nem bairro,
e nas sondagens de opinião que efectuámos, notámos que
grande parte do nosso povo não queria movimentos violentos mas antes
tinha a expectativa de que organizássemos um movimento político,
estruturado, para optar por uma via pacífica. Decidimos então
avançar para a via eleitoral.
121. Discutimos muito sobre o caminho a tomar. Nesse momento não
deixaram de aflorar contradições; alguns grupos estavam em
desacordo com a via eleitoral e foram-se embora. Acusavam-nos de ter abandonado
a via revolucionária por abandonarmos as armas, mas quem disse que as
armas garantem uma via revolucionária? Muitas vezes as armas têm
estado ao serviço de processos contra-revolucionários. Continuam
por aí algumas individualidades ou grupos que se mantêm
críticos em relação à via eleitoral; outros
voltaram.
122. Sabíamos que era uma decisão estratégica que podia
levar-nos por um caminho catastrófico, que podia encerrar-nos na cilada
das forças do sistema de Ponto Fixo
[3]
; que podia conduzir-nos a um
pântano em que podíamos afundar-nos. Eu tinha muito medo de acabar
com uns deputaditos, uns governadorzitos, negociando.
123. Finalmente decidimos tomar a decisão estratégica de
avançar pelo caminho pacífico, mas quando me refiro a este tema
aviso sempre que este nosso movimento é pacífico mas não
está desarmado porque conta com as Forças Armadas.
124. O desafio foi então o que fazer para convocar uma Assembleia
Constituinte por via legal. Agarrámo-nos ao artigo 4 da velha
Constituição que dizia: A Soberania reside no povo que a
exerce por meio do sufrágio (o referendo é uma forma de
sufrágio), pelos órgãos do poder público,
etc. Demos valor jurídico e interpretativo a esse artigo que
permite ao presidente convocar um referendo para que a soberania que reside no
povo se exprima para um órgão do poder público.
125. Conseguimos ganhar este referendo com a bandeira da Constituinte e embora
a oposição atacasse muito dizendo: Com a Constituinte
não se come, não se fazem estradas, não se fazem
casas, o tema vingou a nível nacional. A esta etapa
chamámos
etapa da convocatória para a Assembleia Constituinte.
126. A seguir veio a
etapa das eleições para a Constituinte
e nelas participaram não só candidatos dos partidos, mas
também jornalistas, indígenas, cantores, postulados perante o
país, alguns por circunscrição nacional e outros por
circunscrições regionais. Houve muitíssimas
postulações para eleger 130 constituintes.
127. Uma vez eleitos os membros da Assembleia Constituinte, passámos
à
etapa assembleísta
: a assembleia que delibera e elabora o novo projecto de
Constituição.
Disseram-me que houve toda uma ideia de fazer participar o povo no
processo de discussão da nova Constituição, que houve
gente que até esteve a planificar como facilitar do ponto de vista
técnico essa participação e, de repente, isso foi cortado
e a elaboração da Constituição tornou-se um
processo muito fechado, não seguido pelo povo nem consultado com ele.
128. Creio que o processo de discussão da
Constituição foi um processo bastante aberto, creio que houve
bastante participação. O que acontece é que se tinha de
estabelecer um limite de tempo a esse processo. Um debate muito longo entraria
em contradição com a rapidez que necessariamente devia ter o
processo político. A Assembleia Constituinte foi eleita a 25 de Julho de
1999, iniciou os trabalhos em Agosto e em Dezembro concluiu-se o debate do
projecto de Constituição, logo votado em referendo. Certamente
há sectores que queriam um processo mais longo, mais profundo. Contudo,
apesar disso, creio que não há precedentes na história
recente do país de um processo tão aberto e de tão amplo
debate. Como se fez, por exemplo, com a Constituição de 1961? O
povo elegeu um Congresso e esse Congresso arrogou-se de faculdades
constituintes quando não as tinha de origem; foi eleito para fazer leis
e, porém, ocupou-se a fazer uma Constituição que foi
aprovada por esse mesmo Congresso. Essa é que foi uma
Constituição feita de forma fechada.
Não houve referendo?
129. Aqui, em toda a história venezuelana, nunca tinha havido um
referendo. O primeiro foi o que convocámos a 2 de Fevereiro de 1999 para
perguntar ao povo se estava de acordo em eleger uma Assembleia Constituinte.
130. Uma vez instalada a Assembleia Constituinte, esta fez o seu próprio
regulamento e criou uma comissão de participação
algo assim lhe chamaram cuja tarefa era motivar a
participação, receber propostas diversas e discuti-las para as
levar ao projecto constitucional.
131. Abriram-se linhas de telefones gratuitas para que a gente pudesse dar a
sua opinião; os constituintes criaram assembleias regionais para receber
ideias, ao menos os nossos, que eram a maioria. Creio que eles iam à
região por que foram eleitos um ou dois dias por semana para criar
assembleias, conversar, buscar ideias, buscar projectos.
132. Agora, claro, há quem imaginasse um processo constituinte mais
radical, mais participativo e pensaram como dizes em mecanismos
técnicos para o conseguir. Isso é possível. Uns diziam que
o processo de discussão deveria durar dois anos, imagina!; que cada
capítulo deveria ser submetido a um referendo para não se aprovar
em bloco o projecto. Isto poderia acabar em nada, como aconteceu noutros
países.
133. Às vezes tem de se sacrificar algumas coisas importantes pela
urgência, e nesses momentos era urgentemente necessário
transformar o mapa político para poder continuar impulsionando o
projecto revolucionário. Não te esqueças de que quando fui
eleito presidente da República, o Tribunal Supremo continuava a ser o
mesmo, dominado pelos partidos da Acção Democrática e
COPEI aí iríamos encontrar um forte obstáculo;
tínhamos só três governadores afectos ao projecto, a
maioria era da Acção Democrática e COPEI; e o Congresso
Nacional estava nas mãos deles, éramos minoria. Agora, Marta,
quando se tropeça com a realidade muitas vezes temos de associar a ideia
à realidade, neste caso refiro-me à velocidade do processo
político.
134. A seguir passámos à
fase de aprovação da Constituição
. Mais de 70% dos votantes disse sim à nova Constituição.
135. E finalmente vem a fase mais longa e mais complexa:
a fase executiva
usamos o termo de Toni Negri.
136. Nesta nova fase, o primeiro passo era eleger as novas autoridades para
transformar
como te dizia o mapa político do país e conseguimo-lo com
os resultados dos processos eleitorais que convocámos para relegitimar
todos os poderes: presidentes, governadores, alcaides, deputados.
137. Durante o processo de conformação das candidaturas a
deputados, governadores e alcaides surgiram problemas pela disputa de cargos
dentro da coligação política eleitoral que se havia
criado: o Pólo Patriótico, que reunia o Movimento V
República (MVR); o Partido Pátria Para Todos (PPT), o Partido
Comunista (PCV), sectores do Movimento para o Socialismo (MAS), o Movimento
Eleitoral do Povo (MEP).
Disseram-me que o Movimento V República foi muito sectário
e quis impor os seus candidatos em todos os espaços; também ouvi
dizer que atacaste muito duramente o PPT em público nessa altura,
não foi?
138. Há um pouco de tudo isso, embora não em termos
absolutos. Não se pode negar que houve sectarismo nalgumas
instâncias do Movimento V República, infelizmente esses
vícios estão sempre presentes. Mas de uma de maneira geral,
poderás ver que na correlação de forças que
tínhamos na altura poucos partidos abriram tantos espaços a
candidatos de outros partidos como nós fizemos.
E como se explica a ruptura com o PPT?
139. A situação com o PPT deu-se porque nem eles nem nós
fomos
capazes de antepor o projecto estratégico às nossas
diferenças secundárias e aos conflitos regionais que se foram
dando. Lembro-me até de que no primeiro dia da campanha fizemos uma
marcha enorme do centro de Caracas a Petares. Lá estava o nosso
candidato à Câmara de Petares, José Vicente Rangel
Ávalo, o actual presidente, mas como o PPT tinha outro candidato
porque não pudemos chegar a acordo sobre os candidatos, eles
montaram lá em cima, num nível alto, como um parque, um
equipamento de som que lançava palavras de ordem no meio da nossa
sessão. Quando o nosso candidato estava a falar começaram a dizer
coisas, e eu não pude conter-me, tirei o microfone a Pepe Rangel, a
sessão estava a ser transmitida em directo pela televisão e tudo,
mas eu sou assim e disse: Deixam-nos fazer a sessão ou vieram
sabotar-nos os amigos do PPT? E Pablo Medina
[4]
estava lá e eu
disse-lhe: Pablo, por favor, é uma sessão a nível
nacional, deixem falar Rangel. Fiz uma chamada à ordem.
Calaram-se, mas depois voltaram a intervir. Foi uma atitude divisionista,
eleiçoeira, pretender aproveitar a nossa sessão para
lançarem as suas palavras de ordem.
140. Esse foi o primeiro choque. Ali começaram as coisas a correr mal e
a seguir agravaram-se com as candidaturas a governadores.
Disseram-me que havia um compromisso entre vocês e o PPT no
sentido de eles apoiarem a tua candidatura a presidente mas apresentando os
seus próprios candidatos para alguns governos estaduais e
municípios, e que o compromisso era que nesses lugares não
aparecerias publicamente a apoiar o candidato da V República. Dizem que
não cumpriste este compromisso.
141. Marta, nunca me comprometi a tal coisa. Digo-te que tenho a
consciência tranquila a esse respeito, porque fiz tudo o que pude para
chegar a acordos nalgumas regiões.
142. Mais adiante, o PPT novamente sabotou uma sessão nossa em
Guárico. Estava a falar o candidato a governador e ali estava a gente
deles aos gritos; houve até pancada entre o público, fizeram uma
desordem, muita gente foi-se embora da sessão. Então no discurso
dei-lhes muito duro. Depois desse meu discurso reuniu-se a
direcção nacional de PPT e decidiu a ruptura, deixaram de apoiar
a minha candidatura à presidência.
143. Foram estes discursos duros em resposta às suas atitudes de
indisciplina e sabotagem das nossos sessões, que foram explorados como
falta de respeito minha para com eles. Creio que aí influiu muito Pablo,
ele foi sempre muito reticente a esta aliança. Pablo foi o último
deles a decidir-se a apoiar a minha candidatura presidencial da primeira vez e
depois manteve-se em baixíssimo perfil, não fez campanha.
144. Para mim foi sempre muito clara a importância da Assembleia
Nacional como espaço estratégico a conquistar. No primeiro
discurso que fiz quando começou a campanha eleitoral disse que trocava
todos os governos estaduais e municípios pela Assembleia Nacional. Era
fundamental ganhar a maioria dos lugares, porque essa maioria iria determinar a
composição dos outros instrumentos de poder: A Fiscalía
Geral da República, o Tribunal Supremo de Justiça, o Poder
Eleitoral, o Poder Moral. E era fundamental ter bons deputados para elaborar as
leis revolucionárias, mas devido a erros tácticos enfraqueceu-se
a estratégia e ainda estamos a sofrer as consequências desses
erros.
145. O PPT, um partido com muito mais solidez, retirou-se da aliança,
foi sozinho às eleições e não elegeu nenhum dos
seus candidatos. Esse espaço deixado pelo PPT ocupou-o o MAS.
Infelizmente, não poucas das pessoas que entraram para a Assembleia
Nacional Constituinte resultaram ser pessoas de pouca consistência
ideológica e política. Ali tens Puchi e Mujica
[5]
que são
verdadeiros negociantes da política. Estamos agora com uma Assembleia
Nacional com grandes debilidades e esta situação está a
pesar muito. Nela deveria estar María Cristina Iglesias
[6]
, Wladimir Villegas
[7]
, Aristóbulo Istúriz
[8]
, José Albornoz
[9]
.
Haverá uns 20 quadros muito bons do PPT que deveriam ser deputados.
146. Não foi possível resolver então as divergências
políticas e chegámos à Assembleia com uma maioria, mas
não determinante. E para poder conseguir os dois terços da
Assembleia requeridos para designar o Tribunal Supremo e os demais poderes foi
necessário fazer acordos momentâneos, de um dia, com
Acção Democrática, COPEI e Projecto Venezuela. Eles
impuseram candidaturas de pessoas não idóneas no Poder Judicial e
noutros cargos. Por isso é que vês hoje no Tribunal Supremo de
Justiça um grupo de senhores que não estão dispostos a
exercer o seu cargo de forma honrosa e se deixam manipular politicamente porque
mantiveram relações históricas com a Acção
Democrática, com COPEI ou com outros sectores contrários à
revolução.
147. Pablo Medina nunca aceitou a minha liderança, acabou por se separar
do PPT e no dia do golpe (11 de Abril de 2002) apareceu em Miraflores. No dia
anterior vi-o na televisão a arengar àquela gente exacerbada
contra Chávez e contra a revolução bolivariana, ao lado de
Carlos Ortega
[10]
. Perdeu completamente os horizontes. Felizmente há um
grupo de lutadores como María Cristina, Aristóbulo e muitos
outros mais, que mantêm erguida a bandeira original da Causa R, o partido
que fundou Alfredo Maneiro.
Disseste que um dos defeitos de Pablo Medina é que não
aceitava a tua liderança, e a ti não te custa muito aceitar
outras lideranças?
148. De facto não me custa nada.
Alguma vez na tua vida tiveste de reconhecer outra liderança que
não fosse a tua?
149. Sim, estando preso, quando se preparava a segunda rebelião
militar e surgiu um grupo diferente de chefes militares. Lembro-me que da
prisão mandávamos cartas e documentos preparando uma segunda
rebelião, que estava prevista para Junho ou Julho, com gente do
exército sobretudo. Então chegou-nos à prisão, por
via de um dos oficiais do exército que estava fora, a
informação de que havia gente da Marinha e da Força
Aérea preparando também outro movimento. Perante esta
notícia decidimos parar o nosso e eu fui dos que me dediquei a escrever,
a mandar nomes, reconhecendo um comando que estava lá fora. Eu era dos
que dizia: Nós estamos presos, com grandes
limitações, ali há uma chefia: o almirante Grüber, o
general Visconti, o almirante Cabrera Aguirre, o coronel Virginio Castro. Eles
formaram um comando militar e político. Nesse momento, por exemplo,
recomendei que incorporassem Pablo Medina nesse comando político e assim
se fez. Na altura as circunstâncias indicavam-me que não era eu o
líder. Creio que foi o único momento em que se deu essa
situação, porque não se voltou a apresentar uma
situação parecida.
150. Eu não sou o líder porque Hugo Chávez decidiu ser o
líder. Eu saí da prisão para a rua para ver o que se
passava, saí para percorrer o país e tentar organizar o povo.
Realizando estas tarefas surgiu uma liderança natural que não
posso delegar noutra pessoa por capricho, por pressões ou por acordos.
Eu acredito nas lideranças naturais, não nas impostas. E se noto
que enfraquece a minha liderança a ponto de pôr em perigo um
processo e surge outro líder, não terei nenhum problema em
apoiá-lo, nenhum.
151. Marta, tenho sempre presente o que Bolívar disse uma vez: Sou
apenas uma débil palha arrastada pelo furacão
revolucionário. Os homens individuais, sentimo-nos perante uma
avalancha. Seria muito triste e lamentável que um processo de
transformações, que um processo revolucionário dependesse
de um caudilho. É tão vulnerável um ser humano! Há
muitas razões: ou o compram, ou se vende, ou se corrompe, ou adoece, ou
o adoecem... Vejam o que aconteceu com a guerra federal dos 5 anos:
praticamente dependia de um guerreiro que se chamou Ezequiel Zamora, bastou uma
bala, uma única bala naquele dia 10 de Janeiro de 1860, em San Carlos,
para o matarem e com a morte de Zamora morreu a esperança de um povo:
aquilo anarquizou-se e a revolução regrediu e fracassou, e os
oligarcas e as classes dominantes continuaram a exercer o poder e a hegemonizar
todos os espaços de poder.
152. Uns apontam-me como o culpado de todos os males da sociedade, outros como
o benfeitor, o responsável de tudo o que é bom, não sou
uma coisa nem outra. Sou apenas um indivíduo colocado numa
circunstância, mas o mais belo é que o trânsito da vida de
um indivíduo contribua de alguma maneira para o despertar, para o
crescimento da força colectiva. Isso é que é importante!
153. A seguir à saída de Pablo do PPT reconstruímos a
aliança. Agora tenho vários quadros deste partido no governo:
Aristóbulo Istúriz; María Cristina Iglesias; Alí
Rodríguez à cabeça do PDVSA
[11]
; Julio Montes como
embaixador em Havana. E muitos outros quadros que estão a trabalhar na
rua. E sinto que todas as divergências tácticas do passado
estão a apagar-se paulatinamente.
154. Nesta fase de execução da Constituição te
repito, é sem dúvida a mais complexa. Trata-se de legislar e
fazer o esforço para que este projecto constitucional a
Revolução feita Constituição não se
fique pela teoria ou não fique na gaveta, não se fique no
projecto, no sonho, na utopia, temos de enganchá-lo com a realidade.
155. O Governo habilitado pela Assembleia Nacional, como sabes, fez 49 leis,
entre as quais a Lei das Terras, a Lei dos Bancos, a Lei das
Microfinanças, a Lei da Pesca, a Lei de Hidrocarbonatos, leis que
atingem os interesses da oligarquia e das classes dominantes historicamente
falando. Quando estas classes viram que estávamos mesmo decididos a
aprofundar este processo e apontávamos para a
transformação da estrutura económico-social, então
começaram a trabalhar para o golpe que eclodiu a 11 de Abril.
156. Quero esclarecer que sempre dissemos que esta fase executiva não
deveria caracterizar-se porque seria suicida pelo congelamento do
poder constituinte. Sempre considerámos que esse poder constituinte
não deveria congelar-se, mas deveria continuar activo juntamente com o
poder constituído e os representantes do povo nos diversos poderes; que
não deveríamos cometer o erro de os membros do poder
constituído expropriarem o povo do seu poder originário.
157. Os dias 12 e 13 de Abril demonstraram que o poder constituinte continua
vivo; se esse poder constituinte se tivesse congelado, se tivesse ficado
adormecido ou sido vítima da chantagem mediática e da
ameaça repressiva, a intentona golpista teria obtido êxito e o
poder constituído, expressão desse poder constituinte, não
poderia ter-se instalado de novo. Este poder constituinte não permitiu
que o expropriassem dos seus direitos e exigiu-os à sua maneira, mas
exigiu-os com muita firmeza e apoiado por sectores militares.
Na tua ideia de que não se podia realizar uma verdadeira
transformação social sem alterar as regras do jogo, ou seja, sem
alterar a Constituição, influiu de algum modo a experiência
chilena e os problemas que teve de enfrentar Allende ao pretender realizar
mudanças sociais profundas dentro dos limites do sistema
democrático representativo burguês?
158. Olha, posso dizer-te que a experiência da Unidade Popular
não influiu muito na minha forma de ver as coisas, mas influiu Carlos
Matus, um economista chileno que foi ministro de Allende. Num dos seus livros
indica que uma força política para ser transformadora tem de ser
capaz de exercer a liderança, tem de ser capaz de identificar a frente
mais débil do adversário e este é uma
formulação aplicável à ciência militar
e de atacá-lo por aí. A sociedade tem três tipos de
estruturas: a estrutura político jurídica: o recipiente
(taça, copo, de vidro, de madeira, redondo, quadrado), a estrutura
económico-social (o conteúdo) e a estrutura ideológica (o
contexto). Ele defende que quem pretender transformar a realidade então
tem de ser capaz através da ciência e do cálculo
de determinar qual destas três estruturas é a mais
débil e por aí se deve atacar. Se te enganares e atacas por onde
a força adversária é maior, então
destróis-te, e podes aniquilar a força transformadora ou
desgastá-la até que deixe de ser transformadora. Nós
usamos esta metodologia para analisar a realidade venezuelana e foi assim que
decidimos começar o ataque pela estrutura
político-jurídica, porque era a mais fraca de todas, e não
nos enganámos. Inclusivamente pensava que o adversário ia ter
maior capacidade de resistência no ano de 1999, mas esse foi um ataque
fulminante. Atingimo-los até ao coração, não
tiveram tempo de recuperar, e aqui estamos hoje.
159. Agora as coisas não são nada fáceis. Estamos a
travar uma batalha duríssima porque se constrói o novo sobre o
velho, e aí então arrastam-se vícios.
160. O que mudámos até agora foi a macro-estrutura
jurídico-política; contudo, pela própria natureza do
processo pacífico e amplamente democrático, esta ainda permanece
viciada, infiltrada pelos adversários, e às vezes por
infiltração nas nossas próprias fileiras ou por perda de
consciência entre os nossos.
161. Por isso é que não temos podido eliminar o flagelo da
corrupção.
162. Alguém que não tenha as ideias claras poderia sentir-se
defraudado porque o resultado não é o que nós
queríamos, mas quem disse que um processo desta envergadura ou com tal
amplidão de metas e de objectivos consegue criar em três anos a
nova situação política-jurídica sonhada? Mas do que
tenho a certeza é de que para lá caminhamos. Quantos anos faltam?
Se se tratasse de dar uma data, diria que só conseguiremos acabar este
processo lá para 2021. Talvez pudesse ser antes.
Soube que nalguns lugares têm nomeado pessoas com péssimos
antecedentes, que caíram na corrupção. Quem as nomeou?
163. O anterior Ministro do Interior e da Justiça, Luis
Miquilena. Apesar de esta pessoa ter cumprido uma tarefa importante na fase
constituinte, perdeu a seguir a visão do projecto. Amizades, interesses,
quiçá pressões, talvez até a idade, não sei
que factores influíram naquele ser humano até acabar uma noite
por dizer que eu tinha de dar um passo atrás eliminando as Leis
Habilitantes uma das exigências da oposição.
Respondi-lhe: Sabes que não vou fazê-lo, porque são
essas leis que nos vão permitir entrar numa nova etapa na
aplicação da Constituição: [a Lei da Terra, a
Lei da Pesca, a Lei do Espaço Aquático, Hidrocarbonatos, etc.].
Reagiu dizendo-me que não podíamos fazer uma
revolução, que as revoluções se fazem pelas armas
ou não se fazem; que o mais que podíamos fazer aqui na Venezuela
era mudar umas coisas, fazer umas reformas, mas que havíamos
tropeçado com a força do adversário e que então
tinha de se manobrar. Imagina que quem mo dizia era o meu próprio
ministro do Interior! Isto foi pouco antes da greve de 10 de Dezembro de 2001.
A propósito de Miquilena, há quem diga que esta personagem
influiu muito na composição da actual Assembleia Nacional; que
foi o artífice da aliança com o MAS...
164. É verdade. Também teve influência, como te
disse, na composição do Tribunal Supremo de Justiça e na
Fiscalía.
Porque te apoiaste em Miquilena e não em gente mais de esquerda?
165. Para entender a minha relação com Miquilena tem de se
examinar todo o processo. Nestes momentos poderíamos dizer muitas coisas
negativas dele, mas embora houvesse críticas sobre a
manipulação do Partido e outros assuntos, há um ano quase
nenhum de nós podia imaginar o que lhe ia acontecer. Era difícil
pensar que uma pessoa com uma trajectória tão longa de luta ao
lado da esquerda fosse acabar como acabou. Até um romance chamado
A Morte de Honorio
escreveu Miguel Otero Silva, referindo-se um pouco à sua vida.
166. Miquilena começou por ser um líder sindical, pelos anos 40.
Creio que esteve no Partido Comunista e a seguir fundou um movimento a que
chamaram os Comunistas Negros. Este grupo apoiou o governo de
Isaías Medina
[12]
no dia em que os adecos fizeram um golpe de Estado, a 18
de Outubro de 1945. Esteve preso 7 anos sob a ditadura do general Pérez
Jiménez, em Ciudad Bolívar; muitos dos velhos dirigentes da
esquerda conheceram-no na prisão. Após a queda de Pérez
Jiménez, saiu da prisão ficando muito próximo de Jovito
Villalba da URD
[13]
; então fundaram um partido não me lembro
de como se chamava que lançou José Vicente Rangel como
candidato presidencial. É um pouco o que sei da sua trajectória;
há quem o conheça muito mais.
167. Agora, como conheci Miquilena? Uma noite tocou-me o telemóvel
eu tinha um telemóvel escondido na prisão e diz-me:
É Miquilena. Conhecia o nome, mas sabia pouquíssimo
da personagem, tudo o que te contei soube-o depois. E conhecia o nome porque
alguém tinha arranjado um escritório de advogados em Caracas onde
nos reuníamos clandestinamente e às vezes até lá
dormíamos. Eu tinha a chave, abria e esperava pelos oficiais. Havia
lá um gabinete grande com uma placa que dizia: Luis Miquilena. O nome
ficou-me. Estou a falar-te de um ou dois anos antes do 4 de Fevereiro de 1992,
mas nunca conheci a personagem, nem sequer perguntei de quem era o
escritório, só o usávamos para reuniões.
168. Quando ele me telefona, associo: Luis Miquilena... Ah!
digo-lhe, o escritório, assim assado? Esse
escritório era de um irmão meu que já morreu que era
advogado, eu compartilhava-o com ele e emprestava-o a Pablo Medina. Foi
Pablo que me arranjou as chaves do escritório. Lembro-me que me disse:
Comandante, um grupo de velhos amigos estavam creio que a beber
uns copos em Maracay queremos manifestar-lhe a nossa solidariedade; vou
passar aqui à doutora tal..., e ali todos alegres, uma noite
qualquer; depois voltou a falar Luis e disse-me: Comandante, eu que
já vivi bastante quero que saiba: você está aí
metido, mas você investiu e está a investir e é um jovem
que vai triunfar, e depois disse-me que queria visitar-me e eu
incluí-o na lista dos meus visitantes. Na prisão só podia
visitar os prisioneiros quem estivesse indicado numa lista que o preso devia
elaborar. Visitou-me duas ou três vezes e conheceu lá gente, os
companheiros presos. O assunto dá-me um certo desgosto, porque tive
muito carinho por este homem.
169. Depois saí da prisão e no primeiro dia ali estava ele
à minha espera. A primeira coisa que fizemos foi gravar um programa de
televisão chamado José Vicente Hoje, com José
Vicente Rangel. Foi uma sexta-feira. Ele era amicíssimo de José
Vicente há muitos anos. Depois fomos a casa de Carlos Fermín
outro bom amigo que perdi pelo caminho, não sei o que
é feito dele; era o meu advogado. Vivia num pequeno apartamento,
aí pude ver o programa, falámos e brindámos. Dormi essa
noite no apartamento de Carlos Fermín e de sua esposa Yomaida, e
recordo-os com muito carinho.
170. No dia seguinte eu estava na rua, levou-me o furacão, fui pelos
caminhos. Miquilena emprestou-nos um velho Mercedes Benz que tinha e quase
não usava. Nós utilizávamo-lo para carregar algumas armas.
Una vez detiveram o bendito carro com umas espingardas e bom, houve um
escândalo na imprensa: O carro de Miquilena levou-o a Disip
[14]
. O rapaz
que conduzia o carro foi preso e chamaram Miquilena à polícia
porque era o dono.
171. Por outro lado, como eu não tinha para onde ir; vivia por aí
do timbo ao tambo
[15]
; ele disse-me: Hugo, no meu apartamento
há um quarto, se quiseres vais para lá. Foi assim que
estive vários meses vivendo num apartamento pequeno que ele tem na Plaza
Altamira, no edifício Universo 6. Lá passei vários 24 e 31
de Dezembro. Havia muito diálogo e ia lá muita gente...
172. Luis foi um dos promotores da frente Pro-Constituinte e começou a
procurar recursos, a arranjar dinheiro; não era muito. Estava fora da
política, até aderir a esse esforço. Tivemos depois um
distanciamento, a frente Pro-Constituinte não funcionou e então
afastei-me e parti com o meu pequeno grupo de rapazes.
173. Os outros com quem tinha contactos, quem eram? Não havia quase mais
nenhuma relação. Repara que eu não era querido por muitos
sectores de esquerda ou ao menos pelos seus dirigentes fundamentais. Já
te contei os problemas que se foram levantando com a Causa R
[16]
. Quando eles se
apresentavam a eleições nós estávamos a chamar
à abstenção activa. Recordo que a nossa palavra de ordem
era: Por agora por nenhum; Constituinte já! Andrés
Velásquez, Pablo Medina
[17]
, diziam que eu estava a interferir no
desenvolvimento político com exactidão da chamada à
abstenção, que não entendia de política e outra
série de coisas. A figura que eles promoviam era Arias Cárdenas.
Ele é que era inteligente, era o líder verdadeiro, Chávez
era um louco. Estou a falar de La Causa R, o movimento político que
podíamos definir como estando mais perto de nós, porque todos os
líderes históricos do MAS estavam com Caldera.
174. A esquerda mais leal aos seus princípios também estava em
choque comigo, incluindo o PCV. Recordo, por exemplo, que uma vez me convidou
um grupo de trabalhadores a uma reunião que havia no Parque Central para
preparar a manifestação do 1º de Maio uma
manifestação alternativa à da CTV
[18]
, com a CUTV
[19]
e todos
os movimentos de esquerda, o Partido Comunista e outros. Bem, cheguei à
reunião e sentei-me num lugar qualquer. Todos os dirigentes que estavam
na mesa principal me viram chegar mas não me cumprimentaram. Nunca me
esquecerei disto, porque é parte da explicação da pergunta
que me fazes. Imagina, tento apresentar-me na sociedade política de
esquerda, vigiado, perseguido, difamado, etc., e esta reacção dos
dirigentes.
De que ano estamos a falar?
175. De 1994, 1995. Como te dizia, chego à reunião,
sento-me, tentando ser humilde, havia lá bastante gente, a sala estava
cheia mas alguns aproximaram-se por trás para me cumprimentarem
e eu tentando ouvir o que diziam, e não perturbar. Então,
quando falavam os da mesa, alguém deu um grito na sala dizendo:
Vocês não vão cumprimentar o Comandante
Chávez, que está aqui, e ouviram-se aplausos. Só
então os dirigentes me deram as boas-vindas.
176. Por outro lado, soube que noutra assembleia desses pequenos grupos de
esquerda se chegou à conclusão de que Chávez representava
uma liderança messiânica que era contrária ou até
prejudicial ao movimento de massas.
177. O discurso oficial burguês penetrou na esquerda e abateu-a.
Não nego as minhas culpas, seguramente também as tenho, mas eu
era rejeitado, condenado por esses sectores. Isso explica que me movesse entre
alguns militares na reserva e alguns dirigentes que não eram de partidos
políticos como Luis Miquilena, Manuel Quijada, e outros mais, não
muitos.
178. E de resto era um dirigente sem recursos. Às vezes não
tínhamos nem para pagar a gasolina, andávamos do timbo ao tambo
em pequenos grupos, muitos eram presos. De vez em quando uma ou duas
vezes por ano José Vicente Rangel levava-me à TV; de vez
em quando Alfredo Peña
[20]
também me convidava para o seu programa.
Lembro-me de que uma vez convoquei uma conferência de imprensa porque
acabava de vir de Cuba e foram só dois jornalistas.
179. Perante esta realidade, os nossos dirigentes locais, em quase todos os
estados, nasceram em confronto não só com a direita mas
também com a esquerda. O nosso Movimento MBR-200 nasceu em choque com o
MAS, com La Causa R, com todos esses grupos. Deixa-me esclarecer que Miquilena
nunca foi dirigente do MBR-200, ele apoiava, fazia reuniões, participava
em grupos de discussão, esteve sempre pelo Processo Constituinte.
180. Depois vem a nossa decisão de participar nas eleições
presidenciais de 1998 e aí o Partido Comunista foi quem rompeu o muro,
digamos assim. Mal anunciámos a disposição de ir às
eleições disse: Apoiamos o Comandante Chávez na sua
pré-candidatura.
181. Então começámos a reunir-nos com diferentes grupos e
personalidades, e foi aí que começou Miquilena a operar
politicamente, porque ele é um bom operador político. Fazia as
reuniões com sectores da esquerda, porque eu às vezes não
tinha paciência para suportar as discussões intermináveis
com La Causa R, com sectores do MAS e outros partidos menores como o MEP.
182. Então começou a dialogar como meu porta-voz e a tentar
alianças, e foi assim que conseguimos formar o Pólo
Patriótico e Miquilena foi assumindo um papel de liderança, de
condução, com uma grande habilidade política: Infundia
muito respeito em todos estes sectores, tanto aliados políticos, como
potenciais aliados.
183. Lembro-me da primeira reunião que tive, por exemplo, com a
Fedecámaras, com Francisco Natera. Na altura era o presidente dessa
instituição. Quem preparou esta reunião
privadíssima na sua casa? Luis Miquilena. O mesmo sucedeu com as
reuniões com empresários, quase sempre estava metida a figura de
Luis Miquilena, fazendo
lobby
, fazendo os contactos. Desta maneira se foi tornando o interlocutor, pelo lado
político, pelo lado empresarial, e até com ministros de Caldera.
184. Faltando pouco para as eleições reunimo-nos em casa de
Miquilena com Maritza Izaguirre, que era a ministra das Finanças de
Caldera. Perante a evidência de que eu tinha muitas possibilidades de
ganhar as eleições, ela quis falar comigo, para me explicar
algumas coisas económicas.
185. Enfim, para não alongar mais as respostas, creio que há
bastantes elementos que puderam explicar as razões por que Luis
Miquilena se tornou um interlocutor, um director da campanha. E creio que
apesar de todos os erros que cometeu, das suas manipulações,
estilos, etc., cumpriu uma tarefa importante na formação da
unidade para as eleições, e em conceber os mecanismos para nossa
actuação eleitoral.
186. Depois, quando assumo a presidência, designo-o ministro do Interior
um ministério essencialmente político, não havia
ainda a figura do vice-presidente, precisamente porque reunia o perfil,
reunia experiência, manejo político. A seguir, três meses
mais tarde, peço-lhe que vá trabalhar na Constituinte, porque eu
estava demasiado atarefado com os problemas de governo, com todo o desastre que
tinha recebido para me preocupar com o assunto. E foi assim que ele se tornou
praticamente o director de orquestra de toda a campanha constituinte,
procurando recursos, elaborando as listagens. Aí teve bastante
influência. Creio que ele cumpriu um papel, embora com muitos erros,
erros que não são só dele, porque seria injusto
atribuir-lhe tudo o que é negativo.
Voltando ao tema dos vícios do passado, as pessoas queixam-se
porque a corrupção em vez de diminuir teria aumentado; que
não há serviço público em que não se cobre
uma gorjeta pelo serviço; que não há nenhum preso por
corrupção. Como se entende isto num movimento que ergueu com
tanta força a bandeira da luta contra a corrupção;
bandeira que de resto demonstrou ser na América Latina a que talvez
permita fazer avançar mais a esquerda? O Partido dos Trabalhadores do
Brasil, é um exemplo disso, outro é a Frente Ampla do Uruguai.
187. Reconheço que aí ainda temos muito que fazer,
não se fez grande coisa no combate contra a corrupção,
coisas substanciais, definidoras, mas daí a dizer que a
corrupção é pior do que antes, nisso tenho grandes
dúvidas, tinha de se fazer uma tabela comparativa o mais objectiva
possível.
188. Aqui a corrupção, como em boa parte de América
Latina, é um fenómeno cultural; um fenómeno duro,
difícil de combater; é uma coisa que está presente
não só nos mais altos níveis, também chega aos
níveis baixos. É como um cancro que se irradiou em todas as
direcções. Temos de ter isto em conta, à partida.
189. Claro, o discurso da oposição é permanente,
que não se fez nada contra a corrupção. Creio que se fez
muito, mas reconheço que há falhas estruturais que impedem o
medir a eficácia do governo na luta contra esse flagelo pela quantidade
de presos no cárcere. As instituições nascentes
estão ainda entre duas águas: entre o velho e o novo; ainda
não contam com leis adequadas à nova Constituição.
190. Dou-te um exemplo: ainda mal começado o governo mandei abrir um
inquérito a um general que tinha sido chefe do Exército. Os
delitos em que caíra eram tão claros que se conseguiu prender
este general quando ainda estava no activo. Então começou o
ataque nos meios de comunicação: opositores acusando-nos de fazer
um julgamento político, porque o general é genro do ex presidente
Caldera, mas na verdade havia claras evidências, por exemplo uns cavalos
que se perderam e foram aparecer na sua quinta. O homem passou uns dois meses
na prisão, e daí a pouco, da noite para o dia, um juiz tomou a
decisão de o ilibar de toda a culpa dizendo que não havia provas
suficientes.
191. Outro exemplo, numa ocasião, no princípio do governo, disse
à Polícia Política que tivesse debaixo de olho
vários casos de denúncia de corrupção e
começámos a fazer os expedientes, as investigações.
Uma noite liga-me o chefe da DISIP e diz-me: Capturámos um grupo
de pessoas do Hipódromo, designadas pelo nosso governo, praticamente com
as mãos na massa, chantageando, comprando alguém com uma soma de
dinheiro em contado. Tirámos fotos que o testemunham. Mas o que
aconteceu? Foi sol de pouca dura. Uns dias depois o tribunal correspondente
toma a decisão de os deixar em liberdade. E fá-lo argumentando
que a foto em que se vê a operação com o dinheiro
não era prova suficiente, porque os senhores em sua defesa diziam que o
dinheiro era obra do corpo policial para os implicar; e não havia
maneira de demonstrar de que esse dinheiro o tinham posto eles na mesa.
192. Como Poder Executivo iniciámos centenas de
investigações que enviámos aos órgãos
correspondentes, mas além disso eu pessoalmente destituí
funcionários, alguns até muito de minha confiança, devido
a denúncias onde há alguma evidência de
corrupção, mas estes casos passam logo aos processos
investigativos: uma comissão na Assembleia Nacional, ou o Poder
Judicial, ou a Contraloría [correspondente ao Tribunal de Contas (
N.T.)], e é aí que se estagnam as coisas.
193. Por outro lado, a luta contra a corrupção não tem a
ver só com a repressão do fenómeno, mas também com
a sua prevenção; tem de se fazer um trabalho pedagógico,
educativo.
194. Há acções do meu governo que demonstram
claramente a nossa vontade de lutar contra este flagelo. Não sei se
sabes que na Venezuela todas as corporações de
Investigação: a DISIP, a DIM
[21]
, a PTJ
[22]
, e alguns
ministérios manejavam gastos secretos.
195. Existia um regulamento velho, onde se incluía como gasto secreto,
por exemplo, a alimentação das tropas, ou seja, podias
manejá-lo à vontade, e eram e continuam a ser
milhares de milhões de bolívares; o mesmo quanto aos uniformes,
roupa interior, calçado, botas de combate e bóinas. Estes gastos
secretos eram uma das maiores fontes de corrupção, não
só para os militares, mas também para os civis. O que fizemos em
relação a isto? Reformou-se o regulamento respectivo baixando
quase 80% o gasto secreto e com ele a corrupção camuflada como
gasto secreto.
196. Essa é das acções mais contundentes que temos tomado.
Tanto baixámos esses gastos que agora temos algumas dificuldades. Por
exemplo, os corpos da Investigação não têm recursos
para adquirir equipamentos de Investigação: um microfone, uns
binóculos... Antes, para fazer esses gastos não se requeria
licença de ninguém; vinha o dinheiro e gastava-lo como querias.
Foi assim que quem manejou isto fez fortuna durante muito tempo, milhares de
milhões de dólares. Os grandes contratos de armamentos: tanques
de guerra, aviões, mísseis, bombas, era tudo gasto secreto...
Imagina!
197. Mas este gesto do governo na luta contra a corrupção passou
quase despercebido, ninguém o levou em conta e nós fomos
incapazes de o difundir.
198. A Fiscalía, que é a entidade central para a luta
contra a corrupção, e a Contraloría têm grandes
limitações. Nestas corporações há uma
série de funcionários que lá trabalham há muito
tempo e são portadores de velhos vícios; muitas vezes até
sabotam investigações, desviam-nas, fazem acordos com as pessoas
sujeitas a investigação, etc. Há mil maneiras de amparar a
corrupção ou de interferir nas investigações contra
a corrupção.
199. Na Fiscalía, por exemplo, há ainda fiscais amparados pelo
seu direito ao trabalho, que lá estão há muitos anos e sem
uma prova bem fundamentada não se pode tirá-los. Aconteceu
fiscais que tinham sido deslocados recorreram ao poder judicial, pois este
poder também está minado. Conseguiu-se tirar uns 400 mas os
juizes são milhares.
Agora, aproveitando estarmos no tema das dificuldades institucionais,
seguramente sabes que Lénine morreu preocupado por não ter podido
mudar o aparelho czarista, ao fim de seis anos de revolução.
Imaginavas que ia ser tão complicado transformar o aparelho de estado
herdado? Porque nos meus estudos sobre os governos locais, as pessoas que
assumem tarefas de governo descobrem que governar é muito mais
complicado do que imaginavam e por isso costuma ocorrer um distanciamento entre
o militante que fica de fora, que não sabe o que é governar, e o
militante que governa e aprende que as coisas são muito mais
difíceis.
200. Certamente manejar um Estado com o grau de complexidade,
clientelismo, crescimento e inoperância como a que temos tido e
continuamos a ter, é coisa bastante complexa. Muito mais do que se
imaginava. Há uma enorme quantidade de organizações, de
organismos que desconhecíamos. Lembro-me que pendurávamos na
parede um mapa do Estado para detectar as diferentes instituições
e quem as controlava e ainda continuam a aparecer instituições...
E se a isto acrescentarmos os procedimentos, os vícios dos
funcionários públicos... Imagina que ainda não mudou uma
velha lei que protege esse funcionalismo clientelar que foi incorporado pela AD
e COPEI! E um ministro, ou qualquer funcionário está
impossibilitado de tirá-lo do lugar, salvo que viole a lei, e não
pode violá-la. Houve casos em que ministros transferiram gente e logo se
viram obrigados a repô-los no anterior lugar.
201. Nos primeiros dias de governo encontraram-se situações
inimagináveis. O primeiro problema que enfrento é que não
havia dinheiro nem para pagar os salários. O petróleo estava
pelos 7 dólares e o orçamento que nos deixaram além
de reconduzido fora feito na base 14. O risco país
devido à ameaça de Chávez chegou aos céus.
Ninguém queria emprestar-nos um centavo. Em plena Constituinte tive de
andar pelo mundo fora em busca de apoio internacional. Fui à China,
à Arábia Saudita, a vários países da América
Latina. Aproximei-me muito de Fernando Henrique Cardoso e do Brasil como
nação. As complicações burocráticas para
fazer pequenas mudanças eram numerosas, e porquê?, porque nos
deparámos com uma série de leis, códigos e regulamentos
que dificultavam a adopção de medidas necessárias. Para
fazer uma transferência de recursos para um ministério, por
exemplo, o ministro tinha de vir não sei com quantas papeletas para eu
as assinar. Para dar reformas a funcionários tinha de se efectuar uma
série de procedimentos burocráticos. Também tivemos de
enfrentar a cultura tradicional, a resistência à mudança.
202. Muitas vezes acontece designarmos um funcionário nosso bom, com boa
capacidade para um lugar a fim de transformar uma instituição, e
a instituição acaba por engoli-lo, e absorvê-lo. Um exemplo
é a Pdvsa, essa empresa monstruosa. Ali ainda não fizemos grandes
mudanças.
203. Realizámos uma transformação grande no nível
macro-estrutural com a nova Constituição. No Poder Executivo, por
exemplo, fizemos algumas mudanças ao máximo nível,
reduzimos os ministérios, fundimos ministérios. Cometemos erros
neste campo, por exemplo, quando fundimos o Ministério da Agricultura
com o da Produção, Comércio e Turismo, tudo isto num
superministério; agora, 3 anos depois, vimo-nos obrigados a separar de
novo Agricultura e Terras. Eliminámos não sei quantas
fundações: aqui havia uma infinidade de fundos, até um
fundo para o estudo da lagarta do milho do Estado Português, coisas
assim...
204. Agora na transformação dos ministérios por dentro,
não temos avançado o suficiente. Embatemo-nos com estruturas
anquilosadas, complexas, difíceis. Mas creio que vamos no bom caminho.
Precisamos é de uma grande dose de vontade e de grande capacidade para
transformar essas estruturas e criar um marco jurídico adequado. Pouco
vamos poder fazer enquanto não mudar a Lei do Funcionalismo
Público, essa lei velha de que já te falei, que protege
funcionários que não rendem ou não são
necessários.
Que ensinamentos tiras deste processo de luta institucional que possam
ser úteis para a esquerda, para a gente progressista? O que não
farias de novo e o que farias doutra maneira?
205. Creio que um movimento como o nosso já devia ter
seleccionados e preparados, quando ganhámos as eleições de
1998, uma boa parte dos novos funcionários que deviam ocupar os cargos
do Estado e não os tínhamos. Por isso houve muita
improvisação e em consequência dela cometemos muitos erros
como a nomeação de pessoas que não eram as mais adequadas.
Creio que um partido que tenha um projecto como o nosso e que tenha
também opções reais de chegar ao governo, ao mesmo tempo
que realiza a campanha eleitoral, a procura de recursos para o futuro governo e
outras tarefas, devia levar por diante um processo de preparação
dos quadros que deverão assumir tarefas de governo para que estes possam
ocupar eficientemente esses espaços. Tem de ser um processo meticuloso,
realizado com tempo, que inclua capacitação, cursos, etc. Deveria
conseguir o que faz um exército que forma e capacita os seus quadros e
lhes dá uma orientação estratégica e
específica para enfrentar o combate. Nós não o fizemos e
foi um grave erro, e mais ainda quando quem te entrega o governo não
é gente do teu partido...
E que além disso costumam sabotar o novo governo...
206. Olha, aqui perderam-se arquivos, queimaram-se coisas; quase nenhum
dos principais funcionários esperou para o render das tarefas e dar a
informação necessária a quem assumia o seu cargo. Nisto
faltou-nos previsão e planificação, e ainda temos grandes
deficiências na formação dos empregados públicos;
precisamos de uma boa escola para a formação do funcionalismo
público.
207. Creio que se deve distinguir entre a Constituição e
os instrumentos do Estado. Penso que as situações que se
estão a criar poderão obrigar-nos a fazer uma revisão
estratégica do funcionamento dos poderes do Estado.
208. Temos, por exemplo, o caso do poder eleitoral. Este poder está hoje
praticamente neutralizado; não foi capaz, em mais de seis meses, de dar
um veredicto final sobre o resultado das eleições da CTV e
há evidências de ilícitos eleitorais, de fraude eleitoral,
que foram apresentadas por Aristóbulo Istúriz candidato
à presidência da CTV e María Cristina Iglesias
sua chefe de campanha; houve denúncias no mesmo sentido de outros
sindicatos, mas esse corpo que são cinco pessoas
não se pôs de acordo para tomar uma decisão. É uma
prova de que uma parte tão importante do aparelho de Estado como
é o poder eleitoral entrou numa fase de neutralização.
209. Por outro lado, além das fraquezas da Assembleia Nacional
originadas como te contei na nossa incapacidade para manter a
aliança estratégica com partidos como o PPT, vários
deputados eleitos sob a cobertura do MVR agora estão contra o governo.
Deve-se ter em conta que num processo de mudanças profundas a gente
também muda: radicaliza-se o processo e damo-nos conta de deputados que
vão ficando para trás e já não representam as
posições políticas de quem os elegeu. Devia ter sido muito
mais exigente do que fui na campanha eleitoral à altura de opinar sobre
as candidaturas a deputados. Hoje alguns dos que chegaram à Assembleia
Nacional com o nosso apoio são inimigos do povo, da
revolução e traficantes de postos. E o mesmo sucede com os
governadores e os alcaides. Olha o que aconteceu com o alcaide-mor da
Região Metropolitana, Alfredo Peña, por exemplo, que foi eleito
com o meu apoio e hoje é um dos meus principais opositores; o povo de
Caracas sente-se traído. E isto acontece também noutras partes do
país. O povo votou nuns senhores que vieram para a rua sob o sabre de
Bolívar e com uma camiseta do Movimento V República, e depois,
daí a poucos meses, estes senhores mudaram de posição.
210. A isto ultimamente soma-se que a oposição, uma vez
debilitado o cenário violento, começou a fraguar uma
estratégia institucional para me tirar do governo. Estão a usar
diversos métodos para fazer a correlação de forças
na Assembleia Nacional mudar a seu favor: pressões de todo o tipo, umas
abertas e outras encobertas, oferta de dinheiro, etc. Com uma
correlação favorável poderão aspirar a demitir o
fiscal, peça chave na sua estratégia de golpe institucional,
porque o fiscal é o único que pode autorizar a levar por diante
um julgamento ao presidente. Mas o fiscal tem manifestado uma firmeza a toda a
prova apesar de terem feito contra ele manifestações,
ameaças à sua integridade física e à própria
vida, chamadas anónimas à família...
Como se resolve este tema dos representantes que deixaram de ser
representativos, isto é, pessoas que foram eleitas para um determinado
mandato popular e acabaram por trair esse mandato, porque mudaram de camisola?
211. Existe o recurso constitucional do referendo revogatório.
Há quem ande a falar do referendo revogatório para tirar
Chávez; isso está contemplado na Constituição, mas
antes do meu haverá muitos outros: o meu será o último,
porque será a partir de 19 de Agosto de 2003, mas a 14 de Fevereiro de
2003 poderão começar a fazer-se processos de referendo
revogatórios a deputados. Veremos o que fazem os deputados que chegaram
à Assembleia Nacional pelo braço de Chávez e agora andam
por aí a dizer que Chávez deve sair do governo. Prometeram
fidelidade até à morte e às primeiras dificuldades
saltaram a barricada
[23]
.
212. Temos consciência de que o referendo revogatório pode atingir
também algum dos nossos governadores estaduais e presidentes de
municípios. É um repto. Obriga os governantes a cumprir; porque a
meio do mandato destituir-te os mesmos que te elegeram.
E o que vai suceder com os julgamentos aos militares golpistas?
213. Como te explicava, a nova Constituição contém
elementos como esse de que para ser levado a juízo um general, um
almirante não estabelece excepções tem de
ser submetido primeiro a um antejuízo de mérito. O fiscal geral
da República já elaborou o antejuízo de mérito e
entregou um longo documento ao Tribunal Supremo de Justiça e este deve
pronunciar-se se há motivo para julgar esses senhores. Se não se
cumprir isto simplesmente estaríamos a violar a
Constituição. Há provas suficientes da responsabilidade
que um grupo de generais e almirantes teve no golpe, mas o veredicto do
Tribunal Supremo de Justiça tem vindo a ser adiado devido à
estratégia adversária, a estratégia dos juristas que
apoiam e defendem os golpistas e as suas redes e ligações. Confio
que se faça justiça, e não só no campo militar, mas
também no civil, isto é sob todos os pontos de vista o que a
maior parte dos venezuelanos espera. Esta é uma prova de fogo para as
instituições que tenham falhas estruturais.
214. Suponhamos porém que o Tribunal Supremo de Justiça acaba por
ser sequestrado definitivamente por uma minoria que consegue uma maioria sob
pressão, ou que controla de fora o Tribunal de Justiça, e que
este se transforma numa entidade que, em vez de administrar a justiça a
desadministra, em vez de julgar os golpistas acaba a julgar o presidente da
República, como alguns propõem e já dão passos
nesse sentido. Neste caso, o país não só a
Constituição, mas o país real, a grande percentagem de
venezuelanos que me apoia tem de ajudar a procurar uma saída que
queremos pacífica, que queremos democrática, dentro do
âmbito da Constituição. Poderia ser um referendo, a
própria Constituição coloca a possibilidade de uma emenda
constitucional que teria de ir a referendo
[24]
e já começámos a considerá-lo como uma
medida que nos permita sair deste impasse para reformar alguns artigos da
Constituição, apoiados na maioria que conservamos na Assembleia
Nacional e que estamos a tentar fortalecer. E há outro recurso extremo
que é convocar o poder constituinte de novo, mas como isso se fez
há apenas três anos, teria de se esgotar primeiro as
instâncias prévias de emendas, de reformas.
215. A Constituição poderá ter muitos defeitos mas uma das
coisas boas que tem, e que são bastantes, é que estabelece o
mecanismo para que o povo não seja expropriado do poder constituinte. No
caso de uma crise institucional política sem saída, resta sempre
o recurso de que o povo recolhendo firmas até uma percentagem
determinada, ou a Assembleia Nacional, ou o presidente, podem accionar um
referendo para reformar, emendar, reestruturar ou até elaborar um novo
texto constitucional. Para o realizar, obviamente teriam de se esgotar as
instâncias prévias.
216. Agora, apesar de todas as dificuldades que estamos a viver,
sinto-me satisfeito e creio que a reacção da direita contra
nós revela que sentem que o processo, por muito limitado que seja,
está a atentar seriamente contra os interesses estabelecidos aqui
durante muitos anos, senão não teria chegado aonde chegou. Isto
quer dizer que para além de quantas falhas, quantos obstáculos,
quantas micro-estruturas ou médias estruturas fiquem intactas e outras
apenas afrouxadas, a direcção estratégica do processo vai
bem orientada. Creio que tem força para continuar a avançar, para
continuar a demolir por um lado e construir por outro. Creio que os
líderes devemos ser capazes de reconhecer esta força e não
pensar que estamos debilitados e que por isso se tem de começar a dar
passos atrás e entregar bandeiras. A força existe: ficou
demonstrado a 11 e ainda podemos incrementá-la muitíssimo mais,
não só em quantidade, mas em qualidade. Há um mundo de
coisas por melhorar, por organizar; tem de se aumentar o nível de
consciência, de organização, para que essa força
não se perca, e para que aumente a sua capacidade transformadora.
217. Simón Rodríguez dizia, num dos seus escritos: A
força material está nas massas, a força moral no
movimento. E eu atrevi-me a acrescentar: A força
transformadora nas massas em movimento acelerado e consciente.
(1) Filósofo italiano.
(2) Residência presidencial em Caracas.
(3) Aliança adeco-copeiana para a alternância no governo.
(4) Fundador e secretário-geral da Causa-R; quando este partido se
divide, Pablo e parte importante dos militantes e dos quadros fundam um novo
partido: Patria Para Todos (PPT) que inicialmente apoia Chávez, mas logo
rompe com ele. Actualmente, marginalizado do PPT passou para a
oposição, estando comprometido no golpe militar de 11 de Abril de
2002. Por seu lado o PPT voltou a apoiar Chávez.
(5) Quadros do MAS, que hoje estão na oposição.
(6) Actual ministra do Trabalho.
(7) Dirigente do PPT.
(8) Actual ministro da Educação.
(9) Secretário-geral de Patria Para Todos (PPT).
(10) Secretário-geral da Central dos Trabalhadores da Venezuela (CTV).
(11) Petróleos de Venezuela Sociedade Anónima.
(12) Militar e político venezuelano. Presidente da República de
1941 a 1945. Foi apoiado por sectores da esquerda e durante o seu mandato
aplicaram-se medidas como: iniciar a reforma agrária, melhores contratos
com as companhias petrolíferas norte-americanas e restabeleceram-se as
liberdades públicas.
(13) União Republicana Democrática (URD), partido liberal
populista criado em 1945.
(14) Direcção Interior de Segurança do País.
(15) De cá para lá.
(16) A Causa R quis utilizar-nos e conseguiu-o até certo ponto, e
apresentou Arias Cárdenas (um dos comandantes da Rebelião de
Fevereiro de 1992) contribuindo para dividir o movimento dos chamados
Comandantes.
(17) Dirigente da Causa R nesse momento.
(18) Central dos Trabalhadores da Venezuela.
(19) Central Unitária dos Trabalhadores da Venezuela.
(20) Actual alcaide-mor da área metropolitana e acérrimo inimigo
de Chávez.
(21) Direcção de Investigação Militar.
(22) Policía Técnica militar.
(23) Mudaram de casaca.
(24) Para modificar a actual Constituição venezuelana primeiro
tem de se aprovar os artigos ou a emenda na Assembleia Nacional, e a seguir
submetê-los a referendum popular.
[*]
A primeira parte desta entrevista encontra-se em
Chávez e os militares na revolução bolivariana
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info