A edição portuguesa do Monde Diplomatique em Setembro/2025 publicou em primeira página um artigo do Sr. Luís Fazendeiro (LF) intitulado Porque insiste Portugal na expansão da rede de gás fóssil? O Monde Diplomatique prestou um mau serviço ao seus leitores ao divulgar uma tal somatória de vulgaridades, disparates, confusões e lugares comuns. No entanto, como se trata de um jornal sério e influente, o que ali se diz merece ser analisado.
Comecemos pelo título do artigo. LF esgrime a palavra “fóssil” como se fosse algum insulto para denegrir o oponente. Mas há duas coisas importantes que convém esclarecer: 1) Fóssil não é um insulto; e 2) Nem o gás natural nem o petróleo são necessariamente fósseis.
Aparentemente LF nunca ouviu falar da origem abiótica do petróleo e do metano. Esta foi bem estabelecida pela escola ucraniana de geologia (em velhos tempos), é amplamente aceite por grande número de geólogos, físicos, químicos, astrónomos e cientistas em todo o mundo. Assim, será recomendável que leia, por exemplo, Thomas Gold, A biosfera profunda e quente: O mito dos combustíveis fósseis, ou Vladimir G. Kutcherov, Origem Abiogênica Profunda de Hidrocarbonetos e Formação de Depósitos de Petróleo e Gás. Mas se não quiser se dar ao trabalho de estudar tais obras pode simplesmente verificar na literatura científica corrente que há numerosos corpos celestes que contêm hidrocarbonetos – eles não são fósseis. Em Titan, satélite de Saturno, há mares e oceanos de metano liquefeito. Hoje em dia, só jornalistas preguiçosos continuam a repetir essa balela dos hidrocarbonetos fósseis. Poucos combustíveis (tais como a turfa) são garantidamente fósseis.
SUCATEAR O MAIOR INVESTIMENTO DA HISTÓRIA DE PORTUGAL
Ultrapassada esta questão inicial, convém recordar que a introdução do GN na matriz energética portuguesa, em 1997, foi o maior investimento único já realizado em toda a História de Portugal. Em quase 900 anos de vida como país independente nunca houve um investimento de tamanho vulto. A preços do fim da década de 1990 foram investidos cerca de 2,1 mil milhões de euros (~€300 milhões no terminal metaneiro de Sines; ~€400 milhões na rede nacional de transporte; ~€700 milhões na redes de distribuição regionais; e ~€700 milhões na central da Turbogás). É claro que isto não teria sido possível, num espaço de tempo tão curto, sem o apoio financeiro do Feder (foi das poucas coisas boas que a UE fez para Portugal).
Ora, como todo e qualquer investimento, há que maximizar o seu retorno. É um princípio de elementar senso comum e válido tanto para a macroeconomia como para a microeconomia. Mas torna-se ainda mais verdadeiro e com profundas implicações macroeconómicas e de desenvolvimento quando se está diante do mais colossal investimento já realizado na história do país. Apesar disso, ao invés de aproveitá-lo, LF quer sucateá-lo!
Sim, é verdade. Ele quer jogar no lixo infraestruturas que agora, a preços de 2024, valerão cerca de 3,8 mil milhões de euros. Por que? LF diz que é para evitar “uma dependência aguda de gás fóssil estrangeiro e eternizar o tempo de vida da rede [de gás], numa altura em que se deveria estar a discutir (e planear) o seu eventual desmantelamento, devidamente faseado e gradual” (sic). Assim, recusa quaisquer novos investimentos gasistas a fim de não aumentar as despesas do Estado “quando se avançar para o encerramento de muita desta infraestrutura”.
Mas qual a razão deste ódio ao gás natural? Diz LF que é para evitar o “agravamento da crise climática”. Este é agora um novo nome para o que antes era chamado de “aquecimento global” e que eu chamo de “impostura global”. Como dizia o meu saudoso amigo Eng. Rui Gonçalo do Carmo Moura, um dos poucos climatologistas portugueses, aquecimento global é um conceito espúrio. Tinha razão. Um médico ao medir a temperatura de um paciente dispõe de sítios precisos para isso (áxilas, etc), representativos de todo o corpo. Mas como medir a temperatura de um corpo do tamanho do planeta? Quais são os sítios? Dizem os crentes na religião aquecimentista que é uma média de temperaturas verificadas em inúmeros sítios (mas não sobre os oceanos), com ponderações que ninguém sabe como são feitas e com cálculos que ninguém revê. Em resumo uma média que se presta a toda a espécie de trapalhices, como revelou o escândalo do Climategate uns anos atrás. Hoje há uma verdadeira indústria do aquecimento global, com toda espécie de interesses criados (em Portugal e alhures) e muita gente vive à conta desse maná bem financiado.
ALMA GEMEA DE BAERBOCK
Outra razão para LF diabolizar o gás natural é que, explica, “tanto em 2024 como em 2023, a Rússia foi o terceiro maior fornecedor do gás consumido em Portugal, sendo que é impossível não salientar que o país continua desta forma a contribuir para o financiamento da máquina de guerra russa”. Temos assim que LF é uma alma gemea da sra. Annalena Baerbock, a russófoba ex-ministra alemã do partido Verde. Também ela defendia a liquidação da energia nuclear na Alemanha (o que foi consumado), da energia do carvão (em parte conseguida) e do gás natural (alcançada graças à ajuda de uns mergulhadores da US Navy) – e a tentativa de substituição de tudo isso por... energias intermitentes, que muitos gostam de chamar "renováveis”. Os resultados destas políticas mentecaptas foram tristes. A Alemanha desde então é um país estagnado, numa crise económica profunda (crescimento de 0,2% previsto para 2025) e em processo de desindustrialização acelerada.
LF parece ter pouca noção da economia do mundo real pois diz que “Ao contrário do que se possa pensar (sic) a maioria dele [GN] não é consumida nas nossas casas ou escritórios”. Mas quem poderia pensar uma coisas dessas? É claro que, tal como em toda a parte do mundo, o grosso do consumo de GN é sempre na indústria e em centrais termoelétricas (para cobrir pontas em diagramas de carga ou, inicialmente, para a viabilização económica de novas redes de gás).
De um modo naif LF considera que a geração de eletricidade “deverá ser a médio prazo satisfeita quase exclusivamente (sic) por fontes renováveis”. É espantoso o desconhecimento das realidades industriais e energéticas demonstrado por LF. Ele está convencido de que isso é possível. Recorde-se: o apagão de 28 de Abril p.p. verificado em Portugal e Espanha foi consequência também do excesso de energias intermitentes colocada na rede (as renováveis de que ele tanto gosta). Mas também convém recordar: as unidades de produção que depois do apagão contribuíram para a recuperação da rede foram precisamente as termoelétricas a gás natural (Tapada do Outeiro e Carregado).
Aparentemente LF considera factível, na produção de eletricidade, substituir tudo por energias intermitentes (ele é categórico: diz que a substituição “deverá” acontecer, ao invés de “poderá”). Para ele, o problema que subsiste é apenas na grande indústria, como a do cimento, aço, pasta de papel, químicos, refinação, vidro, etc. Ele não tem solução para isso, mas mesmo assim assevera: “não podemos continuar a consumir gás fóssil para sempre e o imperativo da descarbonização exige que o seu consumo seja rapidamente reduzido” (sic). Por isso propõe que se aplique uma tal “Estratégia industrial verde”, que foi aprovada na AR em 2021 e parece que está (merecidamente) esquecida. Considera-a "crucial" para determinar em que setores se deve “desinvestir ou que devem até, progressivamente, ser extinguidos”. Toda a gente (ou quase) quer mais investimento na indústria, mas LF quer o desinvestimento ou a sua extinção. O Bornéu e a Papuásia estão precisamente nesta situação tão almejada por ele: não têm indústria nenhuma.
O autor de tais teses parece viver num mundo de fantasia pois não compreende que quem manda no regime neoliberal é o capital monopolista e financeiro e que a motivação dele nada tem a ver com a dita “justiça climática” que defende (LF escreveu um livro com o título pomposo de "Sobre a mudança: Justiça climática e transição ecológica no século XXI"). Assim, refugia-se na fantasia de que uma lei qualquer aprovada no parlamento seria suficiente, se aplicada, para realizar os seus desejos.
Em algumas coisas LF até tem razão, como quando condena a produção de hidrogénio em grande escala – mas condena-a pela razão errada. É realmente de um irracionalismo de bradar aos céus pretender produzir um vector energético (o H2, que não é energia primária), batizá-lo como “verde” por ser produzido com energias intermitentes, e a seguir injectá-lo numa rede de energia primária (o CH4), misturando os dois gases. No entanto, LF só critica este absurdo porque considera que com isso “estamos apenas a prolongar uma dependência aguda de gás fóssil estrangeiro e eternizar o tempo de vida da rede”. Ou seja, ele não quer a injeção do H2 só porque mantém a rede do CH4. Mas na verdade tal produção/injeção de hidrogénio pode/deve ser condenada em si mesma – é para isso que servem as leis da termodinâmica e os cálculos económicos. Verifica-se que a possibilidade realista de produzir CH4 através de processos biológicos (o biometano) e injetá-lo nas redes de GN nem sequer é aflorada por LF.
No campo da energia, o século XIX foi o do carvão e está acabado. O século XX foi o do petróleo e, com o Pico máximo de produção do petróleo convencional (já verificado) e o avizinhar do Pico para todos os petróleos recuperáveis, já está no fim. Assim, às taxas de declínio atuais, em poucos anos (2050?) esta preocupação de LF estará superada. Mas, para seu desgosto, o século XXI e seguinte(s) será do GN – o pico do GN convencional é remoto.
Apesar de confuso, mal orientado, pejado de preconceitos, ignorando o funcionamento real da economia capitalista – e os princípios de planeamento que poderiam ser aplicados se conseguissemos libertar-nos do regime neoliberal e recuperar a soberania nacional –, verifica-se que LF acredita naquilo que defende. O perigo é os leitores do Monde Diplomatique ficarem confusos e alguém tentar por a energia a reboque dos arautos desta falsa climatologia.