Comando e controle
por Jorge Figueiredo
"Command and control",
de Eric Schlosser
[1]
, é uma obra ciclópica pela quantidade de
documentação que o autor coligiu, pelas número de
entrevistas que fez e pela abrangência dos temas que aborda. As 632
páginas deste livro condensam dez anos de esforços do seu autor.
A sua ambição é grande. O livro trata da história
das armas nucleares, da ilusão de segurança que proporcionam, da
política em relação a elas, das questões de comando
e controle das mesmas, do "risco aceitável", de
questões estratégicas e de questões de segurança
quanto às ogivas. Apesar de o tema parecer árido e rebarbativo a
sua leitura não é. Pode ser lido como um
thriller,
mas os factos e as situações que descreve são bem reais.
Em primeiro lugar deve-se destacar a estarrecedora quantidade de acidentes com
ogivas, asneiras no seu manuseamento, inépcias, displicências de
responsáveis militares e políticos dos EUA (e europeus
também) com as armas nucleares e os seus vectores, bem como os
sistemáticos encobrimentos verificados. A maior parte do enorme
número de acidentes que ocorreu foi cuidadosamente ocultada e nunca
chegou à opinião pública. Só quando era
inevitável as autoridades estado-unidenses os reconheciam, como no caso
de Palomar, aldeia no Sul da Espanha onde a USAF perdeu ogivas nucleares que
contaminaram com plutónio uma vasta área agrícola. Mas
nunca ninguém soube, por exemplo, que uma bomba nuclear esteve prestes a
explodir numa base americana no Marrocos. E poucos deram atenção
ao desastre que vitimou um B-52 com cargas termonucleares na Gronelândia
e espalhou o seu núcleo de plutónio.
Ter conseguido descobrir tamanha quantidade de casos já é uma
façanha do autor, mas ele vai mais além com a discussão de
questões relativas à segurança nuclear. Ao
contrário do que as autoridades sempre asseguraram, o risco de uma
explosão nuclear por acidente nunca foi irrelevante. Houve numerosos
casos em que isso poderia ter acontecido. Impressiona o facto de quase sempre as
ogivas nucleares serem manuseadas por rapazes de pouco mais de 18 anos aos
quais apenas foi dada uma breve instrução preparatória.
Muitos deles drogam-se habitualmente. Por sua vez, os famosos bombardeiros B-52
da antiga SAC, que durante anos voaram permanentemente com bombas
termonucleares sobre as nossas cabeças, muitas vezes tinham mais idade
do que as suas tripulações. Eram aparelhos com mais de 25 anos de
idade e o número de incêndios e acidentes com eles foi espantoso.
Em tais condições parece um milagre não ter chegado a
haver qualquer explosão nuclear ou termonuclear
"só" acidentes com muitas perdas de vida e derramamento de
plutónio venenoso. No fim da década de 1980 os EUA tinham cerca
de 14 mil ogivas e bombas nucleares, espalhadas por todo o mundo (Turquia,
Japão, Coreia do Sul, Grã-Bretanha, Alemanha, Marrocos, etc).
O autor debruça-se sobre o desastre ocorrido na localidade de Damascus,
Arkansas,
com um míssil Titan II, um ICBM movido a combustível
líquido hipergólico
[2]
. Além dos seus aspectos técnicos, analisados com
minúcia, o autor mostra a cadeia de comando e controle em que estava
inserido. As lutas intestinas dentro das forças armadas (US Army, US
Navy, US Air Force e o antigo SAC) pelo controle das ogivas foram sempre
constantes ao longo de toda a sua história. Além disso, a
princípio (anos 50) houve uma luta pelo controle das ogivas entre o
poder civil e os militares mas esta acabou por ser perdida pelos
primeiros. É uma mentira que o presidente dos EUA tenha a última
palavra, final e decisiva, no desencadeamento de uma guerra termonuclear. Este
poder acabou por ficar com os militares, a princípio por uma
"delegação secreta" do presidente dos EUA. Actualmente,
até um simples comandante da NATO tem o poder de utilizar uma arma
nuclear.
Apesar do anti-sovietismo que transparece no livro, este é rico em
elementos factuais que permitem um entendimento razoável dos mecanismos
de poder que na prática se traduzem naquilo que os militares
chamam a cadeia de "comando e controle". O preconceito
do autor manifesta-se sobretudo por aceitar como bom o
pressuposto central da política estado-unidense de que a URSS seria
capaz de iniciar um ataque nuclear. Manifesta-se igualmente na
afirmação absurda de que o Boeing 747 coreano derrubado sobre a
Sibéria ter-se-ia afastado da sua rota "por acidente" (como se
um Boeing pudesse desviar-se em mais de dois mil quilómetros "por
acidente"). No entanto, apesar destes viéses, a leitura do livro
é altamente instrutiva.
Alguns poderão dizer que tudo isso é apenas história, que
é passado. Não é. Os temas que levanta permanecem actuais
e mais ainda agora, desde o primeiro semestre de 2014, quando a classe
dominante estado-unidense inverteu a sua política e passou à
confrontação aberta com a Rússia. O putsch em Kiev e a
instalação de um governo nazi na Ucrânia, promovidos pelo
governo dos EUA, deram início a uma nova escalada militar. Além
de mercenários americanos e polacos que já infestavam a
Ucrânia, o envio recente de 300 homens do US Army a fim de treinarem
batalhões nazis ucranianos dá um cunho oficial à
intervenção militar estado-unidense. Os EUA ignoram os governos
servis da União Europeia e o acordo Minsk II, além de fazerem
provocações militares desde o Báltico até o Mar
Negro. Trata-se de uma escalada militar que pode resultar numa
confrontação. E esta confrontação pode ser nuclear.
[1]
Eric Schlosser,
Command and control
,
Penguin Books, 2013, 632 p., ISBN 978-9-141-03791-2
[2] Hipergólico: que se inflama expontaneamente quando em contacto com
um oxidante.
Esta resenha encontra-se em
http://resistir.info/
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