O ressurgimento rentista e a tomada de controle:
Capitalismo financeiro vs. capitalismo industrial (2)
(A primeira parte encontra-se
aqui
)
A luta do capital financeiro para privatizar e monopolizar infraestrutura
pública
Outra razão para a desindustrialização é o aumento
do custo de vida resultante da conversão de infra-estruturas
públicas em monopólios privatizados. Quando os Estados Unidos e a
Alemanha ultrapassaram o capitalismo industrial britânico, foi
reconhecido que uma das principais chaves para a vantagem industrial era o
investimento público em estradas, caminhos-de-ferro e outros
transportes, educação, saúde pública,
comunicações e outras infra-estruturas básicas. Simon
Patten, o primeiro professor de teoria económica na primeira
business school
dos EUA, a Wharton School da Universidade da Pensilvânia, definiu a
infra-estrutura pública como um "quarto factor de
produção", para além do trabalho, do capital e da
terra. Mas ao contrário do capital, explicava Patten, o seu objectivo
não era o de obter lucro. O seu objectivo era minimizar o custo de vida
e de fazer negócios, proporcionando serviços básicos a
baixo preço para tornar o sector privado mais competitivo.
Ao contrário das taxas militares que sobrecarregavam os contribuintes
nas economias pré-modernas, "numa sociedade industrial, o objectivo
da tributação é aumentar a prosperidade industrial"
através da criação de infra-estruturas sob a forma de
canais e caminhos-de-ferro, um serviço postal e educação
pública. Esta infra-estrutura era um "quarto" factor de
produção. Os impostos seriam "não encargos",
explicava Patten, na medida em que fossem investidos em melhoramentos internos
públicos, encabeçados por transportes tais como o Canal Erie
[2]
.
A vantagem deste investimento público é reduzir custos ao
invés de deixar privatizadores imporem rendas de monopólio na
forma de encargos de acesso à infraestrutura básica. Governos
podem estabelecer os preços dos serviços destes monopólios
naturais (incluindo criação de crédito, como estamos a ver
hoje) ao preço de custo ou oferecê-los gratuitamente, ajudando o
trabalho e seus empregadores industriais a venderem por menos a países
aos quais faltam tais empreendimentos públicos.
Nas cidades, explicava Patten, o transporte público elevava os
preços das propriedades (e portanto da renda económica) na
periferia afastada, assim como o Canal Erie havia beneficiado agricultores do
Oeste que competiam com agricultores do norte do estado de Nova York. Esse
princípio é evidente nos bairros suburbanos de hoje em
relação aos centros de cidades. A extensão do metro de
Londres ao longo da Jubilee Line, e do metro da Segunda Avenida da Cidade de
Nova York, mostraram que o transporte subterrâneo e o autocarro podem ser
financiados publicamente pela tributação do valor
rentístico mais alto criado para determinados sítios ao longo
destas rotas. Pagar o investimento de capital a partir de tais taxas pode
providenciar transportes a preços subsidiados, minimizando
consequentemente o custo de estrutura da economia. O que Joseph Stiglitz
popularizou como a "Lei de Henry George" deveria assim, mais
correctamente, ser conhecida como "Lei de Patten" da
tributação não sobrecarregada por dívidas
(burdenless).
[3]
Sob um regime de "tributação não sobrecarregada"
o retorno sobre o investimento público não toma a forma de lucro
mas destina-se a reduzir o preço geral de estrutura da economia para
"promover prosperidade geral". Isto significa que governos deveriam
operar directamente os monopólios naturais ou, pelo menos,
regulá-los. "Parques, esgotos e escolas melhoram a saúde e a
inteligência de todas as classes de produtores, o que lhes permite
produzir de modo mais barato e competir com mais êxito em outros
mercados". Patten concluía: "Se os tribunais, correios,
parques, obras gasistas, hidráulicas, de arruamentos, fluviais e
melhorias de portos e outras obras públicas não aumentarem a
prosperidade da sociedade elas não deveriam ser efectuadas pelo
Estado". Mas esta prosperidade para a economia geral não pode ser
obtida ao tratar empresas públicas como centros de lucro, como se diz
hoje em dia.
[4]
Em certo sentido, isto pode ser chamado "privatizar os lucros e socializar
os prejuízos". Advogar uma economia mista de acordo com estas
linhas é parte da lógica do capitalismo industrial que procura
minimizar a produção do sector privado e dos custos de emprego a
fim de maximizar lucros. A infraestrutura social básica é um
subsídio a ser fornecido pelo estado.
O primeiro-ministro conservador britânico Benjamin Disraeli (1874-80)
reflectiu este princípio: "A saúde do povo é
realmente o fundamento sobre o qual depende toda a sua felicidade e todos os
seus poderes enquanto Estado".
[5]
Ele patrocinou a Lei da Saúde Pública de 1875, seguida da Lei da
Venda de Alimentos e Drogas e, no ano seguinte, a Lei da
Educação. O governo prestaria estes serviços, e não
empregadores privados em busca de monopólio.
Durante um século, o investimento público ajudou os Estados
Unidos a seguir uma política de Economia de Altos Salários,
providenciando padrões de educação,
alimentação e saúde para tornar o trabalho mais produtivo
e assim ser capaz de livrar-se do trabalho "miserável" de
baixo salário. O objectivo era criar uma retro-alimentação
positiva entre salários em ascensão e aumento da produtividade do
trabalho.
Isto está em contraste absoluto com o
business plan
do capitalismo financeiro de hoje cortar salários e,
também, reduzir o investimento de capital a longo prazo, a
investigação e o desenvolvimento enquanto privatiza
infraestrutura pública. A carnificina neoliberal de Ronald Reagan nos
Estados Unidos e de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha na década
de 1980 foi apoiada pelas exigências do FMI de que economias devedoras
equilibrassem seus orçamentos pela liquidação de empresas
públicas e recortes nos gastos sociais. Serviços de
infraestrutura foram privatizados como monopólios naturais, aumentando
drasticamente os custos de estrutura de tais economias, mas criando enormes
comissões de subscrição financeira e ganhos no mercado
bolsista da Wall Street e de Londres.
Até agora privatizar monopólios públicos tornou-se um dos
modos mais lucrativos de ganhar riqueza financeiramente. Mas cuidados de
saúde privatizados e seguros médicos são pagos pelo
trabalho e seus empregadores, não pelo governo como no capitalismo
industrial. E face à ascensão de custos do sistema educacional
privatizado, o acesso da classe média ao emprego tem sido financiado
pela dívida estudantil. Estas privatizações não
ajudaram as economias a tornarem-se mais ricas ou competitivas. Ao nível
vasto da economia, este plano de negócios é uma corrida para o
fundo, mas uma corrida que beneficia a riqueza financeira no topo.
O capitalismo financeiro empobrece economias enquanto aumenta seu custo de
estrutura
A renda económica clássica é definida como o excesso de
preço sobre o valor de custo intrínseco. Capitalizar esta renda
quer seja a renda da terra ou a renda monopólica da
privatização acima descrita em obrigações,
acções e empréstimos bancários cria "riqueza
virtual". A criação exponencial de crédito do
capitalismo financeiro aumenta a riqueza "virtual"
títulos financeiros e direitos de propriedade ao administrar
estes títulos e créditos de uma forma que os fez valer mais do
que a riqueza real tangível.
A principal forma de ganhar fortunas é obter ganhos nos preços de
activos ("ganhos de capital") em acções,
obrigações e bens imobiliários. Contudo, esta sobrecarga
financeira exponencialmente crescente, com alavancagem da dívida,
polariza a economia de forma a concentrar a propriedade da riqueza nas
mãos dos credores, e dos proprietários de imóveis de
aluguer, acções e títulos drenando a economia
"real" a fim de pagar o sector FIRE.
A teoria económica pós-classica descreve a infraestrutura
privatizada, o desenvolvimento de recursos naturais e a banca como fazendo
parte da economia industrial, não sobreposta a ela por uma classe em
busca de rendas. Mas a dinâmica de economias capitalistas-financeiras
não consiste em ganhar riqueza principalmente pelo investimento em meios
de produção industrial e poupando lucros ou salários, mas
sim em ganhos de capital obtidos principalmente através da procura da
busca de rendas. Estes ganhos não são "capital" como se
entendia classicamente. São "ganhos financeiros-capitalistas",
porque resultam de uma inflação de preços de activos
alimentada pela alavancagem da dívida.
Ao inflacionar os seus preços de habitação e uma bolha no
mercado de acções a crédito, a alavancagem da
dívida dos EUA, bem como a sua financeirização e
privatização de infra-estruturas básicas, colocou os seus
preços afastados dos mercados mundiais. A China e outros países
não financiarizados evitaram custos elevados de seguros de saúde,
custos de educação e outros serviços, estabelecendo-os em
baixo custo ou gratuitos, encarando-os como um serviço público. A
saúde pública e os cuidados médicos custam muito menos no
estrangeiro, mas são atacados nos Estados Unidos pelos neoliberais como
"medicina socializada", como se financiarizar a
prestação de cuidados de saúde tornasse a economia dos EUA
mais eficiente e competitiva. Os transportes também foram
financiarizados e gerido com fins lucrativos, não para baixar o custo de
vida e de fazer negócio.
Deve-se concluir que a América optou por não mais industrializar,
mas financiar a sua economia através da renda económica
renda monopolista, desde as tecnologias de informação, à
banca e à especulação, deixando a indústria,
investigação e desenvolvimento para outros países. Mesmo
que a China e outros países asiáticos não existissem,
não há maneira de a América recuperar os seus mercados de
exportação ou mesmo o seu mercado interno com as suas actuais
despesas gerais sobrecarregadas pelo endividamento e a sua
educação privatizada e financiarizada, assim como os cuidados de
saúde, transportes e outros sectores de infra-estrutura básica.
O problema subjacente não é a competição da China,
mas a financiarização neoliberal. Capitalismo-financeiro
não é capitalismo industrial. É uma decadência de
volta à servidão da dívida e ao neo-feudalismo rentista.
Os banqueiros desempenham hoje o papel que os senhores da terra desempenharam
ao longo do século XIX, fazendo fortunas sem o valor correspondente,
através de ganhos de capital com o imobiliário,
acções e títulos a crédito, pelo alavancamento de
dívida cujos encargos aumentam o custo de viver e de fazer
negócio da economia.
A nova guerra fria de hoje é um combate do capitalismo financeiro contra
o capitalismo industrial
O mundo de hoje está a ser fracturado por uma guerra económica
sobre que espécie de sistema económica terá. O capitalismo
industrial está a perder o combate para o capitalismo financeiro, o qual
está a revelar-se como a sua antítese assim como o
capitalismo industrial era a antítese dos senhores da terra
pós-feudais e das casas bancárias predadoras.
A este respeito, a Nova Guerra Fria de hoje é um conflito de sistemas
económicos. Como tal, ela está a ser combatida contra a
dinâmica do capitalismo industrial dos EUA, bem como aquele da China e de
outras economias. Portanto, a luta é também interna nos Estados
Unidos e na Europa, bem como confrontacional contra a China e a Rússia,
o Irão, Cuba, Venezuela e os seus movimentos para desdolarizar as suas
economias e rejeitar o Consenso de Washington e a sua Diplomacia do
Dólar. É uma luta do capital financeiro centrado nos EUA para
promover a doutrina neoliberal que concede privilégios fiscais especiais
ao rendimento dos rentistas, desonerando tributariamente a renda de terra, a
renda de recursos naturais, a renda de monopólio e a do sector
financeiro. Este objectivo inclui a privatização e a
financeirização de infra-estruturas básicas, maximizando a
sua extracção de renda económica ao invés de
minimizar o custo de vida e de fazer negócio.
O resultado é uma guerra para mudar o carácter do capitalismo bem
como o da social-democracia. O Partido Trabalhista britânico,
sociais-democratas europeus e o Partido Democrata dos EUA saltaram todos para
dentro do vagão neoliberal. Todos eles são cúmplices na
austeridade que se tem propagado desde o Mediterrâneo até o
cinturão da ferrugem no Meio-Oeste dos EUA.
O capitalismo financeiro explora o trabalho, mas via um sector rentista, o qual
acaba por canibalizar o capital industrial. Este impulso tem-se
internacionalizado num combate contra nações que restringem a
dinâmica predatória do capital financeiro que procura privatizar e
desmantelar o poder regulatório do governo. A Nova Guerra Fria
não é meramente uma guerra que está a ser travada pelo
capitalismo financeiro contra o socialismo e a propriedade pública dos
meios de produção. Tendo em vista a dinâmica inerente do
capitalismo industrial que exige forte regulamentação estatal e
poder tributário para controlar a intrusão do capital financeiro,
este conflito global pós-industrial é entre o socialismo que
evolui a partir do capitalismo industrial e o fascismo, definido como uma
reacção rentista para mobilizar o governo a fim de fazer recuar a
social-democracia e restaurar o controlo das classes financeiras e monopolistas
rentistas.
A velha Guerra Fria era um combate contra o "Comunismo". Além
de libertar-se da renda da terra, dos encargos com juros e de lucros
industriais apropriados privadamente, o socialismo favorece o combate do
trabalho por melhores salários e condições de trabalho,
melhor investimento público em escolas, cuidados de saúde e
outros apoios ao bem estar social, melhor segurança de emprego e seguro
de desemprego. Todas estas reformas minariam os lucros dos empregadores. Lucros
mais baixos significam preços de acções mais baixos e
portanto menos ganhos para o capital financeiro.
O objectivo do capitalismo financeiro não é tornar uma economia
mais produtiva pela produção de bens e a sua venda a um custo
mais baixo do que os competidores. O que à primeira vista pode parecer
ser rivalidade económica internacional e inveja entre os Estados Unidos
e a China é portanto melhor visto como um combate entre sistemas
económicos: o do capitalismo financeiro e o da civilização
a tentar libertar-se de privilégios rentistas e da submissão a
credores, com uma filosofia de governo mais social com poder de decisão
para controlar interesses privados quando eles actuam egoistamente e prejudicam
a sociedade como um todo.
O inimigo nesta Nova Guerra Fria não é meramente governo
socialista mas governo em si mesmo, excepto na medida em que ele possa ser
trazido para ficar sob o controle da alta finança a fim de promover a
agenda neoliberal rentista. Isto reverte a revolução
política democrática do século XIX que substituiu a Casa
dos Lordes e outras câmaras altas controladas pela aristocracia
hereditária por legisladores mais representativos. O objectivo é
criar um estado corporativo, substituindo organismos governamentais eleitos por
bancos centrais o Federal Reserve dos EUA e o Banco Central Europeu,
juntamente com pressão externa do Fundo Monetário Internacional e
do Banco Mundial.
O resultado é um "estado profundo" a apoiar uma oligarquia
financeira cosmopolita. Isto é a definição de fascismo,
revertendo governos democráticos para devolver o controle às
classes financeiras e monopolistas rentistas. O beneficiário é o
sector corporativo, não o trabalho, cujo ressentimento é desviado
contra estrangeiros e contra inimigos internos designados.
Na falta de afluência estrangeira, o Estado corporativo norte-americano
promove o emprego através de uma acumulação militar e de
despesas públicas em infra-estruturas, a maior parte das quais é
entregue a iniciados internos a fim de privatizar em monopólios em busca
de renda e em sinecuras. Nos Estados Unidos, as forças armadas
estão a ser privatizadas para combater no estrangeiro (exemplo:
Blackwater USA/Academi) e as prisões estão a ser transformadas em
centros de lucro utilizando condenados como mão-de-obra barata.
O que é irónico é que embora a China esteja a procurar
desligar-se do capitalismo financeiro ocidental, na realidade tem feito o que
os Estados Unidos fizeram na sua descolagem industrial no final do
século XIX e início do século XX. Como uma economia
socialista, a China tem visado aquilo que se esperava do capitalismo
industrial: libertar a sua economia do rendimento rentista (senhores da terra e
bancos usurários), em grande parte através de uma política
progressiva de impostos sobre o rendimento que incide principalmente sobre o
rendimento de rentistas.
Acima de tudo, a China tem mantido a banca no domínio público.
Manter a moeda e a criação de crédito públicas ao
invés de privatiza-las é o passo mais importante para manter
baixo o custo de vida e de fazer negócio. A China foi capaz de evitar
uma crise de dívida pelo esquecimento das mesmas ao invés de
encerar empresas endividadas consideradas serem de interesse público.
Neste aspecto, é a China socialista que está a alcançar o
destino que se esperava inicialmente do capitalismo industrial no Ocidente.
Resumo: O capital financeiro em busca de renda
A transformação da teoria económica académica sob o
capitalismo financeiro de hoje inverteu o impulso progressivo e mesmo radical
da economia política clássica que evoluiu para o marxismo. A
teoria pós-clássica descreve os sectores financeiro e outros
rentistas como uma parte intrínseca da economia industrial. Os actuais
formatos contabilísticos do rendimento nacional e do PIB são
compilados de acordo com esta reacção anti-clássica,
representando o sector FIRE e os seus sectores aliados em busca de renda como
um acréscimo ao rendimento nacional e não como um subtraendo.
Juros, rendas e preços monopolistas são todos contabilizados como
"ganhos" como se todos os rendimentos fossem obtidos como
partes intrínsecas do capitalismo industrial e não como
extracção predatória como despesas gerais da propriedade
imobiliária e dos créditos financeiros.
Isto é o oposto da teoria económica clássica. O
capitalismo financeiro é um mecanismo para evitar o que Marx e na
verdade a maioria dos seus contemporâneos esperavam: que o capitalismo
industrial evoluísse para o socialismo, de forma pacífica ou
não.
Algumas observações finais: As finanças tomam controle da
indústria, do governo e da ideologia
Quase todas as economias são uma economia mista pública e
privada, financeira, industrial e de buscadores de renda. Dentro destas
economias mistas, a dinâmica financeira crescimento da
dívida por juros compostos, atendo-se primariamente a privilégios
de extracção de renda e, portanto, protegendo-os
ideológica, política e academicamente. Estas dinâmicas
são diferentes daquelas do capitalismo industrial e, na verdade,
prejudicam a economia industrial ao desviar o seu rendimento a fim de pagar ao
sector financeiro e os seus clientes rentistas.
Uma expressão deste antagonismo inato é o horizonte temporal. O
capitalismo industrial requer planeamento a longo prazo para desenvolver um
produto, fazer um plano de marketing e empreender investigação e
desenvolvimento para seus preços abaixo dos dos concorrentes. A
dinâmica básica é M-C-M': o capital (dinheiro, M) é
investido na construção de fábricas e outros meios de
produção e no emprego de mão-de-obra para vender os seus
produtos (mercadorias, C) com um lucro (M').
O capitalismo financeiro abrevia este processo para um M-M', fazendo dinheiro
de modo puramente financeiro, pela cobrança de juros e
obtenção de ganhos de capital. O modo financeiro de
"criação de riqueza" é medido pela
avaliação do imobiliário, acções e
títulos. Esta avaliação Esta avaliação
durante muito tempo foi baseada na capitalização do seu fluxo de
receitas (rendas ou lucros) à taxa de juro corrente, mas agora baseia-se
quase inteiramente nos ganhos de capital como a fonte principal de
"retornos totais".
Ao assumir o controlo de empresas industriais, os gestores financeiros
concentram-se no curto prazo, pois o seu salário e bónus
baseiam-se no desempenho do ano em curso. O "desempenho" em causa
é o desempenho na bolsa de valores. Os preços das
acções tornaram-se em grande medida independentes do volume de
vendas e dos lucros, agora que são aumentados pelas empresas que
normalmente pagam cerca de 92 por cento das suas receitas em dividendos e
recompra de acções
[6]
.
Ainda mais destrutivamente, o capital privado criou um novo processo:
M-dívida-M'. Um documento recente calcula isso: "Mais de 40% das
empresas que efectuam pagamentos também angariam capital durante o mesmo
ano, resultando em 31% das recompras e dividendos agregados de
acções financiadas externamente, primariamente com
dívida".
[7]
Isto tornou o sector corporativo financeiramente frágil,
particularmente a indústria aérea na sequência da crise da
COVID-19.
A essência das participações privadas (
private equity
), explica Matt Stoller, é que "engenheiros financeiros [angariem]
grandes quantias de dinheiro e contraiam ainda mais empréstimos para
comprar empresas e saqueá-las. Estes tipos de barões do
private equity
não são especialistas que ajudam a financiar produtos e
serviços úteis, eles fazem negócios de cortadores de
biscoitos atacando empresas que acreditam ter poder de mercado para elevar
preços, que podem despedir trabalhadores ou vender activos, e/ou que
têm alguma espécie de alçapão legal vantajoso.
Muitas vezes destroem o negócio subjacente. Os gigantes da
indústria, desde a Blackstone até a Apollo, são os filhos
do rei dos títulos lixo
(junk bond)
da década de 1980 e do defraudador Michael Milken. Eles são
essencialmente mafiosos super dimensionados"
[8]
.
O capital privado tem desempenhado um grande papel no aumento da alavancagem
corporativa, tanto através das suas próprias acções
como através da desinibição de grandes companhias
públicas na utilização da dívida. Como explicaram
Eileen Appelbaum e Rosemary Batt, as grandes firmas de compras
(buyout),
na sequência do manual desenvolvido na década de 1980, produzem
os seus retornos a partir da engenharia financeira e do corte de custos
(acordos de redução de dimensão visam empresas "mais
crescentes", mas enquanto aquelas empresas de
private equity
asseveram que acrescentam valor, isto pode ser apenas pelo facto de serem
habilidosas em identificar empresas promissoras e em cavalgar uma onda de
desempenho).
Ao contrário do que diz o seu marketing, as taxas de estrutura das
private equity significam que elas ganham dinheiro mesmo quando levam firmas
à bancarrota. E elas tornaram-se tão poderosas que é
difícil obter apoio político para travá-las quando
prejudicam grande número de cidadãos através de
práticas exploradoras como a facturação de
equilíbrio ("surpresa")
[9]
.
A descrição clássica deste processo de saqueio com fins
lucrativos é o documento de George Akerloff e Paul Romer de 1993, que
descreve como "as empresas têm um incentivo para irem à
falência por lucro a expensas da sociedade (para saquear) ao invés
de irem em frente (para apostar no êxito)". A bancarrota com fins
lucrativos ocorrerá se uma má contabilidade, uma
regulamentação laxista, ou penalidades baixas por abuso derem aos
proprietários um incentivo para se pagarem a si próprios mais do
que as suas empresas valem e a seguir incumprirem as suas
obrigações de dívida".
[10]
O facto de os "ganhos de papel" dos preços das
acções poderem ser eliminados quando ocorrem tempestades
financeiras, torna o capitalismo financeiro menos resiliente do que a base
industrial de investimento em capital tangível que permanece no lugar.
Os Estados Unidos encurralaram a sua economia num canto ao desindustrializarem,
substituindo a formação de capital tangível por
"riqueza virtual", ou seja, créditos financeiros sobre
rendimentos e activos tangíveis. Desde 2009, e especialmente desde a
crise Covid de 2020, a sua economia tem estado a sofrer através daquilo
a que se chama uma "recuperação" em forma de K
[NR]
. Os mercados de acções e títulos atingiram máximos
históricos para beneficiar as famílias mais ricas, mas a economia
"real" da produção e consumo, do PIB e emprego,
declinou para o sector não-rentista, ou seja, a economia em geral.
Como explicarmos esta disparidade se não pelo reconhecimento de que
diferentes dinâmicas e leis do movimento estão a funcionar? Ganhos
em riqueza cada vez mais tomam a forma de uma valorização
ascendente de direitos financeiros e de propriedade rentistas sobre os activos
reais e rendimentos reais da economia, encabeçados por direitos de
extracção de rendas, não por meios de
produção.
Um capitalismo financeiro desta espécie só pode sobreviver se
retirar ganhos exponencialmente crescentes de fora do sistema, quer pela
criação de moeda pelo banco central
(Quantitative Easing)
quer pela financiarização de economias estrangeiras,
privatizando-as para substituir serviços de infraestruturas
públicas de baixos preços por monopólios em busca de renda
que emitem títulos e acções, amplamente financiados por
crédito baseado no dólar à procura de ganhos de capital. O
problema com este imperialismo financeiro é que ele faz os hospedeiros
clientes tornarem-se economias de alto custo como as dos EUA e de outros
patrocinadores nos centros financeiros do mundo.
Todos os sistemas económicos procuram internacionalizar-se e estender o
seu domínio através do mundo. A Guerra Fria reavivada de hoje
deveria ser entendida como um combate sobre que espécie de sistema
económico terá o mundo. O capitalismo financeiro está a
lutar contra nações que restringem a sua dinâmica intrusiva
e o patrocínio da privatização e do desmantelamento do
poder regulador público. Ao contrário do capitalismo industrial,
o objectivo rentista não é tornar uma economia mais produtiva
pela produção de bens e a sua venda a um custo inferior ao dos
competidores. As dinâmicas do capitalismo financeiro são
globalistas, procurando utilizar organizações internacionais (o
FMI, a NATO, o Banco Mundial e as sanções comerciais e de
investimento concebidas pelos EUA) para anular governos nacionais que
não são controlados pelas classes rentistas. O objectivo é
transformar todas as economias em capitalistas-financeiras com camadas de
privilégio hereditário, impondo políticas de austeridade
anti-laboral para espremer um excedente dolarizado.
A resistência do capitalismo industrial a esta pressão
internacional é necessariamente nacionalista, porque necessita de
subsídios e leis do estado para tributar e regular o sector FIRE. Mas
está a perder o combate para o capitalismo financeiro, o qual
está a transformar-se na sua némesis, tal como o capitalismo
industrial foi a némesis do senhor da terra pós-feudal e da banca
predatória. O capitalismo industrial exige subsídios estatais e
investimento em infraestruturas, juntamente com poder regulador e fiscal para
controlar a investida do capital financeiro. O conflito global resultante
é entre o socialismo (a evolução natural do capitalismo
industrial) e um fascismo pró-rentista, uma reacção
estatal-financeira-capitalista contra a mobilização do poder
estatal do socialismo para repelir os interesses dos rentistas
pós-feudais.
Portanto, subjacente à rivalidade hoje sentida pelos Estados Unidos
contra a China está um choque de sistemas económicos. O conflito
real não é tanto "América vs. China", mas sim
capitalismo financeiro vs. capitalismo/socialismo de "estado"
industrial. O que está em jogo é se "o estado"
irá apoiar a financeirização em benefício da classe
rentista ou fortalecer a economia industrial e a prosperidade global.
Para além do seu horizonte temporal, o outro grande contraste entre
capitalismo financeiro e capitalismo industrial é o papel do governo. O
capitalismo industrial quer que o governo ajude a "socializar os
custos", subsidiando serviços de infraestruturas. Ao baixar o custo
de vida (e consequentemente o salário mínimo), isto deixa mais
lucros a serem privatizados. O capitalismo financeiro quer arrancar estes
serviços públicos do domínio público e
transformá-los em activos privatizados submissos à renda. Isso
eleva a estrutura de custos da economia e, em consequência,
é autodestrutivo do ponto de vista da competição
internacional entre industriais.
Esta é a razão porque economias de custo mais baixo e menos
financiarizadas ultrapassaram os Estados Unidos, a começar pela China. O
modo como a Ásia, a Europa e os Estados Unidos reagiram à crise
do Covid-19 enfatiza este contraste. A pandemia forçou cerca de 70 por
cento dos restaurantes de bairro locais a encerrarem diante de grandes rendas e
dívidas atrasadas. Arrendatários, desempregados
proprietários de habitações e investidores
imobiliários, bem como numerosos sectores de consumo enfrentam
também despejos e desalojamentos, insolvência e
execução de hipotecas ou vendas desesperadas quando a actividade
económica afunda.
Menos amplamente observado é como a pandemia levou a Reserva Federal a
subsidiar a polarização e monopolização da economia
dos EUA, disponibilizando crédito a apenas uma fracção de
1 por cento para bancos, fundos de
private equity
e às maiores corporações do país, ajudando-as a
devorar pequenas e médias empresas em dificuldades.
Durante uma década após o salvamento bancário fraudulento
de Obama em 2009, o Fed descreveu o seu objectivo como sendo manter a liquidez
do sistema bancário e evitar danos aos detentores dos seus
títulos, accionistas e grandes depositantes. O Fed infundiu o sistema
bancário comercial com poder de empréstimo suficiente para apoiar
os preços das acções e obrigações. A
liquidez foi injectada no sistema bancário através da compra de
títulos do governo, como era normal. Mas depois de o vírus do
Covid atacar em Março de 2020, o Fed começou a comprar
dívida corporativa pela primeira vez, incluindo títulos lixo. A
ex-chefe do FDIC [Federal Deposit Insurance Corporation], Sheila Bair, e o
economista do Tesouro Lawrence Goodman, nota, a Reserva Federal comprou os
títulos "de 'anjos caídos' que afundaram para o status de
lixo durante a pandemia", por se terem permitido empréstimos
super-alavancados para pagar dividendos e comprar as suas próprias
acções
[11]
.
O Congresso considerou a possibilidade de limitar a utilização
das receitas dos títulos comprados "para compensações
executivas ou distribuições a accionistas" no momento em que
aprovou as medidas, mas não fez qualquer tentativa para impedir as
empresas de o fazerem. Registando que "a Sysco utilizou o dinheiro para
pagar dividendos aos seus accionistas enquanto despedia um terço da sua
força de trabalho ... um relatório da comissão parlamentar
constatou que as empresas que beneficiaram das medidas despediram mais de um
milhão de trabalhadores entre Março e Setembro". Bair e
Goodman concluem que "há pouca evidência de que a compra da
dívida empresarial do Fed tenha beneficiado a sociedade". Pelo
contrário: As acções do Fed "criaram mais uma
oportunidade injusta para as grandes empresas ficarem ainda maiores pela compra
dos competidores com o crédito subsidiado pelo governo".
O resultado, eles acusam, está a transformar a conformação
política da economia. "Os salvamentos
(bailouts)
em série do mercado pelas autoridades monetárias primeiro
o sistema bancário em 2008 e agora todo o mundo empresarial em meio a
pandemia" tem sido "uma ameaça maior [para destruir o
capitalismo] do que Bernie Sanders". As "taxas de juro super baixas
do Fed favoreceram o capital próprio das grandes empresas em detrimento
das suas congéneres mais pequenas", concentrando o controle da
economia nas mãos das empresas com maior acesso a tais créditos.
As empresas mais pequenas são "a principal fonte de
criação de emprego e de inovação", mas
não têm acesso ao crédito quase gratuito de que desfrutam
os bancos e os seus maiores clientes. Como resultado, o sector financeiro
continua a ser a mãe dos trusts, concentrando a riqueza financeira e
corporativa ao financiar uma devastação das empresas mais
pequenas pelas companhias gigantes para monopolizar o mercado de dívida
e de salvamento.
O resultado desta concentração financiarizada do "peixe
grande come o peixe pequeno" é uma versão nos dias modernos
do Estado Corporativo do fascismo. Radhika Desai chama a isto
"creditocracia", regido pelas instituições no controle
do crédito.
[12]
É um sistema económico no qual os bancos centrais tomam dos
órgãos políticos eleitos e do Tesouro o controle da
política económica, completando assim o processo de
privatização do controle da economia no seu todo.
27/Janeiro/2021
[2] "The Theory of Dynamic Economics," Essays in Economic Theory ed.
Rexford Guy Tugwell (New York: 1924), pp. 96 e 98, originalmente em The
Publications of the University of Pennsylvania, Political Economy and Public
Law Series 3:2 (whole No. 11), 1892, p. 96. Governos aristocráticos da
Europa desenvolveram sua política fiscal "numa época em que
o estado era uma mera organização militar para a defesa da
sociedades de inimigos estrangeiros, ou para satisfazer sentimentos nacionais
por guerras agressivas". Tais estados tinham uma política de
desenvolvimento económico "passiva" e sua filosofia fiscal
não se baseava na eficiência económica. Apresento
pormenores em "Simon Patten on Public Infrastructure and Economic Rent
Capture," American Journal of Economics and Sociology 70 (October 2011),
pp. 873-903.
[3] George defendeu um imposto sobre a terra, mas a sua oposição
ao socialismo levou-o a rejeitar os conceitos de valor e preço,
necessários para definir a renda económica quantitativamente. A
sua defesa dos banqueiros e dos juros tornou as suas
recomendações políticas ineficazes na medida em que passou
para a ala da direita libertária do espectro político, opondo-se
a investimento governamental, mas limitando-se a tributar as rendas dos
privatizadores o contrário do que Patten e a sua escola
pró-industrial de economistas defendiam, com base na teoria
clássica do valor e dos preços.
[4] "The Theory of Dynamic Economics," p. 98.
[5] Discurso de 24 de Junho de 1877. Ele utilizou o latim e disse
"Sanitas, Sanitatum" e traduziu isto como "Saneamento, tudo
é saneamento". Era um jogo de palavras com o famoso aforismo,
"Vanitas, vanitatum," "Vaidade, tudo é vaidade".
[6] William Lazonick, "Profits Without Prosperity: Stock Buybacks
Manipulate the Market and Leave Most Americans Worse Off," Harvard
Business Review, September 2014. E mais recentemente, Lazonick e Jang-Sup Shin,
Predatory Value Extraction: How the Looting of the Business Corporation Became
the U.S. Norm and How Sustainable Prosperity Can Be Restored (Oxford: 2020).
[7] Joan Farre-Mensa, Roni Michaely, Martin Schmalz, "Financing
Payouts," Ross School of Business Paper No. 1263 (December 1, 2020),
citado por Matt Stoller," How to Get Rich Sabotaging Nuclear Weapons
Facilities," BIG, January 3, 2021.
[8] Matt Stoller, ibid. Ver também o seu artigo "Crime Shouldn't
Pay: Why Big Tech Executives Should Face Jail," BIG, December 20, 2020.
[9] George Akerloff and Paul Romer, "Looting: The Economic Underworld of
Bankruptcy for Profit,"
[10] Sheila Bair e Lawrence Goodman, "Corporate Debt 'Relief' Is an
Economic Dud",
Wall Street Journal,
January 7, 2021.
[11] Desai, Radhika. 2020.'The Fate of Capitalism Hangs in the Balance of
International Power'. Canadian Dimension, 12 October. Ver também
Geoffrey Gardiner, Towards True Monetarism (Dulwich: 1993) e The Evolution of
Creditary Structure and Controls (London: Palgrave, 2006) e o grupo
póskeynesiano Gang of 8 popularizou a expressão "creditary
economics" na década de 1990.
[NR] Ver
O que significa uma recuperação económica em forma de K
A primeira parte encontra-se em
resistir.info/m_hudson/ressurgencia_rentista_27jan21_1.html
[*]
Este artigo é baseado no Capítulo 1 de
Cold War 2.0. The Geopolitical Economics of Finance Capitalism vs. Industrial
Capitalism
(Dresden, ISLET: em impressão; tradução chinesa em 2021).
Obras do autor em
Book Depository.
O original encontra-se em
michael-hudson.com/...
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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