A curva da estrada (*)

por Jorge Figueiredo

A curva da estrada, de Ferreira de Castro, 12ª ed., Ed. Guimarães Acabo de reler um belo livro. É “A curva da estrada” , do Ferreira de Castro. Passa-se na Espanha dos anos 30. Conta-se ali a trajectória de um socialista “histórico” espanhol que, gradualmente, vai perdendo a sua combatividade de juventude. Paralelamente, é submetido às tentações de poder e “namorado” pelo partido da direita. Ele chega a negociar a traição com o partido da direita: a troca do seu lugar de deputado nas fileiras do partido socialista pelas fileiras do partido da direita, em troca de benefícios como um lugar de ministro. A história termina num semi- happy end . Graças a influência de um filho o homem tem um rebate de consciência e toma um caminho razoavelmente digno: abandona a política. A traição, pelo menos, não se consumou.

Esta estória contada por FC deixa-me pensativo. Quando a revolução está longínqua, as tentações do poder afectam também os quadros que deveriam defendê-la. Alguns tentam disfarçar essa capitulação com uma verborreia justificadora. Pior: tentam arrastar mais camaradas por esse caminho. São sem conta os Partidos Comunistas que não souberam resistir a tais tentações e acabaram por soçobrar. Vemos os exemplos recentes do suicídio do P. italiano, do apodrecimento da direcção do P. francês, dos tristes resultados produzidos no P. espanhol pelo eurocomunismo do Sr. Carrillo, etc, etc.

No mundo real raramente as coisas aparecem com a clareza exemplar descrita por FC no seu romance. Elas surgem, geralmente, de uma forma mais confusa, com piruetas verbais, vedetismos mediáticos, disfarces, declarações de pureza “democrática” e por aí afora. Mas tudo isso não passa de disfarce quando se procura a essência de tais posições: trata-se de uma política de capitulação que conduz ao abandono de posições revolucionárias e à socialdemocratização do P. Uma eventual vitória de tais posições só poderia conduzir à derrota, como se verificou com os Partidos acima citados.

Em contrapartida, os Partidos Comunistas que mantêm posições dignas e não abdicam dos seus princípios conservam as suas forças mesmo em meio a grandes tempestades e conseguem até mesmo reforçá-las. É o caso do P. do Brasil, que nunca abdicou dos seus princípios. É o caso do heróico P. colombiano, que consegue enfrentar a oligarquia colombiana e resistir à intervenção do imperialismo americano. É o caso exemplar P. cubano, que estando há 40 décadas ao lado do monstro ianque consegue resistir-lhe. Há, como se vê, exemplos pela positiva e pela negativa.

Numa óptica quantitativista, um organismo quando perde substância enfraquece-se. É a visão clássica do “quanto mais melhor”. É também a óptica eleitoreira, daqueles que vêm a política apenas como um jogo que se faz de quatro em quatro anos. Trata-se, contudo, de uma visão extremamente limitada. Os médicos sabem que quando um organismo está parasitado é preciso aplicar-lhe um vermífugo a fim de provocar a eliminação dos parasitas. Verifica-se então que, ao perder tal substância, o dito organismo ao invés de enfraquecer-se sai reforçado. Esta é a óptica qualitativa, superior à quantitativa. A troca de quantidade por qualidade faz parte da vida e da política real.

Brecht apontou “As cinco dificuldades para escrever a verdade”. Pode-se encontrar esse texto em português, numa bela tradução de Ernesto Sampaio, em http://resistir.info . Vale a pena le-lo. A primeira das dificuldades listadas por Brecht é a coragem. Penso que hoje ela é mais necessária do que nunca, em particular ao CC. Tibiezas, vacilações, hesitações, contemporizações não levam a nada de positivo. É preciso que haja a coragem necessária para tomar a medida que se impõe: eliminar do P. os eurocomunistas serôdios que se apresentam com as falsas roupagens de renovadores. Eles não se importarão com isso pois já perderam há muito aquilo que é instintivo em todo comunista: perguntar-se, quando elogiado e acarinhado pela reacção, qual foi a asneirada cometida.

(*) Publicado originalmente no semanário Avante! de 29/Maio/02, secção "Tribuna da Conferência".

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

01/Jun/02