A emancipação e a desemancipação ao longo da história (3)

Domenico Losurdo [*]
entrevistado por Victor Neves

Voto, cartoon de P. Kuczynsky.

Novos Temas: Por outro lado, se tomarmos em conta as relações sociais internamente à China, assim como os números constantes em estudos referentes à exportação chinesa de capital, que se desenvolve e se aprofunda hoje, não seria possível pensar na possibilidade de que o Partido Comunista Chinês esteja a tornar-se progressivamente no seu contrário? Ou seja, não seria possível pensar no PC transformando-se pouco e pouco em algo como um administrador coletivo de uma modalidade concreta e historicamente específica de capitalismo em desenvolvimento? Se esse raciocínio for correto, a China estar-se-ia afirmando hoje como uma nova grande potência capitalista, e não socialista, mesmo sendo dirigida pelo Partido Comunista...

Domenico Losurdo: Bem... Quer me parecer que o perigo da passagem do socialismo ao capitalismo, ou seja, da restauração do capitalismo, está sempre presente. Sobre isso, não é necessário insistir. Mas não se deve esquecer uma coisa: se examinarmos a restauração do capitalismo na URSS, ela se processou numa economia quase completamente estatal, e isso indica que a propriedade estatal não é de modo algum uma garantia contra o perigo de restauração do Capitalismo. Por outro lado, o facto de que haja algum grau de privatização da economia não é em si mesmo uma prova de que o capitalismo vá triunfar na China.

Na viragem dos anos de 1990, o capitalismo foi restaurado na Europa Oriental, aí compreendida a URSS, onde a propriedade era fortemente estatal, mas não na China! Constatar isso força-nos a perguntar o porquê, e parece-me que a resposta passa por compreender que o problema comporta outras dimensões que não apenas a económica. Se considerarmos a dimensão política do problema, veremos que o poder político se liga estreitamente à existência e ao alargamento de uma base social de consenso sobre a qual o poder socialista tem de se apoiar. Se a China tivesse permanecido um país pobre, ou mesmo miserável – e o objetivo do embargo contra ela era exatamente esse –, a base social de consenso ter-se-ia tornado demasiado frágil, e isso poderia ter conduzido à derrota do socialismo e à restauração do capitalismo.

Posso citar a esse propósito a história da RDA, a Alemanha de Leste, que possuía um Estado Social bastante desenvolvido, talvez com o melhor serviço de assistência médica do mundo (reconhecido como tal mesmo por burgueses), mas cujo sistema não foi capaz de resistir ao poder de atração da opulência e da riqueza da Alemanha de Oeste. O problema aqui é que os países socialistas são sempre postos, queiramos ou não, em competição com as potências capitalistas, e isso põe obstáculos no sentido de sua legitimação social. Eles são obrigados a desenvolver a suas formas produtivas e a sua capacidade de produção de riqueza social porque, sem isso, o poder socialista não se torna sólido, não se legitima socialmente. É isso o que se passa na China hoje.

NT: Há ainda os governos de países fora do campo socialista, mas que se dizem simpatizantes do socialismo. Refiro-me ao fenómeno, particularmente notável na América Latina, dos governos situados no assim chamado “campo da esquerda”, que polarizam de maneira não-negligenciável o debate político no subcontinente. Como os avalia?

Domenico Losurdo: Podemos dizer que há aí uma continuidade com a história de Cuba e mesmo com a história do socialismo enquanto tal. Se tomarmos a história de Cuba, é claro que a Revolução cubana não começou como revolução socialista. Os revolucionários cubanos tornaram-se socialistas e comunistas quando compreenderam – muito bem, por sinal – que a vitória de sua revolução não era possível desvinculada da luta contra o imperialismo, quando compreenderam que somente o socialismo e um partido comunista poderiam salvar Cuba da agressão imperialista e do destino colonial que o imperialismo havia reservado à ilha. O mesmo raciocínio é válido para a China, e há mesmo um texto muito importante de Mao, onde este traça um quadro geral da história da Revolução chinesa e mostra que a China tentou de diversas maneiras sustentar a sua independência, o que só se tornou possível a partir de sua reorientação socialista, marxista – a partir, portanto, da compreensão de que, sem a passagem ao socialismo, a luta contra o imperialismo seria condenada à derrota.

No que diz respeito à América Latina, em países como a Bolívia, Venezuela, Equador, mesmo que a situação histórica seja diferente, o que se passa ali tem traços comuns com essas experiências. Esses países não começaram enquanto socialistas ou comunistas, mas na prática revolucionária enquanto tal eles compreenderam a necessidade de ligar a luta nacional à luta social, até porque, sem uma série de conquistas sociais reais, o povo não seria convencido a defender a independência nacional contra um imperialismo encarniçado.

Essa parece-me a característica fundamental desses processos do assim chamado “socialismo do século XXI”. Eles são muito importantes, mas devem ser vistos como parte da história do movimento comunista, até porque a revolução não é nunca a consequência de apenas uma contradição, mas o resultado de um cruzamento de diversas delas. Por exemplo, a luta interna contra a riqueza parasitária tem de se articular com a luta contra o imperialismo, e os partidos comunistas só podem vencer se forem capazes de compreender as contradições e o seu entrecruzamento, de modo a dominá-las.

NT: Esse problema de “entrecruzamento de contradições” fez-me pensar no movimento socialista hoje. A crer nos nomes dos partidos no poder últimas décadas, entre avanços e recuos, o “socialismo” já estaria implantado na Europa Ocidental de modo muito “bem-sucedido”… para a continuidade e o aprofundamento do capitalismo e do imperialismo europeus. Seria possível explicar o amoldamento à ordem dos partidos socialistas europeus, e mesmo duma parte considerável dos partidos comunistas, a partir do facto de que eles apostaram suas fichas no enfrentamento de contradições cuja solução podia ser absorvida pelo sistema capitalista? Que fundamentos parecem adequados ao senhor para colocar em questão uma posição política que passou da crítica radical da ordem capitalista ao acompanhamento cúmplice da sua construção e do seu desenvolvimento?

Domenico Losurdo: Para começar, parece-me importante marcar o seguinte: se quisermos compreender o processo histórico, não somente as revoluções socialistas, mas também as revoluções burguesas – devemos abandonar aquilo a que chamo “lógica binária”. Há sempre, nas revoluções, o “cruzamento” de contradições a que fiz referência, e isso é válido até mesmo para a Revolução Francesa e, para que se tenha a certeza do que digo, basta lembrar a invasão do país pelas potências estrangeiras que desejavam a derrota da revolução.

A partir daí, podemos falar sobre o comunismo europeu. Gostaria de pôr a ênfase sobre a Itália, em particular. No que concerne ao Partido Comunista Italiano, a questão parece-me simples e dolorosa: com a queda do socialismo na Europa Oriental, muito comunistas italianos simplesmente acreditaram que a história havia acabado! “O capitalismo triunfou, com o seu triunfo passamos a viver no melhor dos mundos”... Eles, de facto, deixaram de ser comunistas: Mais: deixaram mesmo de ter qualquer sombra de pensamento crítico. Eu às vezes digo que, com a queda do Muro de Berlim, caiu também a inteligência de muitos comunistas e intelectuais italianos.

No tocante à história da “Refundação Comunista”, devemos pensar noutros termos. Essa organização pretendia ser comunista, e os seus membros sabiam que, com a queda do socialismo na Europa do Leste, a história não havia terminado... Mas, então, porque é que a “Refundação” sofreu também ela uma derrota? Parece-me que uma razão importante é aquilo a que podemos chamar “niilismo histórico”, ou seja, a negação total de toda a história do movimento comunista, interpretado como a história de loucuras e mesmo de crimes. O principal responsável por essa interpretação foi Fausto Bertinotti, que sem querer, acabou fazendo um balanco da história do movimento comunista próprio da burguesia.

NT: Caminhemos agora em direção à terceira e última parte de nossa entrevista. O senhor é, hoje, conhecido mundialmente por contar a história dos últimos seculos de modo diferente daquele de certa tendência que vem querendo impor-se no campo da historiografia – o chamado “revisionismo histórico”, que adiante discutiremos. Nesse processo, o senhor vem construindo uma verdadeira contra-história fundada sobre uma interpretação crítica do que se passou no período e que se materializou, por exemplo, em obras corno Stalin: história e critica de lenda negra, A não-violência: uma história fora do mito e Contra-história do liberalismo. Quais são as bases teóricas desse trabalho de contra-história?

Domenico Losurdo: Comecei como discípulo e pesquisador do pensamento de Hegel. Escrevi muito sobre ele, e foi dele que tomei a minhas teses fundamentais. Primeira: filosofar é compreender o próprio tempo de modo concetual, é conceptualizá-lo. Na verdade, meti-me a historiador porque queria filosofar! E não é possível fazer filosofia sem compreender o tempo no qual vivemos. Segunda tese, e aqui cito a Fenomenologia do espírito: “a verdade é o todo”. Essa afirmação não tem nada de genérica, como veremos.

Vou então dar um exemplo para explicar minha “contra-história”, como você a chamou. Hoje, uma tese muito difundida é aquela que afirma que os Estados Unidos são a democracia mais antiga do mundo. Chega a ser um dogma da “teologia política” norte-americana, a tal ponto que Clinton, ao pronunciar o seu primeiro discurso como presidente dos Estados Unidos, afirmou sem titubear que esse país constituía a mais antiga democracia do mundo, e tinha a missão eterna (“timeless”) de dirigir o restante do mundo para a democracia, etc. Não nos interessa nessa entrevista polemizar com este “mito genealógico” no plano político, mas sim discutir a afirmação que o fundamenta dum ponto de vista metodológico.

Pois bem: “os Estados Unidos são a mais antiga democracia do mundo”. Quando Clinton afirma isso ele tem de fazer, evidentemente, abstração do destino reservado aos peles-vermelhas expropriados, dizimados, exterminados nos EUA, assim como da escravidão dos negros. Nos planos metodológico e epistemológico – para não falar do plano político –, será mesmo correto fazer abstração da condição dos peles-vermelhas e dos negros? Não! Não é correto. E isso não apenas devido à afirmação de Hegel de que a verdade está no todo, mas também porque não se pode fazer abstração da quase totalidade das relações sociais numa sociedade determinada, escolhendo apenas as partes que preferimos e delas “deduzindo” que “sim, claro, os Estados Unidos são a mais antiga democracia do mundo”...

Pode-se citar quanto a isso, como faço no meu livro sobre a contra-história do liberalismo, o caso de dois viajantes, dois franceses que visitaram os Estados Unidos quase ao mesmo tempo, mas um de maneira independente do outro, Tocqueville e Schoelcher. Os dois são honestos do ponto de vista intelectual, já que ambos constatam de um lado o governo da lei e a democracia para os brancos, e do outro lado o extermínio dos peles-vermelhas e a escravidão terrível dos negros. Mas qual a conclusão de cada um deles? Tocqueville conclui que os Estados Unidos são o maior país democrático do mundo. Já Schoelcher chega à conclusão totalmente oposta: para ele, os Estados Unidos são o país mais despótico do mundo, aquele onde se pratica o despotismo mais feroz.

Mas então quem tinha razão, o primeiro ou o segundo? No meu livro respondo que os dois estavam até certo ponto errados, mas talvez Tocqueville mais do que o outro. E porquê? Porque – e hoje isso é praticamente consensual entre os pesquisadores, mesmo os burgueses que se ocupam seriamente do tema – a democracia entre a comunidade branca nos Estados Unidos só se tornou possível com o extermínio dos peles-vermelhas e a escravidão dos negros. Era a “democracia para o povo dos senhores” (Herrenvolkdemocracy). De um lado, a expropriação, a deportação e a dizimação dos peles-vermelhas tornaram possível transformar trabalhadores assalariados em proprietários de terras e, por essa razão, o conflito social tornava-se muito menos agudo. De outro lado, o trabalho mais duro era exercido pelo escravo negro, mas a sua condição de escravo punha-o direta e duramente sob controle no seu próprio local de trabalho e de vida.

Ou seja: o conflito social era atenuado porque os assalariados se tornavam proprietários e os trabalhadores eram escravos rigidamente controlados. E com o conflito adormecido, tornava-se fácil instalar uma democracia para os brancos, quer dizer para apenas uma fração dessa sociedade, ainda mais porque a situação geopolítica dos Estados Unidos era tranquila, não havia uma potência estrangeira a temer.

Então, afirmar que os Estados Unidos são a mais antiga democracia do mundo é simplesmente ridículo. Simplesmente assim. E eu não digo isso apenas enquanto comunista, mas mesmo enquanto pesquisador, porque de outro modo teríamos de enfrentar a seguinte questão: qual é a razão, a justificativa, para se abstrair das condições dos peles-vermelhas e dos negros? Salvo para os racistas, não há nenhuma justificativa possível! Defender isso pressuporia dizer que os negros e peles-vermelhas eram bárbaros sem importância, ou que eles eram simplesmente negligenciáveis, e esse raciocínio, do ponto de vista humano, é simplesmente falso.

Vamos agora transportar-nos dos secular XVIII e XIX para o seculo XX e imaginar um Tocqueville e um Schoelcher que então visitassem o planeta. Nessa situação, o Tocqueville do século XX faz uma comparação entre as EUA e os outros países capitalistas de um lado e, de outro lado, a URSS ou a China. Ele afirma: claro que nos EUA o governo da lei (rule of law) e a limitação dos poderes são muito mais bem estabelecidos do que na URSS ou na China comunista. O Tocqueville do século XX tira disso a conclusão de que a guerra fria é a guerra da democracia contra a ditadura. É essa a ideologia dominante, como sabemos.

Mas agora imaginemos o Schoelcher do século XX, que afirma: “Sim, é verdade que nos EUA as instituições liberais são bastante mais desenvolvidas que nos países comunistas. Mas são os Estados Unidos que estabelecem as ditaduras na América Latina; foram eles que estabeleceram a ditadura na Guatemala, provocando um genocídio reconhecido até mesmo pela ONU. Foram os franceses, seus aliados, que conduziram uma guerra colonial genocida na Argélia. Foi a Grã-Bretanha que fez o mesmo noutros países da Africa. Foram os EUA que cometeram inúmeros crimes de guerra no Vietname e na Indochina. Foram os Estados Unidos que acabaram com a democracia no Irão...

Esse pequeno exercício mostra-nos que estamos diante, no tocante ao século XX e até hoje, do mesmo problema metodológico e epistemológico que tentei mostrar ao falar da visita aos EUA por Tocqueville e por Schoelcher no século XIX. Se nos abstrairmos das condições concretas nas quais se desenvolve a democracia norte-americana, podemos cerrar fileiras com o Tocqueville do século XX e afirmar que se trata sempre da luta da democracia contra a ditadura. Mas se consideramos a totalidade das relações sociais e políticas do tempo, da nossa época, estaremos mais próximos de Schoelcher. Foi à luz desse problema e inspirado pelas teses de Hegel que citei que me senti obrigado a elaborar essa “contra-história” dos dois últimos séculos, para poder tentar compreender conceptualmente o nosso tempo.

NT: Tomando isso em consideração, em que é que a sua contra-história se distingue fundamentalmente do revisionismo histórico, que o senhor combate no livro O revisionismo na história? Em que é que ela se aproxima dele?

Domenico Losurdo: O revisionismo histórico sofre da mesma fraqueza da ideologia dominante: ele não pensa a verdade como o todo, como sugeriu Hegel. Vou dar um exemplo: que dizem Ernest Nolte e Furet sobre a URSS? Que esta, sob Stalin, era como o III Reich, como a Alemanha nazista. E porquê? Porque ela tinha um partido único, um partido totalitário que decidia tudo etc. Esse modo de argumentar é completamente formal. Sugiro uma comparação que nos ajudara a compreender melhor esse problema: pensemos na luta, na grande luta, dos escravos negros os “jacobinos negros”! – contra a escravidão em Santo Domingo (que depois se tornou o Haiti), conduzida for Toussaint Louverture. Conquistada a abolição da escravidão, esses ex-escravos agora livres devem lutar contra o poderoso exército enviado por Napoleão para restabelecer a dominação colonial e a escravidão no Haiti, dirigido pelo cunhado de Napoleão, [Charles Emmanuel] Leclerc. A luta entre os negros e o exército comandado por Leclerc foi uma luta selvagem, de um lado e de outro. Mas será que alguém tenta, seriamente, comparar Toussaint Louverture e Leclerc, dizendo que eles são a mesma coisa? Isso seria o mesmo que dizer que o escravismo e o antiescravismo são equivalentes! E Isso seria simplesmente ridículo, tanto do ponto de vista político quanto do epistemológico, já que consistiria em tomar apenas um elemento particular (“a selvajaria da luta de um lado e de outro”) e, reduzindo tudo a esse elemento, fazer uma abstração completa de todo o resto.

Podemos com toda a segurança estabelecer o mesmo raciocínio a propósito das comparações entre a URSS e o III Reich. Já citei Hitler e o fato de que ele queria restabelecer a escravidão, tendo como alvo os eslavos da Europa Oriental. Será que se pode dizer que aqueles que desejam escravizar e aqueles que lutam contra a escravidão são a mesma coisa?! É ridículo! E, quanto a isso, eu ainda acrescentaria mais um elemento: Hitler sempre fez referência à história dos Estados Unidos como a um exemplo que deveria ser seguido – algo que já demonstrei em meus livros. Ele afirmava sempre que, para os alemães, a Europa de Leste seria o mesmo que o farwest havia sido para a raça branca, para os colonos norte-americanos brancos. Alias, só podemos compreender em toda sua extensão o carater bárbaro da guerra de Hitler na Europa Oriental se consideramos isto:   os eslavos, eram para ele, os peles-vermelhas que deveriam ser dizimados, cedendo seu espaço para o usufruto da raça dos senhores, e aqueles que sobrevivessem ao assalto (tornando possível a “germanização do território”), e aqueles que sobrevivessem seriam os negros que deveriam ser transformados em escravos, enquanto os judeus – que para Hitler eram a mesma coisa que os bolcheviques – tinham de ser simplesmente exterminados, porque fomentavam a revolta das “raças inferiores”.

Quero lembrar que, se examinarem a linguagem dos nazistas, mostra-se claramente a sua origem estado-unidense: por exemplo, o termo essencial da linguagem nazi, Untermensch, o “sub-homem”, deve ser submetido à escravidão ou exterminado, vem de underman, e pode-se continuar sobre isso com muitos exemplos. Pois bem: se consideramos a tese de Hegel, de que a verdade é o todo, não vamos dizer as estupidezes que a ideologia dominante vem afirmando.

NT: Um dos mais importantes intelectuais brasileiros, o professor Florestan Fernandes, afirmou que a classe operária tinha necessidade das suas próprias palavras-chave para poder atingir os seus objetivos. Segundo ele, essas palavras não deveriam poder ser partilhadas pela burguesia ou outra classe social, porque a luta por elas implicaria na destruição dessas classes. Ele escreveu isso num texto em que discutia concretamente o significado da palavra “revolução”, que no contexto brasileiro havia sido usurpada pela direita golpista em 1964. Essa palavra, antes mesmo do golpe de Estado no Brasil, havia sido partilhada por comunistas e nacionalistas, e isso pode ter contribuído para a criação duma espécie de “consenso” esvaziado de conteúdo socialista, que a burguesia e os militares golpistas tentaram recuperar e reorientar para buscar obter alguma legitimidade social para a sua ditadura. Por isso, esses setores sempre chamaram ao seu golpe “revolução de 1964”. Como pensa o senhor que o seu trabalho de contra-história poderia ajudar-nos a construir as nossas próprias palavras-chave?

Domenico Losurdo: Para ser sincero, eu não acredito que possam existir palavras-chave exclusivas de uma classe social ou de um partido político. Isso por uma razão muito simples: as palavras-chave de uma época são aquelas em torno das quais se processa o combate e a luta de classes. Por exemplo, tomemos o termo “democracia”. Como se chamava o partido que mais ferozmente combatia pela manutenção da escravidão negra nos Estados Unidos? Partido Democrata! E como se chamava o partido que, após a abolição da escravidão, lutou pela “supremacia branca”? Partido Democrata! Mas será que devemos renunciar ao termo “democracia” apenas porque ele foi utilizado por partidários da escravidão e da “supremacia Branca”? Penso que não.

Hoje-em-dia, ninguém ousa dizer que é contrário à democracia, e por essa razão devemos desenvolver uma luta ideológica, uma luta de classes em torno desse termo. Enquanto uns o interpretam de um modo, outros interpretam-no de outro. Por exemplo: enquanto os proprietários de escravos e os partidários da “supremacia branca” falavam de democracia pensando somente na comunidade branca, porque, para eles, os outros não eram seres humanos propriamente ditos, do outro lado, a democracia deveria ser afirmada como um regime para todas as pessoas, e isso evidentemente incluía os negros. Já expliquei que os ditos melhores amigos da democracia, hoje, são os seus inimigos mais ferrenhos se a consideramos do ponto de vista hegeliano segundo o qual “a verdade e o todo”.

Vamos agora abordar esse problema do golpe de Estado. A questão é, na verdade, internacional, e não apenas brasileira, e podemos resumi-la na seguinte alternativa: “golpe de Estado ou revolução”? Ao seu golpe de Estado, Mussolini chamou “revolução”. À sua terrível contrarrevolução, Hitler chamou “revolução”. Hoje, as chamadas “revoluções coloridas” são todas golpes de Estado. Isso mostra que não há palavras exclusivas duma classe ou dum partido político. Por exemplo: socialismo? Trabalhador? O partido de Hitler chamava-se “Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães”. Ele tinha no próprio nome as palavras “trabalhadores” e “socialismo”. E isso, por acaso, significa que devemos desistir dessas palavras? Claro que não! O que se passou foi que Hitler e os seus partidários compreenderam que, na situação histórica do pós-guerra mundial, o liberalismo estava desacreditado e que a luta naquele momento deveria desenvolver-se em torno dessas duas palavras-chave.

O mesmo se passa com a ideia de “nação”. O termo nasceu como um termo revolucionário no interior da Revolução Francesa, porque, durante o Antigo Regime, os aristocratas se consideravam membros duma casta superior e, por isso, não viam qualquer possibilidade da existência duma comunidade nacional. Depois, os fascistas tentaram apropriar-se do termo. Isso mostra mais uma vez que a luta de classes é também a luta em torno de certas palavras-chave duma época, e hoje nós somos obrigados a lutar em torno de termos como “democracia”, ou mesmo “revolução” (contra “golpe de Estado”), como já expliquei no caso das “revoluções coloridas”.

NT: Obrigado.

2º sem. 2014

Primeira e segunda parte desta entrevista.

Losurdo em resistir.info:
  • Como nasceu e como morreu o "marxismo ocidental"
  • Por que é urgente lutar contra a OTAN e redescobrir o sentido da ação política
  • A geopolítica da Internet
  • Dalai Lama & Obama: O encontro entre dois Prémio Nobel da mentira
  • [*] Filósofo (1941-2018). Ver Wikipedia e domenicolosurdoinfobrasil.blogspot.com

    O original encontra-se na revista Novos Temas, nº 11, publicada em S. Paulo pelo Instituto Caio Prado Jr.

    Esta entrevista encontra-se em resistir.info

    09/Dez/24