China toma medidas enérgicas em relação às
três montanhas
Uma reunião de Dezembro de 2020 da Comissão Política do
Partido Comunista Chinês prometeu acabar com o que chamou de
"expansão desordenada do capital".
Os líderes chineses temiam que o sector capitalista na China se
houvesse tornado demasiado grande. Empresas como a Ant Group de Jack Ma
expandiram-se para o financiamento ao consumidor e procuravam levantar fundos
estrangeiros para isso. Com efeito, o Ant Group pretendia capturar o
crédito às famílias tomando-o dos bancos estatais. O Ant
ia fazer o que queria e dizia isso com muito alarde na imprensa. A Ant e outros
capitalistas chineses de empresas de tecnologia e dos media estavam cada vez
mais envolvidas em fusões do tipicamente "ocidentais",
contratos secretos e outras irregularidades financeiras.
Os reguladores da China fechavam os olhos para tudo isso desde há anos.
Além disso, pela primeira vez a facção financeira na
liderança da China havia conseguido um acordo para permitir que bancos
de investimento estrangeiros criassem na China empresas de propriedade
maioritária, com o objectivo final de "libertar" o sector
financeiro do controle estatal e permitir o cruzamento transfronteiriço
não regulamentado de fluxos de capital. Por outras palavras, a China
deveria tornar-se um membro pleno do capital financeiro internacional. As
autoridades também estavam a permitir a mineração
não controlada de criptomoedas e operações com as mesmas
no país.
Mas a pandemia do COVID mudou tudo isso. Houve uma crescente cólera
pública sobre como os ricos na China, tal como no resto das grandes
economias, ganharam enormemente com o boom financeiro e de preços de
propriedades durante a pandemia, enquanto a maioria enfrentava confinamentos e
custos crescentes em educação, saúde e
habitação, bem como um grave risco quanto a empregos decentes
para licenciados e outros. Educação, saúde e
habitação são as 'três montanhas' que todas as
famílias chinesas almejam escalar para ter uma vida melhor e
ainda assim os custos para elas aumentavam enquanto os ricos ganhavam
milhões.
Agora a liderança chinesa foi forçada a retroceder em zig-zag da
"expansão desordenada" e responder à
reacção pública através de medidas enérgicas
em relação aos gigantes da tecnologia de consumo e dos media,
introduzindo restrições à educação privada e
ao desenvolvimento de propriedades especulativas.
Também proibiu operações com criptomoedas
.
Tome-se a educação. A vasta maioria dos pais chineses paga por
explicações privadas extracurriculares as estimativas da
pesquisa variam de 65% das famílias com filhos em idade escolar em 2016,
até 92% este ano
. Uma pesquisa de 2019 da empresa de recrutamento 51job Inc mostrou que quase
40% dos pais gastam de 20 a 30% do seu rendimento na educação dos
filhos. As aulas particulares têm custos espantosos que contribuem para
uma indústria de mais de US$150 mil milhões (£108 mil
milhões). A qualidade e os recursos de educação variam
muito entre as áreas urbanas e rurais, de província para
província e entre as cidades de nível superior e inferior.
Há poucas vagas universitárias em relação ao
número de estudantes e ainda menos em universidades de prestígio,
as quais concentram-se na costa leste e nas grandes cidades.
Foi nestas áreas que houve a explosão de aulas particulares na última década
.
Agora, o conselho estatal da China está a impedir empresas com fins
lucrativos de darem aulas de disciplinas básicas do currículo bem
como o investimento estrangeiro em tais empresas.
Tome-se a saúde. Aproximadamente 95% da população da China
é coberta por um programa de seguro público financiado
principalmente por impostos sobre a folha de pagamento de funcionários e
empregadores, com financiamento governamental mínimo. Isto supostamente
financia cuidados universais de saúde, mas é muito básico.
Assim, a maioria dos chineses é forçada a pagar taxas privadas
para obter melhores cuidados, tal como em muitas economias capitalistas
avançadas. E durante o COVID, as famílias chinesas enfrentaram
custos exorbitantes com saúde.
E tome-se a habitação. Os preços dos imóveis nas
cidades do litoral, onde o trabalho e o pagamento é melhor, duplicou nos
últimos dez anos. Em Shenzhen, o preço médio dos
apartamentos subiu tanto que alguns estão considerando mais barato
morar em Hong Kong
, um dos mercados imobiliários mais caros do mundo. Desde
2015, os preços dos imóveis residenciais subiram mais de 50% nas
maiores cidades da China. Na última década, a oferta média
de terrenos residenciais por novo residente nas 10 principais cidades é
de apenas 21,4 metros quadrados pouco mais do que a dimensão de
um quarto de hotel típico ou menos de 60% do espaço
residencial médio per capita na China.
A especulação tem crescido à medida que os governos locais
tentam levantar fundos com a venda de terrenos para incorporadores, que
então constroem propriedades por meio de empréstimos a taxas
baixas, muitas vezes do sector não-bancário sombra, não
regulamentado.
"A propriedade é a fonte mais importante de risco financeiro e de
desigualdade de riqueza na China",
disse Larry Hu, chefe de análise económica na China da Macquarie
Securities Ltd., de propriedade estrangeira. E ele está certo.
Assim, o governo tinha de responder ao desencanto público, reflectindo
as famosas palavras de Xi Jinping de que
"a habitação é para viver e não para
especulação".
O vice-primeiro-ministro Han Zheng acrescentou que o sector não
deveria ser usado como uma ferramenta de curto prazo para estimular a economia.
Os bancos foram instruídos a elevar as taxas de hipotecas. Governos
locais estão sendo orientados para acelerar o desenvolvimento de
habitações subsidiadas para arrendamento e foram
instruídos a aumentar o escrutínio sobre tudo, desde o
financiamento de incorporadores e preços das novas casas até os
preços dos títulos das transferências.
Mas estas montanhas não serão escaladas facilmente pelos
líderes chineses. Isso porque as autoridades chinesas se inclinaram cada
vez mais para a expansão através do sector capitalista e,
particularmente, em sectores improdutivos como propriedade e finanças
às custas de sectores produtivos como tecnologia manufactureira,
habitação, educação pública e saúde.
Grande parte da especulação imobiliária tem consistido em
construir cada vez mais empreendimentos comerciais ao invés de
habitações. Isso porque a principal prerrogativa dos governos
locais é acumular receita. Se conseguirem atrair mais empresas para as
suas jurisdições e se essas empresas se tornarem lucrativas, o
governo local poderá então arrecadar mais impostos corporativos.
Ao mesmo tempo, a oferta de terrenos residenciais é deliberadamente
mantida escassa de modo a que os governos possam ganhar dinheiro com a venda de
terrenos para habitação. Com efeito, as vendas de terrenos
residenciais servem como um subsídio cruzado na política de
terrenos dos governos locais, favorável aos negócios, que vende
terrenos comerciais mais baratos.
Pequim está a
pressionar duramente
pela implementação de um imposto sobre a propriedade, há
muito adiado, que poderia ser uma fonte alternativa de receita para os governos
municipais e reduzir sua dependência da venda de terras. Mas é
improvável que um imposto sobre a propriedade chegue a compensar a perda
de receita que resultaria de menores vendas de terras. Uma vez que as
famílias médias estarão isentas do imposto sobre a
propriedade, parece improvável que gere mais receita do que imposto
sobre o rendimento (1% do PIB), ao passo que as vendas anuais de terras
são actualmente da ordem de mais de 7% do PIB.
O sector imobiliário corresponde a 13% da economia, quando era de apenas
5% em 1995, e por cerca de 28% do total de empréstimos do país.
Dado que os governos locais têm dívidas de US$10 milhões de
milhões
(trillion),
a venda de terras é a fonte de receita mais crucial e confiável
para o reembolso da dívida. Assim, quaisquer mudanças
drásticas aumentariam seriamente o risco de incumprimento dos governos
locais. Portanto, as novas medidas enérgicas do governo aos sectores
capitalistas da China não serão suficientes para alterar as
enormes desigualdades de rendimento, riqueza e acesso a empregos,
habitação e educação na China.
Sejamos claros, a China tem um alto nível de desigualdade de rendimento
pelos padrões internacionais, embora ainda seja menor do que muitas
outras economias 'emergentes' como Brasil, México ou África do
Sul e o rácio de desigualdade de Gini atingiu o pico pouco antes
da Grande Recessão e tem estado a cair desde então.
Fonte: National Bureau of Statistics
A principal razão para o alto rácio de desigualdade é a
disparidade de rendimento entre trabalhadores urbanos e rurais e entre os
salários nas cidades costeiras e do interior, bem como as
qualificações educacionais.
Quanto à desigualdade de riqueza pessoal, a China não é tão desigual quanto muitos de seus pares econômicos
. O rácio de Gini de desigualdade de riqueza é muito maior no
Brasil, Rússia e Índia e maior nos Estados Unidos e Alemanha. De
acordo com as mais recentes estimativas, os 1% dos maiores detentores de
riqueza na China tomam 31% de toda a riqueza pessoal em
comparação com 58% na Rússia, 50% no Brasil, 41% na
Índia e 35% nos Estados Unidos. Esta é uma boa medida do poder
económico da elite e dos oligarcas nestes países.
Muito se fala acerca do número de multimilionários na China mas,
dado o tamanho da população e do PIB, a proporção
per capita em comparação com os EUA e outras economias
importantes é relativamente baixa. Apesar da grande expansão do
número de milionários, os milionários na China continuam
relativamente raros: cerca de um para cada 200 adultos. Os milionários
representam 3% dos adultos na Itália e na Espanha; cerca de 4% na
França, Áustria ou Alemanha e cerca de 6% na Escandinávia
social-democrata; acima de 8% nos EUA e Austrália e o máximo de
todos na Suíça (15%).
E a desigualdade de riqueza na China está centrada na propriedade,
não em activos financeiros (até agora), ao contrário das
principais economias capitalistas do G7. E isso porque as finanças
não foram totalmente abertas ao sector capitalista.
Fonte: Piketty et al,
blogs.lse.ac.uk/...
Mas as contradições da economia controlada pelo Estado da China
juntamente com um grande e crescente sector capitalista intensificaram-se
durante a pandemia de COVID. E isso foi expresso pelas facções na
liderança chinesa. Responsáveis do sector financeiro e
bancário querem abrir a economia ao capital estrangeiro e permitir que o
renminbi se torne uma divisa internacional. Eles argumentam que a economia
está demasiado enviezada para o investimento e as
exportações em relação ao consumo. Economistas
chineses formados na América e na Europa, apoiados por economistas
estrangeiros residentes em universidades chinesas e no Banco Mundial,
pressionam continuamente por uma "mudança do investimento para o
consumo". Mas terá isto funcionado nas economias capitalistas do
G7, onde o consumo não conseguiu impulsionar o crescimento
económico e os salários estagnaram em termos reais nos
últimos dez anos, enquanto os salários reais na China dispararam?
Fonte: Penn World Tables 10.0, cálculos do autor
Na verdade, o consumo está a crescer muito mais rapidamente na China do
que no G7 porque ali o investimento é maior. Um segue o outro;
não é um jogo de soma zero. E nem todo consumo precisa ser
"pessoal"; o mais importante é o "consumo social",
isto é, serviços públicos como saúde,
educação, transporte, comunicações,
habitação; não apenas automóveis e gadgets. O
aumento do consumo pessoal de serviços sociais básicos é o
que é necessário. E é aqui que a China precisa actuar.
Também se fala muito dos crescentes níveis de endividamento da
China. Economistas tradicionais vêm prevendo há décadas que
a China caminha para uma crash da dívida de mega
proporções. É verdade que, de acordo com o Instituto de
Finanças Internacionais (IFF), a dívida total da China atingiu
317% do produto interno bruto (PIB) no primeiro trimestre de 2020. Mas a maior
parte da dívida interna é devida por uma entidade estatal a
outra; de governos locais a bancos estatais, de bancos estatais ao governo
central. Quando tudo isso é compensado, a dívida das
famílias (54% do PIB) e das empresas não é tão
alta, ao passo que a dívida do governo central é baixa pelos
padrões globais. Além disso, a dívida externa em
dólares em relação ao PIB é muito baixa (15%) e na
verdade o resto do mundo deve à China muito mais: 6% da dívida
global. A China é um enorme credor do mundo e possui enormes reservas em
dólares e euros, 50% maiores do que sua dívida em dólares.
Fonte: IIF
Uma crise financeira está descartada enquanto o estado controlar o
sistema bancário, mas há perigos devido às recentes
tentativas de afrouxá-lo para instituições privadas e
estrangeiras entrarem na arena (exemplo: há um número crescente
de bancarrotas em entidades financeiras especulativas).
Os líderes chineses querem reduzir o nível de endividamento. O
controle do nível de endividamento pode ocorrer de duas maneiras; por
meio de alto crescimento do investimento do sector produtivo a fim de manter o
índice da dívida sob controle e/ou pela redução da
farra de crédito em áreas improdutivas, como a propriedade
especulativa. A estagnação secular do Japão deveu-se
à falta de aplicação desses dois factores na sua economia
capitalista. Mas dado o poder do controle estatal sobre as alavancas de
investimento, a China pode evitar o resultado japonês.
A contradição básica da economia chinesa não
é entre investimento e consumo, ou entre crescimento e dívida;
está entre lucratividade e produtividade. O tamanho e a influência
crescentes do sector capitalista na China está a enfraquecer o
desempenho da economia e a ampliar as desigualdades reveladas durante a
pandemia. Na verdade, foi o sector estatal que ajudou a economia chinesa a sair
da crise pandémica, não o seu sector capitalista.
Fiz um pequeno teste empírico da relação entre a
lucratividade do capital chinês e o crescimento real do PIB (com base nos
dados do Penn World Tables 10.0 pormenores fornecidos mediante
solicitação). O que descobri foi que o investimento dominado pelo
Estado e o stock de capital na China significavam que não havia
correlação entre a lucratividade do capital chinês e o
crescimento real do PIB desde a formação da República
Popular na verdade, era negativa. A lucratividade do capital não
decidia o nível de investimento em activos produtivos e nem o
crescimento económico.
Fonte: Penn World Tables 10.0; Série IRR para lucratividade;
cálculos de crescimento do PIB real
No entanto, após as reformas de Deng na década de 1980, a
correlação tornou-se positiva, embora menos positivamente
correlacionada do que no resto das economias do G20 ou do G7. E desde que a
China entrou na Organização Mundial do Comércio e
privatizou secções do seu sector estatal no final dos anos 1990 e
início dos anos 2000, tem havido uma correlação
significativa entre a lucratividade do capital chinês e o crescimento
real do PIB. Assim, a economia chinesa tornou-se cada vez mais
vulnerável ao seu sector capitalista e ao capital internacional e sua
lucratividade.
Isto é o Everest que a China enfrenta:
como elevar a produtividade
para atender às necessidades sociais de seus 1,4 mil milhões de
habitantes face aos caprichos da lucratividade do seu sector capitalista.
A força de trabalho da China está em queda
.
O crescimento da produtividade está a desacelerar e a China enfrenta uma
guerra tecnológica e comercial com os EUA e seus aliados imperialistas.
As três montanhas não serão escaladas a menos que o Everest
também seja conquistado.
Como parte do seu plano nacional 2021-25 para reduzir desigualdades,
várias províncias estão empenhadas na
construção de "
uma zona comum de demonstração de prosperidade
". De acordo com o plano, na província de Zhejiang, a
remuneração do trabalho será elevada para mais de 50% do
PIB até 2025; a taxa de matrícula no ensino superior para mais de
70%; e a proporção dos gastos pessoais com saúde em
relação ao total dos gastos com saúde será
administrada para ficar abaixo de 26 por cento. Será que
funcionará e será aplicado a outras províncias?
Veremos
.
08/Agosto/2021
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[*]
Economista.
O original encontra-se em
thenextrecession.wordpress.com/...
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