O importante manifesto hoje divulgado foi subscrito por cerca de uma centena de cidadãos representativos de múltiplos sectores da sociedade portuguesa. Segundo informaram a resistir.info , esta tomada de posição será difundida simultaneamente por medias do Brasil, Estados Unidos, França e países de língua espanhola.



MANIFESTO AO POVO PORTUGUÊS
SOBRE A CRISE MUNDIAL

A humanidade atravessa uma crise de civilização. A mais profunda desde a queda do Império romano do Ocidente. É uma crise global — política, económica, militar, cultural, ambiental.

Um sistema de poder que utiliza o enorme potencial tecnológico e financeiro dos EUA desenvolve uma estratégia planetária de contornos fascistizantes.

A chamada globalização neoliberal funciona como parte integrante e instrumento desse sistema de poder imperial. Pretende apresentar-se como fenómeno autónomo que se teria desenvolvido à margem das ideologias, gerado pela lógica do mercado, que ela sacraliza como força universal, imanente e incontrolável que se situaria acima da razão humana e dos Estados.

Essa inverdade esconde uma perigosa realidade. Como afirmou Thomas Friedman, ex-assessor de Madeleine Albright, ao fazer a apologia da globalização, esta só existe e avança porque é sustentada por «um punho invisível» que tem nome: «o Exército, a Marinha e a Força Aérea dos EUA».

Esse sistema imperial, cujo pólo se localiza em Washington, apoia-se numa rede de cúmplices interessados. Tem aliados. São eles o grande capital e os governos de duas dúzias de países, nomeadamente os da União Europeia (não obstante muitas contradições), do Japão, do Canadá, da Austrália e de Israel. Em conjunto esses países representam menos de 15% da população da Terra mas consomem ou controlam 85% da riqueza mundial produzida.

A imposição das políticas neoliberais pelo pólo do poder aos povos da periferia gerou a presente crise de civilização. As guerras de agressão, inseparáveis da obtenção e controle estratégico dos recursos naturais, são geradas pela própria lógica do sistema.

A linguagem que justifica a violência é perversa. As agressões são desencadeadas supostamente para preservar a democracia e a paz. Assim aconteceu com a primeira guerra do Golfo, com a intervenção na Bósnia, com o desmembramento da Jugoslávia, o bombardeamento e ocupação do Kosovo, a invasão da Somália, o aval ao genocídio do povo palestino, a agressão ao povo do Afeganistão.

A instalação de uma rede de bases militares dos EUA na vastidão da Ásia Central acompanhou do Cáucaso às fronteiras ocidentais da China a penetração de gigantescas transnacionais; os mísseis que destruíram as cidades afegãs e mataram ali populações indefesas «defendiam» os seus interesses.

A lógica da engrenagem faz da agressividade uma necessidade permanente. O sistema de poder não poderia subsistir sem uma violência endémica. O terrorismo de estado norte-americano passou a ser condição de sobrevivência. Neste uma componente fundamental é a neutralização e manipulação das consciências através do bombardeamento desinformativo que precede cada guerra de agressão.

Nestas semanas o alvo prioritário é o Iraque, satanizado, de repente, como ameaça para a humanidade. Bagdade, ao aceitar incondicionalmente o regresso dos inspectores da ONU, demonstrou que não possuía armas de destruição maciça. Mas os EUA logo apresentaram novas exigências. Querem a guerra, querem destruir o Iraque, querem controlar o seu petróleo.

Bush, porta voz da engrenagem, não esconde que as agressões vão prosseguir. No seu «Eixo do Mal» incluiu já o Irão e a Coreia do Norte. Mas o Pentágono não exclui a possibilidade de intervenções na Colômbia e em Cuba. A China sente-se ameaçada.

A escalada agressiva dos EUA lembra, num contexto histórico muito diferente, a do Reich nazi, iniciada com a anexação da Áustria, prosseguida com a reivindicação dos Sudetos, Munique e a destruição da Checoslováquia, e desembocando na invasão da Polónia e na II guerra mundial.

Os governos dos países ricos emergem como cúmplices dessa estratégia irracional. Os povos rejeitam-na. Essa resistência tem encontrado expressão e voz em jornadas como as de Seattle, Praga, Melbourne, Quebec, Barcelona, Génova e outras, e em Foros como o Social Mundial, duas vezes reunido em Porto Alegre.

Esses movimentos desempenharam um papel importantíssimo. Mobilizaram milhões de pessoas na contestação à globalização neoliberal, confirmando que os povos, como sujeito real da história, repudiam o monstruoso projecto de sociedade que pretendem impor-lhes, transformando-os em objecto de uma ditadura mundial do capital.

Esses grandiosos movimentos e Foros Sociais demonstraram a existência de uma vontade forte de resistir. Todos estamos de acordo com o lema «Outro mundo é possível». Mas qual? Quando se formula a pergunta principiam as dificuldades. Não é a mesma coisa «concertar um acordo para a acção contra o inimigo comum» (uma fórmula de Marx) e coincidir no que se deseja como resultado dessa acção. As coincidências rompem-se no momento em que cada um tenta explicar o que entende por «outro mundo é possível».

Duas grandes tendências, contraditórias, são identificáveis.

Uma delas parte da convicção de que uma reforma do capitalismo é viável. Os seus defensores reconhecem que se agrava a contradição entre a apropriação privada por uma ínfima minoria das riquezas produzidas e a socialização crescente da produção. Nunca a desigualdade entre os homens foi tão chocante como hoje. Mas acreditam que essa situação pode ser revertida dentro do próprio sistema, que este seria susceptível de reequilíbrio e humanização. Sustentam que tendo «o socialismo real» fracassado e sendo a revolução social, presentemente, uma impossibilidade absoluta, não restaria à esquerda hoje outra opção que não fosse a de lutar por reformas do «capitalismo real».

A outra tendência aponta para a confrontação com o sistema. Durante um debate recente, em Pádua, na Itália, Toni Negri e a canadiana Naomi Klein assumiram com clareza as duas posições. O italiano apontou um caminho que exclui a luta pela tomada do poder; a canadiana pronunciou-se por «acções directas e não simbólicas».

O pensador marxista espanhol Sanchez Vasquez, num depoimento publicado pelo diário mexicano «La Jornada», sintetizou essa dualidade afirmando que uma grande parte da esquerda renunciou ao socialismo como alternativa ao capitalismo, «situando-se nas mudanças possíveis dentro do sistema, mas perdendo a perspectiva de que a alternativa verdadeiramente emancipatória tem de vir de um sistema que destrua as bases fundamentais do capitalismo».

Esta dualidade de perspectivas antagónicas está no centro de um debate que, sobretudo na Europa, assume enorme significado .

Nos últimos anos partidos operários de grandes tradições renunciaram aos seus programas revolucionários, integrando-se progressivamente no sistema, aliando-se a partidos que no poder impõem políticas neoliberais.

Uns renunciaram ao marxismo, optando pela social democracia; outros declaram lutar pela renovação do marxismo.

O marxismo é, obviamente, uma ideologia dinâmica e não estática. Deve estar em permanente renovação, na teoria e na pratica. Mas a sua renovação criadora é incompatível com a integração dos partidos comunistas no sistema. O marxismo não pode renovar-se renunciando a valores, princípios e objectivos que fazem parte da sua essência revolucionária para adoptar gradualmente ideias, projectos e formas de actuação próprias do capitalismo.

Contrariamente ao que as forças a serviço do capital afirmam, a era das revoluções não findou. A capacidade demonstrada pelos movimentos sociais para mobilizarem milhões de pessoas, inclusive nos EUA, veio confirmar precisamente a disponibilidade dos povos, como sujeito da história, para lutarem contra o monstruoso projecto de sociedade a que o imperialismo insiste em submete-los como simples objecto de uma ditadura mundial do capital, no contexto de uma militarização progressiva da Terra.

A confusa, mas frenética teorização sobre a morte das ideologias que, a pretexto de satanizar a União Soviética, criminaliza globalmente todas as revoluções, tornou-se uma componente da ofensiva desenvolvida a nível mundial contra os partidos comunistas que se mantêm fieis aos seus princípios.

Já dizia Politzer que «o espirito critico, a independência intelectual não consistem em ceder à reacção, mas sim em não ceder».

A sobrevivência da Revolução Cubana ao mais prolongado e cruel bloqueio da história, a heróica luta do povo palestiniano, o combate das FARC colombianas colocam-nos perante os limites do poder imperial provando que, em determinadas circunstancias históricas, é possível resistir, se necessário mesmo pelas armas, à mais poderosa potência mundial.

Num belo e oportuno ensaio sobre o renascimento do comunismo, o filosofo francês Georges Gastaud recorda-nos que na gigantesca luta dos explorados contra os exploradores, o conteúdo de classe do universalismo contemporâneo coloca a humanidade perante objectivos que pelo seu significado revolucionário eram inimagináveis ha poucos anos. É assim, por exemplo, que «no combate à globalização imperial, travado na Europa, a meta, para os comunistas lúcidos, deve ser transferida da reforma da União Europeia para a ruptura com Maastricht, Nice e Amsterdão, para a ruptura com a moeda única gerida pelo Banco de Frankfort, e com o exército profissional tutelado pela Nato». Por outras palavras, para rupturas que desembocariam numa crise global à qual o capitalismo não poderia resistir. O resultado final seria a destruição do sistema de poder que configura já hoje uma ameaça à própria sobrevivência da humanidade.

O filósofo não generaliza. A ruptura, tal como a concebe, surgiria como desfecho de múltiplas acções diversificadas no espaço e no tempo.

Os defensores do movimentismo esquecem que todas as grandes revoluções, antes de iniciadas, se apresentavam como impossibilidade quase absoluta. E, contudo, aconteceram.

Esquecem também que sem organização revolucionária não pode haver revolução. É romântica a ilusão de que, por si só, a dinâmica dos movimentos sociais e dos grandes Foros que condenam os males da globalização capitalista nos aproximará do objectivo sintetizado no lema humanista «Outro mundo é possível».

A história não se repete. Mas como as causas que determinaram as grandes revoluções não desapareceram, a revolta organizada dos explorados contra o sistema de poder que nos ameaça com uma ditadura militar planetária fascistizante desponta como uma exigência da história. E nessa revolta cabe aos partidos revolucionários comunistas cumprir um papel insubstituível, no combate ao inimigo comum e na contribuição para a estratégia capaz de mobilizar, armar ideologicamente e organizar para a luta a massa imensa de proletários de novo tipo, hoje majoritária no planeta.

A renovação criadora do marxismo conduz ao fortalecimento do ideal comunista e nunca à capitulação do partido revolucionário. Aponta para a continuação da via aberta por Marx e Lenine, para o assumir da herança que vem dos sans culotte , da Comuna de Paris, e da grande Revolução de Outubro de 1917, satanizada pelos inimigos do progresso da humanidade.

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O futuro de Portugal é inseparável do rumo que a história seguir. O desfecho da crise de civilização que vivemos é, por ora, imprevisível. O destino do povo português será condicionado pelo resultado de grandes lutas que se avizinham e que envolvem o conjunto da humanidade. Deve, assim, assumir nesse grande choque de forças incompatíveis o papel que cabe a quem foi o sujeito da Revolução de Abril.

Não é fácil essa tarefa. País periférico e atrasado, Portugal está integrado na Europa dos 15, uma comunidade artificial de Estados economicamente desiguais, política e militarmente alinhados no fundamental, em situação de dependência, com a estratégia do sistema de poder imperial que hegemoniza o planeta.

Um Estado e um governo vassalos seguem a reboque de uma falsa comunidade cujas decisões tomadas à revelia dos povos, reflectem, não obstante múltiplas contradições, a vontade da potência imperial.

Medias alienantes e perversos — verdadeiros instrumentos de controle social — tudo fazem para desinformar o povo português. Apresentam-lhe as guerras imperiais de agressão a povos indefesos como actos éticos, imprescindíveis à defesa da paz, da liberdade e da democracia. A mentira assume tais proporções que o sistema de poder que promete erradicar da Terra o flagelo do terrorismo, militariza o planeta através de uma estratégia de terrorismo de Estado que hierarquiza os povos e os divide em bons e maus.

É urgente denunciar a revisão da história e desmontar a monstruosa inversão do real que embrutece e anestesia, entre outros, o povo português.

Nestas semanas em que o presidente Bush reafirma a sua decisão de transformar o Iraque em alvo da próxima guerra de agressão imperial, o protesto maciço e firme contra a utilização da Base das Lajes como plataforma para o ataque àquele povo árabe tornou-se imperativo de defesa da dignidade nacional, bem como a recusa, sob qualquer forma, da participação de elementos das nossas Forças Armadas numa segunda guerra do Golfo.

O assalto à razão assume facetas tão absurdas que a engrenagem de poder mais perigosa que a humanidade conhece desde o III Reich nazi se apresenta como mensageira do bem e patamar superior da democracia.

Mas a história não acabou. A maré da resistência dos povos está a subir, embora lentamente. A batalha é da humanidade. Nela o povo de Abril está presente.

Lisboa, 14 de Outubro de 2002

Os nomes dos assinantes do Manifesto encontram-se em http://resistir.info/manifesto/manifesto_assinaturas.html



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14/Out/02