Os verdadeiros adversários dos EUA são os seus aliados, europeus e outros

– O objetivo estado-unidense é impedi-los de negociar com a China e a Rússia

Michael Hudson [*]

Cartoon de Hurwitt.

A Cortina de Ferro das décadas de 1940 e 1950 era ostensivamente concebida para isolar a Rússia da Europa Ocidental – para afastar a entrada da ideologia comunista e da penetração militar. O regime de sanções de hoje é voltado para dentro, para impedir que a NATO dos EUA e outros aliados ocidentais abram mais o comércio e investimentos com a Rússia e a China. O objetivo não é tanto isolar a Rússia e a China, mas sim manter esses aliados firmemente dentro da própria órbita económica dos EUA. Os aliados devem privar-se dos benefícios da importação de gás russo e dos produtos chineses, comprando GNL dos EUA a preços muito mais elevados e outras exportações, culminando por mais armas dos EUA.

As sanções que os diplomatas dos EUA insistem que seus aliados imponham contra o comércio com a Rússia e a China visam ostensivamente impedir uma escalada militar. Mas uma tal escalada não pode realmente ser a principal preocupação russa e chinesa. Eles têm muito mais a ganhar oferecendo benefícios económicos mútuos ao Ocidente. Assim, a questão subjacente é se a Europa descobrirá a sua vantagem em substituir as exportações dos EUA por fornecimentos russos e chineses e as ligações económicas mútuas associadas.

O que preocupa os diplomatas americanos é que a Alemanha, outras nações da NATO e países ao longo da rota Belt and Road entendam os ganhos que podem ser obtidos com a abertura de comércio e investimentos pacíficos. Se não há planos russos ou chineses para invadi-los ou bombardeá-los, qual é a necessidade da NATO? Qual é a necessidade de compras tão pesadas de equipamentos militares dos EUA pelos aliados ricos dos EUA? E se não existe uma relação inerentemente adversa, por que países estrangeiros precisam sacrificar seus próprios interesses comerciais e financeiros confiando exclusivamente nos exportadores e investidores dos EUA?

Estas são as preocupações que levaram o primeiro-ministro francês Macron a invocar o fantasma de Charles de Gaulle e instar a Europa a se afastar do que ele chama de “morte cerebral” da Guerra Fria da NATO e romper com acordos comerciais favoráveis aos EUA que estão impondo custos crescentes à Europa, negando-lhe ganhos potenciais do comércio com a Eurásia. Até a Alemanha está a recusar-se a exigências de que ficar congelada até Março próximo, ficando sem o gás russo.

Ao invés de uma ameaça militar real da Rússia e da China, o problema para os estrategas americanos é a ausência de tal ameaça. Todos os países perceberam que o mundo chegou a um ponto em que nenhuma economia industrial tem mão-de-obra e capacidade política para mobilizar um exército permanente da dimensão que seria necessária para invadir ou mesmo travar uma grande batalha com um adversário significativo. Esse custo político torna não económico para a Rússia retaliar contra o aventureirismo da NATO a espicaçar a sua fronteira ocidental tentando incitar uma resposta militar. Não vale a pena tomar a Ucrânia.

A pressão crescente dos EUA sobre seus aliados ameaça expulsá-los da órbita estado-unidense. Durante mais de 75 anos, eles tiveram pouca alternativa prática à hegemonia dos EUA. Mas isso agora está a mudar. Os Estados Unidos não têm mais o poder monetário e o excedente aparentemente cronico das balanças comercial e de pagamentos que em 1944-45 lhe permitiram elaborar as regras mundiais de comércio e investimento. A ameaça à dominância dos EUA é que a China, a Rússia e o cerne da Ilha Mundial Eurasiana de Mackinder estão a oferecer melhores oportunidades de comércio e investimento do que as disponíveis nos Estados Unidos com sua exigência cada vez mais desesperada de sacrifícios da sua NATO e de outros aliados.

O exemplo mais gritante é a tentativa dos EUA de impedir a Alemanha de autorizar o gasoduto Nord Stream 2 a fim de obter gás russo para o tempo frio que se aproxima. Angela Merkel concordou com Donald Trump em gastar US$1000 milhões na construção de um novo terminal metaneiro para se tornar mais dependente do GNL dos EUA, de alto preço. (O plano foi cancelado depois de as eleições americanas e alemãs mudarem ambos os líderes.) Mas a Alemanha não tem outro meio de aquecer muitas de suas casas e prédios de escritórios (ou abastecer suas empresas de fertilizantes) senão o gás russo.

A única maneira que resta para os diplomatas dos EUA bloquearem as compras europeias é incitar a Rússia a uma resposta militar e depois alegar que vingar tal resposta supera qualquer interesse económico puramente nacional. Como a falcoa Victoria Nuland, subsecretária de Estado para Assuntos Políticos, explicou numa coletiva de imprensa do Departamento de Estado em 27 de janeiro: “Se a Rússia invadir a Ucrânia de uma forma ou de outra, o Nord Stream 2 não avançará”. [1] O problema é criar um incidente adequadamente ofensivo e retratar a Rússia como o agressor.

Nuland mostrou sucintamente quem ditava as políticas dos membros da NATO em 2014: “Foda-se a UE”. Isso foi dito quando ela informou ao embaixador dos EUA na Ucrânia que o Departamento de Estado estava a apoiar o fantoche Arseniy Yatsenyuk como primeiro-ministro ucraniano (removido após dois anos em um escândalo de corrupção) e as agências políticas dos EUA apoiaram o sangrento massacre de Maidan que deu iniciou a oito anos de guerra civil. O resultado devastou a Ucrânia tanto quanto a violência dos EUA na Síria, Iraque e Afeganistão. Isto não é a política de paz mundial ou democracia que os eleitores europeus endossam.

As sanções comerciais dos EUA impostas a seus aliados da NATO estendem-se por todo o espectro comercial. A Lituânia, dominada pela austeridade, abriu mão do seu mercado de queijos e agricultura na Rússia e está a impedir a sua ferrovia estatal de transportar potássio da Bielorrússia para o porto báltico de Klaipeda. O principal proprietário do porto queixou-se de que “a Lituânia perderá centenas de milhões de dólares ao interromper as exportações da Bielorrússia através de Klaipeda” e de que “pode enfrentar reivindicações legais de US$15 mil milhões por rupturas de contratos”. [2] A Lituânia até concordou com a solicitação dos EUA para reconhecer Formosa, o que resultou na recusa da China a importar produtos alemães ou outros que incluam componentes fabricados na Lituânia.

A Europa deve impor sanções à custa do aumento dos preços da energia e da agricultura, dando prioridade às importações dos Estados Unidos e renunciando às ligações russas, bielorrussas e outras fora da área do dólar. Como Sergey Lavrov colocou a questão: “Quando os Estados Unidos pensam que algo atende aos seus interesses, podem trair aqueles de quem eram amigos, com quem cooperaram e que atenderam às suas posições em todo o mundo”. [3]

As sanções dos EUA aos seus aliados prejudicam suas economias, não as da Rússia e da China

O que parece irónico é que tais sanções contra a Rússia e a China acabaram por ajudá-los ao invés de prejudicá-los. Mas o objetivo principal era prejudicar, não ajudar as economias russa e chinesa. Afinal, é axiomático que sanções forçam os países visados a se tornarem mais auto-suficientes. Privados do queijo lituano, os produtores russos produziram o seu próprio queijo e não precisam mais importá-lo dos estados bálticos. A rivalidade económica subjacente dos Estados Unidos visa manter os países europeus e asiáticos aliados na sua própria órbita económica cada vez mais protegida. Alemanha, Lituânia e outros aliados são instruídos a impor sanções destinadas a atingir o seu próprio bem-estar económico ao não negociar com países fora da órbita da área do dólar americano.

Independentemente da ameaça de guerra real resultante da belicosidade estado-unidense, o custo para os aliados dos EUA de se renderem às suas exigências de comércio e investimento está a tornar-se tão alto que acaba por ser politicamente insustentável. Durante quase um século, houve pouca alternativa a não ser concordar com regras de comércio e investimento que favorecessem a economia dos EUA como preço pelo apoio financeiro e comercial dos EUA e mesmo por segurança militar. Mas agora ameaça surgir uma alternativa – aquela que oferece benefícios da iniciativa BRI da China, a Estrada da Seda, e do desejo da Rússia de investimentos estrangeiros para ajudar a modernizar sua organização industrial, como parecia ter sido prometido em 1991, há trinta anos.

Desde os fins da Segunda Guerra Mundial, a diplomacia dos EUA tem como objetivo prender a Grã-Bretanha, a França e especialmente a Alemanha e o Japão derrotados, tornando-os dependências económicas e militares. Como documentei em Super Imperialism, diplomatas americanos desmembraram o Império Britânico e absorveram a sua Área do Esterlino com os termos onerosos impostos primeiro pelo Lend-Lease e a seguir pelo Anglo-American Loan Agreement de 1946. Os termos deste último obrigaram a Grã-Bretanha a abandonar a sua política de Preferência Imperial e a desbloquear os saldos em libras esterlinas que a Índia e outras colónias haviam acumulado com as suas exportações de matérias-primas durante a guerra, abrindo assim a Commonwealth britânica às exportações dos EUA.

A Grã-Bretanha comprometeu-se a não recuperar seus mercados anteriores à guerra através da desvalorização da libra. Diplomatas americanos criaram então o FMI e o Banco Mundial em termos que promoviam os mercados de exportação dos EUA e afastaram a concorrência da Grã-Bretanha e de outros antigos rivais. Debates na Câmara dos Lordes e na Câmara dos Comuns mostraram que os políticos britânicos reconheciam estarem a ser relegados a uma posição económica subserviente, mas sentiam não terem alternativa. E uma vez que desistiram, os diplomatas dos EUA tiveram liberdade para confrontar o resto da Europa.

O poder financeiro permitiu que os Estados Unidos continuassem a dominar a diplomacia ocidental, apesar de serem forçados a abandonar o ouro em 1971 devido aos custos na balança de pagamentos dos seus gastos militares no exterior. Durante o último meio século, países estrangeiros mantiveram suas reservas monetárias internacionais em dólares americanos – principalmente em US Treasury securities, contas em bancos americanos e outros investimentos financeiros na economia dos EUA. O padrão letras do Tesouro obriga os bancos centrais estrangeiros a financiarem o défice de base militar na balança de pagamentos dos Estados Unidos – e, neste processo, o défice orçamental interno do governo.

Os Estados Unidos não precisam desta reciclagem para gerar moeda. O governo pode simplesmente imprimir a moeda, como demonstrou a Moderna Teoria Monetária (MMT). Mas os Estados Unidos precisam desta reciclagem dos dólares dos bancos centrais estrangeiros para equilibrar seus pagamentos internacionais e sustentar a taxa de câmbio do dólar. Se o dólar declinasse, países estrangeiros achariam muito mais fácil pagar dívidas internacionais em dólar nas suas próprias divisas. Os preços de importação dos EUA aumentariam e seria mais caro para investidores americanos comprarem activos estrangeiros. E os estrangeiros perderiam dinheiro com acções e títulos dos EUA denominados nas suas próprias divisas e os abandonariam. Os bancos centrais, em particular, teriam uma perda com os títulos em dólar do Tesouro mantidos nas suas reservas monetárias – e descobririam que seu interesse está em fugir do dólar. Assim, tanto a balança de pagamentos dos EUA como a sua taxa de câmbio estão ameaçados pela beligerância e os gastos militares estado-unidenses por todo o mundo – ainda que os seus diplomatas tentem estabilizar as coisas através do aumento de ameaças militares até ao nível de crises.

Os esforços dos EUA para manter seus protetorados europeus e do leste asiático trancados na sua própria esfera de influência são ameaçados pela emergência da China e da Rússia independentes dos Estados Unidos, enquanto a economia dos EUA está a desindustrializar-se como resultado das suas próprias escolhas políticas deliberadas. A dinâmica industrial que tornou os Estados Unidos tão dominantes desde o final do século XIX até a década de 1970 deu lugar a uma missionária financiarização neoliberal. É por isso que os diplomatas dos EUA precisam torcer o braço dos seus aliados a fim de bloquear as suas relações económicas com a Rússia pós-soviética e a China socialista, cujo crescimento supera o dos Estados Unidos e cujos acordos comerciais oferecem mais oportunidades de ganho mútuo.

A questão é quanto tempo os Estados Unidos podem impedir seus aliados de aproveitarem o crescimento económico da China. Será que a Alemanha, a França e outros países da NATO buscarão a prosperidade para si próprios ao invés de deixar que o padrão do dólar americano e as preferências comerciais suguem o seu superávite económico?

A diplomacia do petróleo e o sonho dos Estados Unidos para a Rússia pós-soviética

A expectativa de Gorbachev e outros responsáveis russos em 1991 era que sua economia se voltasse para o Ocidente para uma reorganização nos moldes que tornaram tão prósperas as economias dos EUA, Alemanha e outras. A expectativa mútua na Rússia e na Europa Ocidental era que investidores alemães, franceses e outros reestruturassem a economia pós-soviética em linhas mais eficientes.

Esse não era o plano dos EUA. Quando o senador John McCain chamou a Rússia de “um posto de gasolina com bombas atómicas”, esse era o sonho dos Estados Unidos do que eles queriam que fosse a Rússia – com as empresas de gás russas a passarem para o controle de accionistas americanos, a começar com a planeada compra da Yukos, conforme combinado com Mikhail Khordokovsky. A última coisa que os estrategas dos EUA queriam ver era o renascimento de uma Rússia próspera. Os conselheiros dos EUA procuraram privatizar os recursos naturais da Rússia e outros activos não industriais, entregando-os a cleptocratas que poderiam “sacar” o valor do que haviam privatizado apenas vendendo aos EUA e outros investidores estrangeiros por divisas fortes. O resultado foi um colapso económico e demográfico neoliberal em todos os estados pós-soviéticos.

De certa forma, os Estados Unidos vêm se transformando na sua própria versão de um posto de gasolina com bombas atómicas (e exportações de armas). A diplomacia do petróleo dos EUA visa controlar o comércio mundial do óleo para que os seus enormes lucros sejam acumulados para as principais empresas dos EUA. Foi para manter o petróleo iraniano nas mãos da British Petroleum que em 1954 Kermit Roosevelt da CIA trabalhou com a Anglo-Persian Oil Company, da British Petroleum, para derrubar o líder eleito do Irão, Mohammed Mossadegh, quando procurou nacionalizar a empresa depois de ela se ter recusado, década após década, a cumprir as contribuições que prometera para a economia. Depois de instalar o Xá cuja democracia era baseada num estado policial cruel, o Irão ameaçou mais uma vez actuar como o dono de seus próprios recursos petrolíferos. Por isso, foi mais uma vez confrontado com sanções patrocinadas pelos EUA, que permanecem em vigor até hoje. O objectivo de tais sanções é manter o comércio mundial do petróleo firmemente sob o controle estado-unidense, porque o petróleo é energia e energia é a chave para produtividade e o PIB real.

Nos casos em que governos estrangeiros como a Arábia Saudita e petroestados árabes vizinhos assumem o controle, as receitas de exportação de seu petróleo devem ser depositadas nos mercados financeiros dos EUA a fim de apoiar a taxa de câmbio do dólar e a dominação financeira dos EUA. Quando eles quadruplicaram os preços do petróleo em 1973-74 (em resposta à quadruplicação dos preços de exportação de cereais pelos EUA), o Departamento de Estado dos EUA estabeleceu a lei e disse à Arábia Saudita que poderia cobrar o quanto quisesse pelo seu petróleo (aumentando assim o guarda-chuva de preços para os produtores de petróleo dos EUA), mas tinha de reciclar suas receitas com a exportação de petróleo para os Estados Unidos em títulos denominados em dólares – principalmente em títulos do Tesouro e contas bancárias dos EUA, juntamente com algumas participações minoritárias em acções e títulos (mas apenas como investidores passivos, sem utilizar este poder financeiro para controlar políticas corporativas).

O segundo modo de reciclar os ganhos da exportação de petróleo era comprar as exportações de armas dos EUA, com a Arábia Saudita tornando-se um dos maiores clientes do complexo industrial-militar. A produção de armas dos EUA, na verdade, não é primariamente de caráter militar. Como o mundo está a ver agora na comoção sobre a Ucrânia, a América não tem um exército de combate. O que tem é o que costumava ser chamado de “exército da comilança” (“eating army”). A produção de armas dos EUA emprega mão-de-obra e produz armamento como uma espécie de instrumento de prestígio para governos exibirem, não para combates reais. Como a maior parte dos produtos de luxo, a margem (markup) é muito alta. Essa é a essência da alta moda e estilo, afinal de contas. O complexo militar-industrial usa seus lucros para subsidiar a produção civil dos EUA de um modo que não viole a letra das leis de comércio internacional contra subsídios governamentais.

Por vezes, é claro, a força militar é de facto usada. No Iraque, primeiro George W. Bush e depois Barack Obama usaram os militares para tomar as reservas de petróleo do país, juntamente com as da Síria e da Líbia. O controle do petróleo mundial tem sido o alicerce da balança de pagamentos dos Estados Unidos. Apesar do esforço global para retardar o aquecimento do planeta, as autoridades americanas continuam a encarar o petróleo como a chave para a supremacia económica dos Estados Unidos. É por isso que os militares dos EUA ainda se recusam a obedecer às ordens do Iraque para deixar seu país, mantendo suas tropas no controle do petróleo iraquiano, e por isso concordou com os franceses em destruir a Líbia e ainda tem tropas nos campos petrolíferos da Síria. Mais perto de casa, o presidente Biden aprovou a perfuração offshore e apóia a exploração das areias betuminosas de Athabasca (Canadá), ambientalmente o petróleo mais sujo do mundo.

Juntamente com as exportações de petróleo e alimentos, as exportações de armas apoiam o financiamento do padrão de financiamento das despesas militares dos EUA nas suas 750 bases no estrangeiro por meio de títulos do Tesouro. Mas sem um inimigo permanente a ameaçar constantemente nos portões, a existência da NATO desmorona. Qual seria a necessidade dos países comprarem submarinos, porta-aviões, aviões, tanques, mísseis e outras armas?

À medida que os Estados Unidos se desindustrializaram, seu défice comercial e de balança de pagamentos tornou-se mais problemático. O país precisa das vendas de exportação de armas para ajudar a reduzir seu crescente défice comercial e também para subsidiar suas aeronaves comerciais e sectores civis relacionados. O desafio é como manter sua prosperidade e dominação mundial à medida que se desindustrializa enquanto o crescimento económico avança na China e agora até na Rússia.

A América perdeu a sua vantagem de custo industrial pelo aumento drástico do seu custo de vida e de fazer negócios na sua economia financiarizada pós industrial rentista. Além disso, como Seymour Melman explicou na década de 1970, o capitalismo do Pentágono é baseado em contratos por administração (cost-plus contracts): Quanto mais altos os custos do hardware militar, mais lucros seus fabricantes recebem. Assim, as armas dos EUA são demasiado complexas – daí os assentos sanitários de US$500 ao invés de um modelo de US$50. Afinal, a principal atratividade dos bens de luxo, incluindo equipamentos militares, é seu preço elevado.

Este é o pano de fundo para a fúria dos EUA no seu fracasso em aproveitar os recursos petrolíferos da Rússia – e ao ver a Rússia também se libertar militarmente para criar suas próprias exportações de armas, as quais agora são tipicamente melhores e muito menos custosas do que aquelas dos EUA. Hoje a Rússia está na posição do Irão em 1954 e novamente em 1979. Não só as suas vendas de petróleo rivalizam com as do GNL dos EUA, como a Rússia mantém seus ganhos de exportação de petróleo em casa a fim de financiar a sua reindustrialização, de modo a reconstruir a economia que fora destruída pela “terapia” de choque patrocinada pelos EUA na década de 1990.

A linha de menor resistência para a estratégia dos EUA que busca manter o controle do fornecimento mundial de petróleo enquanto mantém seu mercado de exportação de armas de luxo via NATO é Gritar Lobo e insistir em que a Rússia está prestes a invadir a Ucrânia – como se a Rússia tivesse algo a ganhar com a guerra no atoleiro da economia mais pobre e menos produtiva da Europa. O Inverno de 2021-22 viu uma longa tentativa de instigação dos EUA à NATO e à Rússia para combaterem – sem êxito.

Os EUA sonham com uma China neoliberalizada como filiada corporativa dos EUA

Os Estados Unidos se desindustrializaram como uma política deliberada de cortar custos de produção, uma vez que as suas empresas de manufatura buscaram mão-de-obra de baixos salários no exterior, sobretudo na China. Essa mudança não foi uma rivalidade com a China, mas era encarada como um ganho mútuo. Esperava-se que bancos e investidores americanos assegurassem o controle e os lucros da indústria chinesa à medida que ela fosse comercializada. A rivalidade era entre o patronato dos EUA e os trabalhadores dos EUA, e a arma da guerra de classes era a deslocalização (offshoring) e, no processo, cortar gastos sociais do governo.

Semelhante à busca russa por petróleo, armas e comércio agrícola independente do controle dos EUA, a ofensa da China é manter os lucros de sua industrialização em casa, retendo a propriedade estatal de corporações significativas e, acima de tudo, mantendo a criação de moeda e o Banco da China como um serviço público para financiar a sua própria formação de capital ao invés de permitir que bancos e corretoras norte-americanas forneçam seu financiamento e extraiam seu excedente na forma de juros, dividendos e taxas de administração. A única graça salvadora para os planeadores corporativos dos EUA foi o papel da China em impedir o aumento dos salários dos EUA, providenciando uma fonte de mão-de-obra barata para permitir que fabricantes americanos se deslocalizassem e terciarizassem a sua produção.

A guerra de classe do Partido Democrata contra o trabalho sindicalizado começou no governo Carter e acelerou muito quando Bill Clinton abriu a fronteira sul com o NAFTA. Uma série de maquilhadoras foi estabelecida ao longo da fronteira para fornecer mão-de-obra de baixo custo. Isso se tornou um centro de lucro corporativo tão bem-sucedido que em dezembro de 2001 Clinton pressionou para admitir a China na Organização Mundial do Comércio, no último mês do seu governo. O sonho era que se tornasse um centro de lucro para investidores americanos, produzindo para empresas americanas e financiando seu investimento de capital (e habitação e gastos governamentais também, esperava-se) tomando dólares emprestados e organizando sua indústria num mercado de acções que, como o da Rússia em 1994-96, tornar-se-ia um fornecedor líder de ganhos de capital financeiro para os EUA e outros investidores estrangeiros.

A Walmart, Apple e muitas outras empresas norte-americanas organizaram instalações de produção na China, o que necessariamente envolveu transferências de tecnologia e a criação de uma infraestrutura eficiente para o comércio de exportação. A Goldman Sachs liderou a incursão financeira e ajudou o mercado de acções da China a subir. Tudo o que a América estivera a insistir.

Onde o sonho neoliberal da Guerra Fria da América deu errado? Para começar, a China não seguiu a política do Banco Mundial de orientar os governos a tomar empréstimos em dólares a fim de contratar empresas de engenharia dos EUA para fornecer infraestrutura de exportação. Ela industrializou-se da mesma forma que os Estados Unidos e a Alemanha o fizeram no final do século XIX: Por meio de pesados ​​investimentos públicos em infraestrutura para atender às necessidades básicas a preços subsidiados ou gratuitamente, desde assistência médica e educação até transporte e comunicações, a fim de minimizar o custo de vida que empregadores e exportadores tinham de pagar. Mais importante, a China evitou o serviço da dívida externa criando a sua própria moeda e mantendo as instalações de produção mais importantes nas suas próprias mãos.

As exigências dos EUA conduzem seus aliados para fora da órbita comercial e monetária do dólar-NATO

Tal como numa tragédia grega clássica, a política externa dos EUA está a provocar precisamente o resultado que mais teme. Abusando dos seus próprios aliados da NATO, os diplomatas dos EUA estão a provocar o cenário de pesadelo de Kissinger, unir Rússia e China. Enquanto os aliados dos EUA são instruídos a arcar com os custos das sanções dos EUA, a Rússia e a China estão a beneficiar-se ao serem obrigadas a diversificar e tornar suas próprias economias independentes da dependência dos fornecedores americanos de alimentos e outras necessidades básicas. Acima de tudo, estes dois países estão criando seus próprios sistemas de crédito e de compensação bancária desdolarizados e mantendo suas reservas monetárias internacionais na forma de ouro, euros e divisas um do outro para conduzirem seu comércio e investimento mútuos.

Esta desdolarização proporciona uma alternativa à capacidade unipolar dos EUA de obterem crédito externo gratuito por meio do padrão dos títulos do Tesouro por reservas monetárias mundiais. À medida que os países estrangeiros e seus bancos centrais desdolarizam, o que sustentará o dólar?  Sem a linha de crédito gratuita fornecida pelos bancos centrais a reciclarem automaticamente as despesas das forças armadas no estrangeiro dos Estados Unidos e outros gastos no exterior de volta para a economia dos EUA (apenas com um retorno mínimo), como podem os Estados Unidos equilibrar seus pagamentos internacionais face à sua desindustrialização?

Os Estados Unidos não podem simplesmente reverter sua desindustrialização e dependência da mão-de-obra chinesa e de outros países asiáticos trazendo a produção de volta para casa. O país construiu uma sobrecarga rentista demasiado alta na sua economia para que seu trabalho seja capaz de competir internacionalmente, dadas as necessidades orçamentais dos assalariados dos EUA a fim de pagar altos e crescentes custos de habitação, educação, serviço da dívida, seguro de saúde e serviços de infraestrutura privatizados.

O único meio de os Estados Unidos sustentarem seu equilíbrio financeiro internacional é por meio dos preços de monopólio das exportações das suas armas, produtos farmacêuticos patenteados e tecnologia da informação e pela compra do controle da produção mais lucrativa e setores potencialmente extratores de renda no exterior – por outras palavras, espalhando a política económica neoliberal por todo o mundo de um modo que obrigue outros países a dependerem de empréstimos e investimentos dos EUA.

Este não é o modo como crescem economias nacionais. A alternativa à doutrina neoliberal são as políticas de crescimento da China que seguem a mesma lógica industrial básica pela qual Grã-Bretanha, Estados Unidos, Alemanha e França chegaram ao poder industrial durante seus próprios arranques industriais com forte apoio governamental e programas de gastos sociais.

Os Estados Unidos abandonaram esta política industrial tradicional desde a década de 1980. Estão a impor sobre a sua própria economia as políticas neoliberais que desde 1991 desindustrializaram o Chile pinochetista, a Grã-Bretanha thatcheriana e as ex-repúblicas soviéticas pós-industriais, os Bálticos e a Ucrânia. Sua prosperidade altamente polarizada e alavancada por dívida baseia-se na inflação do imobiliário e dos preços dos títulos, bem como na privatização da infraestrutura.

Este neoliberalismo tem sido um caminho para se tornar uma economia fracassada e, de facto, um estado fracassado, obrigado a sofrer deflação da dívida, preços crescentes da habitação e das rendas respectivas à medida que as taxas de ocupação por proprietários diminuem, bem como custos médicos exorbitantes e outros custos resultantes da privatização daquilo que outros países fornecem gratuitamente ou a preços subsidiados como direitos humanos – saúde, educação, seguro médico e pensões.

O êxito da política industrial da China com uma economia mista e controle estatal do sistema monetário e de crédito levou estrategas dos EUA a temerem que economias da Europa Ocidental e da Ásia possam descobrir a vantagem de se integrarem mais estreitamente com a China e a Rússia. Os EUA parecem não ter resposta a tal reaproximação global com a China e a Rússia, excepto sanções económicas e beligerância militar. Essa postura de Nova Guerra Fria é cara, e outros países estão a recusar-se a arcar com o custo de um conflito que não traz benefícios para si mesmos e, na verdade, ameaça desestabilizar seu próprio crescimento económico e independência política.

Sem os subsídios desses países, especialmente porque China, Rússia e seus vizinhos desdolarizam suas economias, como podem os Estados Unidos manter os custos em balança de pagamentos dos seus gastos militares no exterior? Cortar esses gastos e, de facto, recuperar a auto-suficiência industrial e o poder económico competitivo exigiria uma transformação da política americana. Tal mudança parece improvável, mas sem ela, por quanto tempo a economia pós-industrial rentista da América conseguirá forçar outros países a fornecer-lhe a riqueza económica (economic affluence) (literalmente fluxo de entrada, flowing-in) que ela já não produz mais em casa?

[1] www.state.gov/briefings/department-press-briefing-january-27-2022/. Ignorando os comentários de repórteres de que "o que os alemães disseram publicamente não corresponde exatamente ao que você está a dizer", ela explicou as táticas dos EUA para travar o Nord Stream 2. Contrariando o argumento de um repórter de que "tudo o que eles precisam fazer é ligá-lo”, ela disse: “Como o senador Cruz gosta de dizer … atualmente é um pedaço de metal no fundo do mar. Ele precisa ser testado. Precisa ser certificado. Precisa ter aprovação regulamentar”. Para uma revisão recente da geopolítica cada vez mais tensa em acção, consulte John Foster, “Pipeline Politics hits Multipolar Realities: Nord Stream 2 and the Ukraine Crisis”,  Counterpunch, 3/fevereiro/2022.
[2] Andrew Higgins, “Fueling a Geopolitical Tussle in Eastern Europe: Fertilizer”,  The New York Times, 31/janeiro/2022. O proprietário planeia processar o governo da Lituânia por danos avultados.
[3] Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, “Respostas do ministro dos Negócios Estrangeiros Sergey Lavrov às perguntas do programa Voskresnoye Vremya do Channel One”, Moscovo, 30/Janeiro/2022. Johnson’s Russia List, 31/janeiro/2022, #9.

08/Fevereiro/2022

[*] Economista.

O original encontra-se em thesaker.is/americas-real-adversaries-are-its-european-and-other-allies-the-u-s-aim-is-to-keep-them-from-trading-with-china-and-russia/

Este artigo encontra-se em resistir.info

14/Fev/22