GLENN DIESEN: Olá a todos e bem-vindos. Hoje é dia 26 de março de 2025 e a mim junta-se Michael Hudson, um nome conhecido no mundo da economia.
O mundo está a mudar muito rapidamente, como vemos. Os EUA parecem estar a adaptar-se à multipolaridade. Precisa de ter uma nova prioridade. A Europa parece ser menos prioritária, enquanto parece haver uma necessidade de fazer as pazes com a Rússia. E vemos que, do lado europeu, em vez de recuarem da guerra por procuração contra a Rússia, os europeus insistem agora em que vão continuar a guerra sem os Estados Unidos, o que é um pouco duvidoso, mas também é pior. [Estarão a usar dinheiro que não têm para construir armas que só serão produzidas daqui a muitos anos. E o objetivo de derrotar a Rússia não está claramente definido como é que isso vai funcionar. Portanto, muito disto não faz sentido e muitas pessoas têm tentado perceber o que se passa.
Como vê as narrativas económicas e políticas que conduziram a Europa a este caminho?
MICHAEL HUDSON: Bem, tem toda a razão, Glenn, quando diz que não faz sentido. E a situação atual é muito diferente. Quando comecei há 60 anos como economista, e deixei de me chamar economista e comecei a chamar-me futurista quando trabalhei com o Hudson Institute e o Futures Group, e como futurista podia-se ir além da economia. Era muito fácil explicar porque é que os países agiam da forma que agiam. Bastava dizer: “Bem, qual é o interesse próprio deles?” E se eles percebessem o que era o seu interesse próprio, então era só planear tudo e dizer: “Será que isso se cruza com o interesse próprio de outros países? Como é que os juntamos?
E, obviamente, como já foi discutido e acabou de ser dito, o interesse próprio aparentemente óbvio da Europa, especialmente da Alemanha, é ser complementar à Rússia - fazer exatamente o que estava a fazer nas últimas décadas, obter energia da Rússia e dar à Rússia o que ela precisa (bens industriais, investimento industrial para fazer os seus próprios carros e automóveis e bens de consumo).
Portanto, a verdadeira questão é: como explicar por que razão a Europa parece não estar a agir no seu próprio interesse e a tomar esta atitude belicosa da Guerra Fria que está a tomar atualmente?
Bem, já mencionou anteriormente que é tudo uma questão de narrativa, que de alguma forma existe uma falsa narrativa que se sobrepõe à realidade natural. Penso que é natural que as pessoas compreendam “o que é a realidade” e que é mais difícil fazê-las distorcer a realidade e aceitar uma narrativa falsa.
E tenho tentado perceber porque é que a Europa, e especialmente a Alemanha, e especialmente o novo líder, Merz, da BlackRock, têm esta ideia de que o futuro da Europa reside na luta com a Rússia. E acho que tenho a resposta. É que eles têm uma falsa narrativa económica que está na base de tudo, uma falsa visão do mundo. É a visão do mundo que está subjacente à forma como a zona euro foi criada. É uma falsa visão económica.
Na América, chamamos-lhe “keynesianismo militar”. A ideia é que, se gastarmos dinheiro no orçamento militar, isso vai criar investimento e emprego, e é uma forma de injetar dinheiro do Estado na economia através de défices.
Bem, o problema para a Europa é a regra da zona euro que a impede de ter um défice superior a, penso eu, 5% do PIB.
A Europa, especialmente neste momento, tem tantos programas de despesa social de que precisa (incluindo subsidiar as famílias para que possam comprar a energia que já não compram à Rússia, mas que têm de comprar aos Estados Unidos a quatro vezes o preço do GNL, o gás natural liquefeito). Como é que se contorna isto? Bem, pensem no que Donald Trump estava a tentar levar a Europa a fazer, dizendo: “Bem, têm de acreditar na estrutura, no mito de que a Rússia vai atacar a Europa e tentar recriar o antigo império soviético. Bem, sabemos que não é esse o caso, porque já nenhum país se pode dar ao luxo de invadir outro país, um país grande. Seriam necessários 10 ou 20 milhões de tropas russas. E o mais importante é que, atualmente, a Europa não tem nada que a Rússia queira particularmente.
Penso que a ideia de Merz é: “Bem, se dissermos que nos estamos a defender de um inimigo, de repente temos uma desculpa de segurança nacional para irmos além das restrições da zona euro quanto ao dinheiro que podemos gastar. E se dissermos que estamos a gastar militarmente (acho que ele falou de quase um trilião de euros para gastar no rearmamento da indústria europeia), então, de alguma forma, isso vai estimular a recuperação económica alemã, francesa, talvez até inglesa”.
Bem, a pergunta óbvia é: é realmente necessário ir para a guerra ou ter uma narrativa bélica para permitir que o governo injecte dinheiro na economia, para promover uma política keynesiana de recuperação económica? É óbvio que a Europa precisa de recuperar economicamente neste momento, está num caos. A sua indústria tem estado a fechar por causa do fim do Nord Stream e do fim da importação [de petróleo] da Rússia.
Há uma espécie de ideia que só os economistas têm, uma espécie de visão de túnel que pensa que, de alguma forma, se injectarmos dinheiro na economia, tudo será amorfo e fungível e transformado em PIB, e isso pode ser uma recuperação. (sobre as críticas ao PIB)
A única forma de explicar porque é que a Europa está a seguir uma política tão irrealista: acreditar que tem de invocar o medo de uma guerra com a Rússia por causa da Ucrânia e sabotar qualquer tentativa dos Estados Unidos de pôr fim ao seu conflito com a Rússia (para poderem prosseguir outros conflitos noutros locais), é esta visão de túnel dos economistas que pensam que, de alguma forma, é preciso entrar em guerra para que o governo gaste dinheiro na economia para a reanimar, como se isso fosse reanimar a economia.
Bem, podem imaginar o disparate deste pensamento: quase um bilião de euros para armas. Vai ser preciso muitos anos para o fazer, muitos anos de investimento. Tudo bem, esse investimento vai empregar mão de obra e expandir a economia. Mas o problema é quem é que vai comprar as armas?
Produzir armas não é como produzir máquinas de lavar roupa e carros que os consumidores podem usar. Não é como produzir bens de capital e maquinaria que os investidores possam utilizar. Não há outra utilidade para as armas senão serem destruídas por outros povos que entram em guerra uns com os outros.
E é de facto o Ocidente que está a entrar em guerra com o resto do mundo. Não creio que o resto do mundo tenha muitas necessidades de armas, exceto para se defender da nova Guerra Fria do Ocidente. Por isso, é óbvio que a Ásia e os Estados Unidos não vão comprar armas europeias para lutarem entre si.
Portanto, a Europa está a produzir todo este enorme investimento. Em vez de investir e aumentar o nível de vida e aumentar a produção de bens de consumo ou de bens de capital, está a produzir bens inúteis (armas). E é assim que pensam os economistas. Não pensam em valores de uso. Não pensam numa análise crítica, de percurso, de “o que é que precisamos para ter prosperidade?” É a economia de lixo neoliberal de uma espécie de keynesianismo bastardizado.
A única forma de explicar porque é que a Europa está a agir contra os seus próprios interesses é pensar como um economista.
GLENN DIESEN: É interessante que tenha mencionado o “keynesianismo militar”. O antigo ministro das finanças grego, Yanis Varoufakis, também avisou que este é um beco sem saída, especialmente para os alemães. Esta ideia de que basta construir armas suficientes para criar empregos e, com os empregos, há dinheiro e, de repente, temos uma economia. Mas a Europa tem problemas reais, em termos de desindustrialização. Na verdade, este é um momento muito crítico para ter estes problemas económicos, porque as indústrias do mundo estão agora em grande parte a mudar. Ou seja, com a digitalização, estamos a entrar naquilo a que muitos se referem como a Quarta Revolução Industrial, em que as tecnologias digitais têm mais capacidade de manipular o mundo físico. É um momento em que deveríamos estar a investir nas tecnologias do futuro, tentando alcançar um pouco os americanos e os chineses. Mas, em vez de nos industrializarmos, estamos [a Europa] a preparar-nos para a guerra. (Quanto aos alemães, já não conseguem construir automóveis de forma competitiva. Por isso, agora a ideia é que devem fabricar tanques). Mas não é assim que a economia funciona, como disse. Estamos literalmente a construir coisas que deviam ser destruídas.
O que é que vê na motivação de uma potência “concentradora”? Porque me ocorre que fazer com que radicais muito hawkish, como Kaja Kallas, sejam o chefe da política externa da UE (uma pessoa que diz que não acredita na diplomacia, que quer destruir a Rússia, dividi-la em pedaços - e, de facto, há cada vez mais críticas em relação à sua retórica muito vil, que vai muito além do que a UE tem um consenso em torno da linguagem que deve ser usada). Digo isto porque, entre 1870 e 1871, houve a Guerra Franco-Prussiana. Os alemães não a provocaram, mas pelo menos tiraram partido dela, porque, ao terem esta ameaça externa, conseguiram unir os Estados alemães. Considera que esta também é, penso que estamos a especular até certo ponto, uma possível motivação?
MICHAEL HUDSON: Bem, essa motivação está certamente a sair pela culatra, porque o que se vê é que a força deste “novo militarismo da Guerra Fria” germano-franco-britânico está a destruir a comunidade europeia.
Uma das razões é que, quando mencionamos a Sra. Kallas e a sua amiga von der Leyen, vemos como é que a liderança da UE pode ser tão pró-guerra, quando os eleitores da Europa, especialmente na Alemanha, mas em toda a Europa, não querem a guerra. Como é que a burocracia da UE é capaz de colocar no seu seio belicistas que têm um ódio quase traumático pela Rússia, um desejo emocional de entrar em guerra com eles, que não é partilhado pelos eleitores e pela população em geral? Bem, o resultado, penso eu, é que a certa altura já temos a Hungria, os checos, até perguntas de Meloni e de muitos franceses. Será que queremos mesmo fazer parte disto?
Como podemos continuar, é possível continuar com toda a forma política como a comunidade europeia foi estruturada, com promotores de guerra não eleitos, falcões de guerra (como Kallas e von der Leyen) responsáveis pela política externa europeia, [colocando] todos os seus colegas neoconservadores e neoliberais na liderança da UE. É como se a liderança da UE se opusesse a cada um dos países. Durante quanto tempo poderá a Europa manter-se realmente unida sem que os países comecem a retirar-se? A Hungria já disse: “Bem, sabe, vamos vetar estas taxas que nos são impostas para tentar combater a Rússia. Não queremos lutar contra a Rússia. Queremos o gás da Rússia. Queremos que as coisas voltem a ser como eram antes de 2022”. Outros países estão a dizer o mesmo.
O que descreveu é, de facto, uma divisão da Europa e parece que a única forma de a Europa escapar a esta falsa narrativa e a esta falsa economia é, de alguma forma, separar-se e começar tudo de novo com uma nova estrutura. E como é que tudo isto se tornou realidade?
Bem, foi em grande parte a influência dos Estados Unidos na forma como a Europa foi moldada, que os Estados Unidos pressionaram um projeto da Europa. Não apenas a zona euro, com as suas regras monetárias que seguem a “economia de direita da Universidade de Chicago”, mas toda a política que remonta à Operação Gladio em Itália e noutros países. Os Estados Unidos têm estado a patrocinar, através de organizações não governamentais, todo o tipo de liderança política da Europa atual. Foi assim que pessoas como Baerbach e os Verdes foram promovidos. Pessoas que pensamos: “Como é que estas pessoas podem ter subido e conseguido tantas credenciais?” E, bem, muito disso deve-se às manobras dos EUA para fazer na Europa o que fizeram ao colocar Tony Blair, por exemplo, em Inglaterra. A ideia é encontrar Tony Blairs para a Alemanha, França, Itália e outros países, que sejam muito leais à política dos EUA e à Guerra Fria.
E essa lealdade aos EUA é o que está a dividir a Europa hoje.
Bem, já viram os políticos europeus que dizem: “Não, estamos a separar-nos dos Estados Unidos. Os Estados Unidos querem a paz, ou pelo menos Trump quer a paz com Putin, mas nós certamente não queremos. E não vamos gastar estes 5% do nosso PIB em armas militares, na compra de armas americanas, como Donald Trump esperava. Vamos gastá-los na compra de armas alemãs”. E há uma tentativa de usar esse anti-americanismo para reforçar o que eles acham que é uma forma de solidificar os países europeus, mas não está a re-solidificar.
Sobretudo à medida que a situação económica se agrava: à medida que a Alemanha se desindustrializa e perde a sua indústria pesada, a sua indústria de fertilizantes, todas as indústrias que estavam dependentes da importação de matérias-primas da Rússia, e à medida que a Europa acorda com os Estados Unidos em desligar-se da China/comércio com a China. Não é exatamente no seu próprio interesse, mas é na ideia do seu próprio interesse com base nesta falsa narrativa - como uma falsa narrativa económica e também como uma falsa narrativa política. E esse é o problema.
E, dado o papel dos meios de comunicação social na Alemanha e noutros países, não se consegue ver muito do outro lado da questão. E acabamos de ver na Alemanha [a falar de] proibir a AFD, a Alternativa para a Alemanha, tal como noutros países, tal como a Roménia está a tentar proibir os candidatos anti-guerra. Estamos a ter uma suspensão da liberdade. E também estamos a fazer com que a Alemanha proíba os defensores da paz em Gaza, os defensores de Gaza, ou simplesmente os alemães que dizem: “Não queremos genocídio, queremos paz”. Tudo isto está a ser proibido, [incluindo] visitantes que vêm fazer discursos ou discutir a guerra em Gaza são rejeitados.
Estamos perante a antítese de tudo o que a história de capa da União Europeia, de prosperidade e democracia, era suposto promover.
GLENN DIESEN: Estou a pensar que parte do problema dos europeus é também o facto de terem ficado presos a narrativas. Falei recentemente com George Beebe, o antigo diretor da CIA para a análise da Rússia. E ele escreveu um artigo interessante em que ia um pouco na mesma direção, em que os europeus se fecharam num canto com esta ideia de que foi uma invasão em grande escala não provocada para varrer a Ucrânia do mapa, que [Putin] é um novo Hitler, que está a tentar restaurar a União Soviética. Todas estas narrativas têm sido contadas.
E é interessante porque esta tem sido a principal força de Trump. Ele parece ser capaz de ignorar tudo, ignora as narrativas chave. Começa a empurrar os interesses para onde os outros políticos ficam presos a estas narrativas comuns.
Agora, o que é fascinante com os europeus é que eles foram puxados em grande medida juntamente com Biden. Porque, lembrem-se, durante todos estes anos, os europeus estavam bem cientes de que todo este expansionismo da NATO, especialmente na Ucrânia, era uma linha vermelha, algo que provavelmente desencadearia uma guerra.
Mas embarcaram no comboio de Biden, que era tão anti-russo quanto possível. E penso que os europeus também se prepararam. Ou seja, “fizeram” Kaja Kallas (mais uma vez, não é a ferramenta mais brilhante do barracão), mas “é uma líder em tempo de guerra”, disseram, “é muito agressiva em relação à Rússia, é disto que precisamos”.
E agora é muito difícil conduzir o navio. Como também sugeriu, há uma falta de meios de comunicação social independentes na Europa, atualmente. Por isso, há muito pouca capacidade para desafiar a narrativa dos meios de comunicação social com factos reais. É muito difícil dar a volta à situação.
Mas, a dada altura, é preciso forçar a mudança, não é? Porque, enquanto muitos europeus têm agora esta grande ambição de aprender a viver sem os americanos, Kaja Kallas declarou que “o mundo, o mundo livre, precisa de um novo líder, por isso acabámos com a América”. (Ela fala muito bem, mas não é primeira-ministra nem nada do género). [Mas temos Estados-nação independentes na Europa e nem todo o continente está pronto para romper com os americanos, especialmente os britânicos. (Eles parecem ser mais agressivos em relação à Rússia, mas também gostariam de ser o principal parceiro da América). Por isso, haverá grandes fragmentações neste domínio. E também me pergunto, a Polónia é um dos países mais anti-russos que temos no continente, mas se a Alemanha se vai armar até aos dentes novamente, será que a Polónia quer divorciar-se dos Estados Unidos, que é uma espécie de “cobertor de segurança” quando está presa entre os alemães e os russos. Na verdade, pode acabar numa situação horrível para os europeus, em que os americanos e os russos se juntam para pressionar os europeus por não se alinharem na questão da Ucrânia. Mas quero perguntar-lhe sobre a viabilidade de toda esta situação, porque obviamente a Europa ou os europeus estão em pânico.
Vemos que a França, a Alemanha e a Grã-Bretanha estão a armar-se. O Financial Times escreveu recentemente que o principal desafio agora era converter os Estados europeus de bem-estar social em Estados de guerra, sugerindo que poderiam precisar de uma dose pesada de propaganda de guerra para conseguir o consentimento do público. Quais são as considerações políticas e económicas? Acha que isto é viável?
MICHAEL HUDSON: Um Estado de guerra não é um Estado, como o nome indica, que vai proporcionar bem-estar à população em geral. Então em que é que eles vão votar? Vão votar no seu próprio interesse, que é um melhor nível de vida? Ou vão dizer: “Vamos pagar preços mais elevados pelo gás, pela eletricidade e pelo aquecimento das nossas casas. Vamos ter um nível de vida muito mais baixo, mas vale a pena só para combater a Rússia”.
Vai haver um conflito entre a narrativa de “precisamos de guerra para salvar o mundo” e a realidade de alguém que está a fazer um grande sacrifício. E também a realidade da resposta de outros países, especialmente da França e da Inglaterra, que são os gatilhos perigosos aqui. O Presidente Putin disse: “Muito bem, eles vão ser mais activos no fornecimento de mísseis à Ucrânia, mísseis de longa distância, que podem atingir o território russo.
Não vamos fingir que toda esta luta na Ucrânia tem a ver com a Ucrânia. O que está em causa é a NATO e, por detrás da NATO, os Estados Unidos querem desmembrar a Europa e dividir a Europa. E como sabemos que a luta [é com] a NATO, e na Europa, que é liderada por Macron em França e agora Starmer na Grã-Bretanha, se um míssil feito pela França ou pela Inglaterra atingir a Rússia, vamos responder não contra o território ucraniano que o lançou, mas contra o país que fez o míssil. [Por isso, vamos responder contra a Grã-Bretanha”.
Será Londres? Será algum território de fabrico britânico? Será Paris ou uma das fábricas de produção militar parisiense?”
Portanto, existe a possibilidade de uma resposta russa que se aperceba de que é apenas uma charada fingir que todos estes combates são na Ucrânia. É esse o ponto que Putin e Lavrov têm vindo a defender nas suas discussões com os americanos. Estão a dizer: “Olha, esquece a Ucrânia. Seria melhor nem sequer discutirmos o assunto neste momento. Vamos falar sobre as raízes da nova Guerra Fria. Falemos do facto de que quando a União Soviética se desmantelou em 1991, a NATO também deveria ter sido desmantelada”. Foi então que Putin e os russos disseram: “talvez devêssemos aderir à NATO e ficarmos todos juntos”.
Querem voltar atrás e tentar desfazer todo este salame que divide a Rússia pouco a pouco e lidar com a estrutura económica subjacente.
É a isso que os governos europeus se opõem. Se são contra a reestruturação, o regresso e a desestruturação de todo o aparelho da Guerra Fria (aparelho económico e aparelho político) que foi criado desde 1991, isso não pode ser feito sem problemas. Tem de desencadear [algum tipo de] consciência. Tem de haver uma massa crítica da população que perceba qual é o problema. Bem, estamos a ver isso até certo ponto na Alemanha, mas, na verdade, do meu ponto de vista, o único partido que tem uma economia baseada na realidade é o grupo de Sarah Wagenknecht. E ela mal conseguiu atingir o ponto de corte de 5% para entrar no governo.
Portanto, é como se a Europa estivesse numa situação de pré-colapso, numa situação de pré-crise. Mas, no final, não se pode manter uma narrativa falsa quando a realidade se torna cada vez mais forte. E a distância entre a realidade e a “narrativa” torna-se tão grande que as pessoas acabam por perceber que “isso não funciona”.
O que é preciso é apresentar uma alternativa. E há alternativas políticas, sim, não vamos lutar com a Rússia, mas não houve uma alternativa económica para saber como, se não lutarmos com a Rússia, como vamos restabelecer a prosperidade na Alemanha e nos outros países europeus? Se não for através da produção de mais bens militares, como é que vamos reestruturar a economia de uma forma melhor do que a forma como a zona euro foi inicialmente criada? Sem uma discussão económica sobre esse tipo de alternativa, estamos a ver a Alemanha e a Europa a entrarem num beco sem saída que está a ficar cada vez mais apertado e que, a dada altura, terá de explodir.
As verdadeiras questões são:
Será que a Europa tem mesmo de ir para a guerra para poder gastar dinheiro na criação de economia para empregar mão de obra e, de alguma forma, reindustrializar-se?
Como pode a Europa reindustrializar-se e fabricar armas sem obter gás, energia, petróleo e outras matérias-primas da Rússia e sem negociar com a China?
Como pode reindustrializar-se se está a isolar-se do resto do mundo, que está a crescer muito mais rapidamente?
E mesmo em relação aos Estados Unidos, como é que pode avançar sozinho quando já se desindustrializou tanto? Quando já está isolado? É o que parece ser todas as suas potenciais fontes naturais de força que agora perdeu.
Não há forma realista de explicar isto, exceto que têm um conjunto de falsas suposições e ideias falsas sobre o funcionamento de uma economia, ou mesmo de uma sociedade.
GLENN DIESEN: Parece haver uma certa distorção da imagem da própria Europa em relação ao resto do mundo, porque vemos atualmente a UE a ser bastante agressiva em relação à China. E, de repente, os europeus gostariam de iniciar uma cooperação. Convidaram Xi Jinping para vir a Bruxelas e ele não vem. E parte da razão é a forma como os europeus se têm comportado. Mas o pressuposto parece ter sido, sabe, jogar duro com os chineses e depois oferecer-lhes a cenoura e convidá-los para virem cá e eles virão a correr.
Mas parece que isso já não está a acontecer. Penso que é muito difícil para os europeus adaptarem-se a este novo mundo porque, mais uma vez, foram quase 500 anos de um mundo muito centrado na Europa, onde os europeus, nós, fomos o sujeito. O resto do mundo era o objeto. Nós é que organizámos o mundo à nossa volta. E agora, de repente, o mundo virou-se um pouco contra si próprio. Já não temos um lugar à mesa. Em vez disso, encontramo-nos na ementa. É um pouco estranho de se ver.
Mais uma vez, é por isso que a guerra da Ucrânia é tão interessante, porque agora temos os americanos e os russos a negociar efetivamente uma paz na Europa, a mover as peças e os europeus descobrem que não têm um lugar à mesa. Eles são as novas peças.
Parece que esta seria a altura ideal para rever alguns dos erros que cometemos depois da Guerra Fria. Porque, depois da Guerra Fria, muitos países europeus (e também a América, já agora) perceberam que a redivisão do continente e o regresso à política de blocos iria reavivar a Guerra Fria. E, embora alienasse e criasse conflitos com os russos, pelo menos cimentaria a presença da América na Europa.
Mas agora que os Estados Unidos estão a planear reorientar-se, estão a dizer muito abertamente “vocês (a Europa) já não são uma prioridade”. Resta-nos o conflito com a Rússia. E isso levanta a questão: qual é o objetivo disto?
Mas reparei numa coisa que disse: utilizou a palavra “colapso”.
Não vejo isso como um exagero, porque se vamos ter este plano económico, que não funciona, (ou seja, isolarmo-nos de todos os centros de poder e depois armarmo-nos), [temos] que fazer com que a população aceite a ideia de que os bons tempos acabaram, não há mais bem-estar e prosperidade porque agora temos que apertar o cinto para combater a Rússia.
Para vender esta história, é preciso muita propaganda. Não vai haver capacidade para prosseguir os interesses nacionais básicos. Vai haver mais dissidência política, que tem de ser minada. A narrativa tem de ser elevada acima dos factos. E a economia não funciona. A política já não serve. E, como disse, a realidade acabará por se impor e abrir buracos na narrativa.
E então, acha que é possível que, se não a Europa, pelo menos a UE possa caminhar para um colapso?
MICHAEL HUDSON: Bem, estamos numa situação de pré-colapso. Antes de haver um colapso, vai haver uma queda lenta. A tendência atual significa que os padrões de vida, os lucros industriais e o emprego estão a piorar lentamente. Não pode haver um crash até que haja uma situação revolucionária, e uma situação revolucionária é ter uma alternativa. E sem uma alternativa, não há crash, há apenas um crash lento, um aperto lento, que vai descendo lentamente à medida que a economia se deteriora.
Mencionou [há pouco] que a Europa quer ser dura com a China. Não se pode ser duro com a China. Não se pode ameaçar a China ou a Rússia, porque não há nada que a China ou a Rússia precisem na Europa. É isso que é realmente chocante para a mentalidade europeia, o facto de o mundo se poder dar bem sem a Europa.
Putin e Lavrov disseram: “Esperávamos ter uma relação simbiótica com a indústria e a tecnologia europeias e com economias complementares. Mas apercebemo-nos de que isso não vai funcionar, por isso mudámos o foco para leste, para a Eurásia e para os BRICS. Percebemos que já não precisamos da Europa, agora que a Europa perdeu o atrativo industrial que tinha antes do Nord Stream em 2022, não há realmente nada que tenha para oferecer. E nós, [a Rússia], não queremos certamente apoderar-nos dela, porque seria um albatroz para quem quer que tome a Europa como um protetorado sob as suas asas. Nós [a Rússia] não queremos isso”.
É muito difícil, penso eu, para os europeus perceberem que já não são necessários, que perderam o seu lugar no mundo. Penso que a maioria dos políticos de todos os países tenta fazer o que Trump disse: “Tornar a América grande novamente”. Na Europa, eles dizem: “Bem, vamos tornar a Europa grande de novo”. Ou: “A Europa é óptima”. Ou: “Vamos recuperar a nossa grandeza”.
Em vez disso, tomaram medidas que parecem tão irreversíveis que não podem fazer nada. E o que criaram foi, não direi uma contra-narrativa por parte da Rússia e da China, porque as narrativas são normalmente falsas visões artificiais do mundo, mas uma contra-realidade. Na semana passada, o Ministro dos Negócios Estrangeiros Lavrov disse: “É assim que a Rússia e os nossos aliados vêem a Europa”. E é uma breve citação:
“Nos últimos 500 anos, quando o Ocidente foi mais ou menos formado na forma em que sobreviveu até hoje, todas as tragédias do mundo tiveram origem na Europa, ou aconteceram graças à política europeia, ao colonialismo, às guerras, aos cruzados, à Guerra da Crimeia, a Napoleão, à Primeira Guerra Mundial, a Adolf Hitler, tudo isso veio da Europa”.
O Presidente Putin, à sua maneira, disse que tudo isto remonta ao século XI, quando o Grande Cisma da Igreja Romana se separou da Igreja Ortodoxa Oriental em Constantinopla. E os romanos disseram: “Temos de dominar a cristandade. Temos de criar uma Europa unida sob o controlo de Roma.”
A primeira coisa que fizeram, depois de 1051, quando houve o Grande Cisma, foi começar a dizer: “Como vamos derrotar e destruir a Turquia, Constantinopla e todas as áreas que a Igreja Ortodoxa controlava?”
A resposta foi que contrataram senhores da guerra normandos na Europa.
A resposta foi que contrataram senhores da guerra normandos na Europa. O primeiro senhor da guerra que contrataram foi na década de 1070, quando se dirigiram a um deles e disseram: “Bem, vamos dar-vos o Sul de Itália e a Sicília, que neste momento é uma área bizantina. Se te livrares dos bizantinos e tornares essa região católica, abençoar-te-emos como rei”.
Depois dirigiram-se a Guilherme, o conquistador de Inglaterra, e disseram: “Bem, se conquistares a Inglaterra neste momento, ela não nos está a dar muito dinheiro. Por isso, abençoamos-te como rei de Inglaterra se jurares fidelidade a Roma”.
E todas as Cruzadas foram realmente uma cruzada para destruir a Igreja Ortodoxa Grega em Espanha, no sul da Itália, na área dos Balcãs. Em todas as áreas, a Igreja Romana tinha senhores da guerra assumindo o controlo.
Para financiar as despesas militares, a Igreja aboliu a sua oposição à usura. Criou a banca internacional para financiar os empréstimos de guerra.
Podemos ver como toda esta tentativa de integrar a Europa, desde o início, foi uma alternativa ao que era o centro económico da época, o centro próspero, que era Constantinopla e a sua prosperidade, que se espalhava mais para leste. Nesse sentido, os russos estão a olhar para a Europa e a dizer: “Pensámos que poderia haver paz, mas não há apenas esta diferença religiosa subjacente (que Putin parece considerar muito importante), mas há também uma diferença cultural: nós, tal como a China, estamos a tentar estabelecer alianças com outros países através de ganhos mútuos, de situações em que todos ganham. O que podemos oferecer-vos em troca da integração da vossa economia e da vossa política e, consequentemente, do vosso alinhamento político e militar connosco?
A forma ocidental, como se vê com Donald Trump, é exatamente o oposto. Penso que Trump está a fornecer um modelo que, receio, a Europa está a seguir.
Trump está a dizer: “Vamos impor tarifas e sanções a todos os outros países do mundo, sanções terríveis a todos os países. Estamos a dizer que podemos destruir a vossa economia”. E os outros países, o México, a França e o Canadá, para começar, estão a dizer: “Bem, não façam isso”.
Então Trump dirá: “Ok, se não vos destruirmos, o que vão fazer que nos beneficie?” Ele fez o mesmo com os escritórios de advocacia nos Estados Unidos, o mesmo com as universidades. Vamos retirar-vos todo o vosso [financiamento] se não seguirem uma política sionista para nós. E eles dirão: “Bem, o que é que temos de fazer para recuperar o financiamento de modo a podermos fazer investigação e desenvolvimento?” E Trump está a definir as políticas neocon que eles têm de seguir. A Universidade de Columbia liderou a rendição.
Penso que esta é a mentalidade que a Europa está a tentar imitar, mas não tem nada com que ameaçar os outros países.
Não pode ameaçá-los com sanções porque os outros países podem dizer: “Muito bem, não negoceiem connosco. Não precisamos de vocês. Somos auto-suficientes por nós próprios”.
Todo o resto do mundo está a tentar ser autossuficiente, e quase todas as regiões estão a tentar ser auto-suficientes para não dependerem de outros países, para poderem seguir os seus próprios interesses.
Mas a Europa destruiu a sua própria autossuficiência com o Nord Stream e com as sanções contra a Rússia, e ao confiscar os 300 mil milhões de dólares da Rússia que estavam na Bélgica e no Euroclear.
A Europa isolou-se do resto do mundo. Como é que pode ter alguma coisa a ganhar militar ou politicamente, mesmo que seja militarmente bem sucedida? O que é que pode ganhar com o resto do mundo ao isolar-se, quando todo o resto do mundo está dividido em novos agrupamentos geográficos regionais? É como se a Eurásia Ocidental, a Europa, fosse uma espécie de zona abandonada. Não direi que é uma cintura de ferrugem, como as cidades industriais abandonadas dos Estados Unidos, mas é mais do que isso.
O que pensava ser a sua identidade nacional, a sua compreensão histórica, a sua ideia de que é um líder político, moral e intelectual do mundo tornou-se uma fantasia. Como é que se pode curar psicologicamente esse tipo de ferida auto-infligida que tem varrido a Europa como uma doença nos últimos anos?
GLENN DIESEN: Sim, esta ferida auto-infligida tornou-se quase uma expressão de solidariedade ou de virtude, que está disposta a sacrificar todos os interesses nacionais para enfrentar o nosso adversário maléfico. Penso que temos de substituir alguns dos nossos cientistas sociais e políticos por psicólogos, porque isto está a tornar-se uma coisa muito estranha de observar.
Mas concordo com este enfoque na diversificação porque penso que há um aspecto que se perdeu, até certo ponto, na última década. Foi quando a Rússia começou a organizar a sua economia em direção ao Leste, intensificando-a desde 2014.
Muitos viram isso como uma tentativa de elevar o seu próprio valor de mercado para a Europa, de modo a ter mais poder de negociação para se integrar na Europa em pé de igualdade, ou para se juntar a um bloco anti-europeu. Mas todas as hipóteses possíveis eram muito centradas na Europa. Ou seja, como é que a Rússia quer reorganizar a sua posição em relação à Europa com base nisto?
Mas a ideia principal para os russos é que querem diminuir a importância da Europa, [continuar] a ter relações comerciais com ela, mas que esta deixe de ser tão importante. A Rússia não deveria ter de ser pró-europeia ou anti-europeia. Nós [a Rússia] apenas não deveríamos ter de nos concentrar na Europa tanto como fizemos no passado. E penso que isto é bastante caraterístico.
Vemos isso agora na esfera política, na forma como se estão a organizar e, claro, na reorganização da economia para Leste. E isto verifica-se em todas as esferas. Vê-se isso [com] a tecnologia, as indústrias, com os novos corredores de transporte por terra e mar, os sistemas de pagamento, os novos bancos, o comércio de moedas, o estabelecimento de novas bolsas de mercadorias, os sistemas de seguros. É bastante amplo também no domínio económico.
Mas mencionou a cultura, porque durante a Guerra Fria, pelo menos no final da Guerra Fria, ainda havia hostilidade entre os nossos governos. Mas entre o público soviético e os russos, havia um sentimento de que o modo de vida/estilo de vida ocidental era bastante atrativo. Atualmente, isso já não existe. Já não querem remodelar, moldar os seus países como o Ocidente. Por isso, penso que isso é muito recente.
Mencionou outra coisa que achei interessante, que é o aspeto económico, a UE, que começou a roubar as reservas nacionais russas.
Bem, até agora, eles têm tirado os lucros dessas reservas, sugerindo que não há problema, que não é roubo se as tirarem. Mas agora fala-se em confiscar a totalidade dos 300 mil milhões. E há quem esteja a sugerir que, num futuro acordo de paz, a Rússia deveria ter de abdicar desse dinheiro, talvez transferindo-o para um fundo de reconstrução.
Mesmo que os russos aceitassem esse fundo de reconstrução, haveria pressão [para que] recebessem algo em troca. Seja como for, isto já é um roubo. Não estão apenas a congelar fundos, o que também é devastador para a confiança, mas há de facto um roubo.
Como é que o mundo está a reagir a esta situação? Quero dizer, o ouro está a subir, isto é uma consequência disso?
Ou se [hipoteticamente] fizesse um discurso para a União Europeia, qual seria o seu principal aviso contra o que foi feito aqui? Porque isto é verdadeiramente dramático, nunca tinha sido feito antes. E, mais uma vez, penso que os europeus se deixam levar pelas suas próprias narrativas e moralidades: a Rússia atacou a Ucrânia, por isso é justo que tenham de pagar pela reconstrução. Mas isto nunca aconteceu antes.
Os Estados Unidos da América e os europeus também invadiram outros países e a ideia de que o resto do mundo deve confiscar o “nosso” dinheiro e entregá-lo aos países que invadimos... Isto irá diminuir a confiança em todo o sistema financeiro internacional. Como é que vê o impacto disto no mundo?
MICHAEL HUDSON: Bem, Glenn, começa por mencionar os opositores da Europa, e esse é o problema.
A Europa vê todo o resto do mundo como se estivesse a negociar com um adversário. Pense em como a retórica da diplomacia europeia é diferente da de Putin na Rússia. Putin refere-se sempre aos outros países como seus parceiros, como se a única forma de podermos ter relações voluntárias uns com os outros fosse o facto de cada um de nós ganhar. Portanto, somos parceiros, não somos adversários.
A Europa seguiu, de facto, a visão de Donald Trump, tal como Trump diz, a América tem de ser o “ganhador” em qualquer transação. A Europa tem de ser o ganhador, porque o resto do mundo é visto como um adversário pela Europa. E com essa psicologia, com essa atitude, que é exatamente aquilo de que Lavrov estava a falar, estão condenados ao fracasso. E, como se vê, os 300 mil milhões de dólares que o EuroClear apreendeu.
Imagino que Putin tenha uma resposta muito boa. Ele vai dizer: “Bem, claro que vamos gastar os 300 mil milhões na reconstrução. Não, estamos muito contentes com isso. Vamos fazê-lo, houve uma enorme destruição de edifícios civis e de território em Lugansk, em Donetsk e nas outras províncias russas, as partes da Ucrânia que agora se juntaram à Rússia. Sabemos que serão necessários 300 mil milhões de dólares para a reconstrução. Assim, vamos fazer isso.
Infelizmente, não vemos qualquer razão para gastar esses 300 mil milhões em empresas de construção europeias ou em empresas industriais europeias para ajudar a reconstruir essas áreas, porque vocês caíram na obsolescência económica. (Não tinha de ser obsolescência tecnológica, embora [a Europa] esteja muito atrás da Ásia nesse aspeto, mas é realmente obsolescência económica). E, muito francamente, cobram demasiado caro devido à forma como privatizaram e neoliberalizaram a vossa economia.
Por isso, sim, vamos gastar os 300 mil milhões, mas acho que vamos ter outros países a participar, porque não temos uma população industrial suficientemente grande para o fazer. Vamos contratar asiáticos e outras pessoas de outras áreas para fazer essa construção, mas não tenham medo. Estes 300 mil milhões serão gastos na reconstrução dos ataques às zonas civis que os europeus e os americanos destruíram ao apoiarem o regime neonazi na Ucrânia”.
O que pensa desta retórica?
GLENN DIESEN: Parece-me familiar. É o que penso também, é o que os russos querem gastar em Donetsk, Lugansk, Zaporozhye, Kherson.
Além disso, se olharmos para todos os problemas dos europeus que se isolaram destes outros centros de poder, primeiro os russos, depois os chineses, e depois queimaram muitas pontes. E, nesta altura, os americanos decidem que estão mais ou menos a deixar de dar prioridade à Europa. E agora, claro, as coisas já estão suficientemente más, pois estamos a pagar muito dinheiro pela energia, o que provoca a desindustrialização, então o objetivo é apenas construir armas e, de alguma forma, essa será a solução.
Mas o que piora as coisas é que, mesmo que a guerra na Ucrânia termine amanhã, a reconstrução do país vai ser uma enorme confusão nos próximos anos. E os americanos parecem, bem, pelo menos Trump, parece estar a lavar as mãos com isto e a entregá-lo aos europeus. Assim, os europeus vão ter uma grande confusão para financiar nos próximos anos. E é muito difícil ver como é que tudo isto não pode resultar numa crise maciça e até, como disse, num colapso.
Mas a minha última pergunta é sobre as alternativas, porque à medida que o velho sistema, ou o antigo, morre, os países querem procurar alternativas. A Europa ainda não parece ter alternativas, mas o resto do mundo tem.
Parece que estão a olhar para instituições como os BRICS para reorganizar a cooperação tecnológica e industrial, para ter conetividade física com corredores e, claro, conetividade financeira. Portanto, estão a fazer tudo isto, e parece estar a intensificar-se no âmbito dos BRICS.
Mas com Trump, apesar de toda a conversa sobre multipolaridade, não gosta da ideia de desdolarizar os BRICS. Este comboio já saiu da estação, ou acha que Trump o pode parar? Porque ele ameaçou isso, disse: “Os BRICS já estão praticamente acabados, porque ameacei impor-lhes tarifas se não usarem o nosso dólar”. Mas isto não é capaz de avaliar o problema principal.
A razão pela qual estão a diversificar através da instituição BRICS é porque já não confiam no dólar americano, porque todas as alavancas económicas do poder podem ser transformadas em armas.
E ao ameaçar tornar ainda mais armada a dependência dos EUA a fim de mantê-la, certamente ele deve estar ciente dessa contradição de que ameaçar outros países com sanções apenas os convencerá da necessidade de diversificar e dissociar. No entanto, a América não é um país fraco, tem muito poder económico. Acha que Trump consegue travar esta situação ou é demasiado tarde?
MICHAEL HUDSON: Bem, a América tornou-se uma economia fraca, apesar de não ser um país fraco. Tem a bomba atómica. Tem influência política para levar outros países a impor sanções contra países que não seguem a política americana.
Mas o facto é que Trump e os Estados Unidos estão numa posição quase tão fraca como a Europa. Não há nada que tenham para oferecer a outros países, exceto: “não vos faremos mal se fizerem o que vos dissermos para fazer. O que faremos por vós é não vos bombardear”. Bem, isso não é oferecer muito.
Falou da Ucrânia na questão seguinte, e o que é que se passa com a reconstrução da Ucrânia? O que é que resta da Ucrânia? Não será muito. Ninguém a vai reconstruir. Ninguém tem o dinheiro e ninguém se preocupa, tal como parece não se preocupar com Gaza.
A Ucrânia contraiu enormes dívidas ao Fundo Monetário Internacional, à Europa, a outras pessoas, a outros países e a instituições oficiais, e não pode pagar. A Europa não vai pagar. Os Estados Unidos não vão pagar. A Rússia não vai certamente pagar. A Rússia vai preocupar-se em reconstruir a parte da Rússia que antes era a Ucrânia. Portanto, isso é o que está a acontecer.
E, mais uma vez, não há nada que a Rússia ou a China precisem dos Estados Unidos ou da Europa. Todas as semanas, no Financial Times, há um alemão ou um europeu que diz “é injusto que a China exporte mais para nós do que nós exportamos para ela”. E a resposta da China é sempre a mesma: “Bem, gostávamos de importar mais de vós.
Por exemplo, aquela empresa holandesa que está a fabricar o equipamento de litogravura, sabe, 10 ou 20 milhões de dólares por máquina. Gostaríamos muito de a comprar. Recusa-se a negociar connosco porque está a seguir as sanções americanas. Por isso, não estão dispostos a vender-nos nada do que queremos. Porque, mais uma vez, estão a ver-nos como inimigos da América e apostaram tudo no lado americano. E é por isso que o nosso comércio está mau”.
Bem, os europeus voltam a ter uma narrativa que diz: “Bem, se importarmos mais de outro país, isso é dependência”.
Toda a ideia do comércio livre, durante dois séculos, tem sido a de negociar para ganhar dinheiro. A teoria dos ganhos do comércio é a base da economia internacional.
Bem, os políticos europeus dizem que não há ganhos com o comércio. Qualquer comércio é apenas uma dependência que permite que outros países interrompam o comércio se nos quiserem prejudicar. Bem, é claro que a Rússia nunca parou o comércio com a Europa, foi a Europa que parou o comércio com ela.
Por isso, outros países têm medo de negociar com a Europa ou com os Estados Unidos para estabelecer uma dependência que permita a Trump, na América, ou a Mertz, na Europa, dizer: “Muito bem, vamos tentar desestabilizar a vossa economia parando as nossas exportações para vocês, de que precisam. E vamos interromper as vossas cadeias de abastecimento”. Nenhum outro país está disposto a deixar que as suas cadeias de abastecimento se baseiem na Europa ou nos Estados Unidos. As suas cadeias de abastecimento baseiam-se umas nas outras. Por isso, as cadeias de abastecimento que estão a ser divididas estão na Europa e nos Estados Unidos, sem as tarifas de Trump neste momento.
Portanto, estamos a assistir a uma crise económica nos Estados Unidos causada pela ideia de Trump de que, de alguma forma, é possível isolar os Estados Unidos e reindustrializá-los quase de um dia para o outro, como se ele pudesse criar fábricas nos três anos que restam da sua administração, em vez de num período de planeamento de 10 anos. Nem sequer vou entrar no mérito dos problemas dos Estados Unidos, mas os Estados Unidos e a Europa, em conjunto, colocaram-se numa situação de que não conseguem sair.
E é por isso que é impossível fazer uma previsão de como a Europa e os Estados Unidos vão atingir os seus interesses próprios quando não compreendem quais são os seus interesses próprios.
Como é que se pode prever e projetar o futuro de um continente, a Europa ou os Estados Unidos, que não compreende o funcionamento da economia, nem os seus interesses próprios, e que se debate com dificuldades?
É isso que se está a ver neste momento. E há muitas possibilidades de nos debatermos. A abordagem dispersa de Trump é, penso eu, o que se vai ver na Europa, tentar isto, tentar aquilo, mas é apenas uma tentativa sem qualquer ideia de como criar uma economia produtiva para fazer na Europa o que a China fez para reconstruir a sua economia, ou o que a Rússia está a tentar fazer para reconstruir a sua economia. É isso que é tão surpreendente em tudo isto. Não faz sentido, numa abordagem materialista da história.
GLENN DIESEN: Acho que este é um problema do facto de termos tido um momento unipolar. Ou seja, o mundo inteiro era excessivamente dependente do Ocidente coletivo, enquanto o Ocidente era menos dependente de qualquer Estado ou região, o que significava que qualquer preocupação com a dependência económica como arma era apenas um problema para os outros. Agora [estão] a acordar para esta realidade e não sabem como reagir.
Mais uma vez, gostaria que reavivássemos algumas das ideias de Alexander Hamilton ou Friedrich List ou Sergei Vitti, alguém que definisse a industrialização e o poder económico mais como uma parte intrínseca da independência política. Mas, mesmo assim, não é preciso isolarmo-nos do mundo. O suficiente é diversificar, ter uma variedade de parceiros. E é isso que o resto do mundo está a fazer, mas nós não.
E faço sempre esta observação porque é bastante chocante o que está a acontecer na Europa.
A ideia principal é que os Estados Unidos estão a enfraquecer e estão a ir para outros lugares. Por isso, uma política racional e sensata seria diversificar os laços. Isto é, sim, manter uma mão estendida para os americanos, mas também estender a mão aos russos, chineses e outros centros de poder e diversificar, e também encontrar uma forma de procurar algum poder de negociação colectiva com base no interesse nacional partilhado dentro do bloco da UE.
Mas, em vez disso, estamos rodeados por estes anões políticos que não conseguem aceitar que avançámos e que o mundo está a mudar.
Por isso, estão a tentar mostrar o seu valor aos Estados Unidos, subordinando-se ainda mais, fazendo tudo o que os Estados Unidos dizem e esperando que isso convença os Estados Unidos de que a Europa ainda é um parceiro importante para que os Estados Unidos não nos abandonem.
Mas, mais uma vez, a América tem menos recursos e está a deslocar esses recursos e a concentrar-se noutros locais. Mas a vontade de aceitar a realidade desapareceu completamente. E, mais uma vez, isto não é um exagero. Vejo a liderança política na Alemanha a acusar, a dizer, “bem, a razão pela qual temos problemas económicos é porque os russos nos cortaram o fornecimento de energia”. Não foram eles. Foram os alemães que o cortaram. E como é que é possível que eles se safem com isto? Além disso, tentou-se atribuir a responsabilidade do Nord Stream aos russos. Depois descobrimos que não foram os russos, e agora já ninguém quer falar sobre o assunto, porque já não há boas narrativas. É uma grande confusão.
Penso que o primeiro passo para consertar a Europa e o Ocidente político seria começar por abordar, bem, restaurar alguma razão e racionalidade, porque penso que perdemos isso há algum tempo, quando nos deixámos enredar nas nossas próprias narrativas.
Seja como for, Michael Hudson, já o demorei demasiado tempo. Por isso, sim, mais uma vez, muito obrigado pelo seu tempo. É sempre um grande prazer falar consigo.
MICHAEL HUDSON: Bem, espero que sejas bem sucedido, Glenn, na tentativa de levar o conceito de racionalidade e realidade ao resto da Europa.
GLENN DIESEN: Como realistas políticos, o pressuposto é sempre o Estado racional. Por isso, a base da teoria política está agora a faltar. É uma altura muito preocupante. De qualquer forma, obrigado mais uma vez.
MICHAEL HUDSON: Sim, obrigado por me receber.