O golpe de Estado do presidente Mattarella
O que aconteceu na Itália na noite de domingo 27 de Maio pode ser
considerado como um golpe de Estado legal. O presidente Mattarella bloqueou o
processo democrático e constrangeu o primeiro-ministro designado
à demissão, na sequência do veto que fez ao nome de Paolo
Savona como ministro das Finanças. Este veto foi provocado pelas
posições eurocépticas e anti-euro de Paolo Savona, antigo
ministro da Indústria e antigo presidente da Cofindustria, a
confederação patronal italiana. Este veto correspondeu portanto
às opções ideológicas de Mattarella e pode-se
pensar que foi emitido tanto a partir do [palácio] Quirinal como dos
edifícios da União Europeia em Bruxelas.
É portanto um acontecimento de extrema gravidade. O M5S, que era um dos
dois partidos da coligação que apoiava o primeiro-ministro
decidiu então naquela noite efectuar um acto de acusação
do Presidente da República por abuso de poder. Além disso, isso
significa novas eleições na Itália, eleições
que sem dúvida ocorrerão em Outubro próximo.
Um abuso de poder
O Presidente da República italiana arrogou-se portanto direitos que ele
não tem. Convém reler a Constituição italiana. Esta
diz, no seu artigo 92: «
Il Governo della Repubblica è composto del Presidente del Consiglio e
dei ministri, che costituiscono insieme il Consiglio dei ministri. Il
Presidente della Repubblica nomina il Presidente del Consiglio dei ministri e,
su proposta di questo, i ministri.
[1]
» Os comentários, em particular aqueles de Constantino Morati, um
dos redactores da Constituição italiana, são muito claros
sobre este ponto: "A proposta dos ministros feita pelo primeiro-ministro
designado deve ser considerada como estritamente obrigatória
(contraignante)
para o chefe do Estado"
[2]
. A recusa a ratificar uma nomeação não poderia
justificar-se senão no caso de condenações criminais ou de
conflitos de interesse demasiado evidentes.
Ao opor o seu veto à nomeação de Paolo Savona, o
Presidente Mattarella ultrapassou realmente os poderes que lhe eram conferidos
no quadro da Constituição. Deste ponto de vista, pode-se
considerar que se trata de um "golpe de Estado", um "golpe de
Estado" certamente legal mas ainda assim um "golpe de Estado". A
reacção dos dois partidos que apoiam o governo do Sr. Conte, o
M5S e a Lega, não se fez esperar. Desde domingo à noite o
dirigente do M5S, Sr. Luca di Maio anunciava que o seu movimento iria
apresentar uma proposta de inculpação do Presidente por abuso de
poder (mas este procedimento é longo e com pouca probabilidade de
êxito) e Matteo Salvini, o dirigente da Lega, falava de
ocupação financeira da Itália.
Um golpe de força
Pois o Presidente Mattarela não se contentou em provocar a
demissão do Sr. Conte. Ele também escolheu o Sr. Carlo
Cattarelli, um antigo economista do FMI e partidário da mais brutal
austeridade orçamental, como primeiro-ministro. Não seria
possível exibir melhor o seu desprezo pelo voto dos eleitores italianos
aquando das eleições gerais de 4 de Março último,
uma votação significou o colapso dos dois partidos, o PD e a
Forza Italia, que haviam dominado a vida política italiana desde
há uma quinzena de anos, e o êxito dos dois partidos anti-sistema,
opostos justamente a esta austeridade, que são o M5S e a Lega. Deste
ponto de vista, quando comentadores italianos, quer sejam da Lega ou
pertença à esquerda alternativa como o filósofo Diego
Fusaro, falam de "golpe de Estado dos mercados financeiros e da
União Europeia", não se pode duvidar que os actos do
Presidente Mattarella não dão credibilidade às suas
declarações.
O governo do Sr. Cottarelli não terá maioria no Parlamento. Ele
será portanto um governo estritamente "técnico",
encarregado de gerir os "assuntos correntes" antes das novas
eleições que deveriam ocorrer no Outono. Ora, o PD e a Forza
Italia continuam a baixar nas sondagens actuais. Portanto é
provável que estas eleições retornem uma maioria ainda
mais forte ao M5S e à Lega do que aquela que têm hoje.
Antagonismo mortal
O que acaba de se passar na Itália ilustra muito bem o antagonismo
mortal que existe entre a ordem liberal e a ordem democrática
[3]
. O "golpe de Estado" de Mattarella deveria abrir os olhos a todos
aqueles que, na Itália e em França, mas também na Espanha
e em Portugal, ainda alimentam algumas ilusões quanto às
instituições da União Europeia. Mais do que nunca, frente
a um inimigo que não hesita em violar as suas próprias leis,
será preciso pensar as condições de alianças que
permitirão vencê-lo.
Além disso, este "golpe" não é único na
História. Foi o que o Marechal Mac Mahon tentou em Maio de 1877 contra a
maioria republicana na Câmara dos Deputados. Sabe-se o que aconteceu.
Tendo esta maioria sido reconduzida por novas eleições, Mac Mahon
submeteu-se e depois demitiu-se...
28/Março/2018
[1] «O governo da República é composto pelo presidente
do Conselho e ministro que constituem, em conjunto, o Conselho de Ministros.
O presidente da República nomeia o presidente do Conselho de Ministros
e,
sob proposta deste
, os ministros". (O trecho em negrito é da minha responsabilidade)
https://it.wikisource.org/wiki/Italia,_Repubblica_-_Costituzione
[2] Mortati C.,
Istituzioni di diritto pubblico,
Cedam Casa Editrice dott. Antonio Milani, Padova, 1952, citado na
edição de 1975, p. 568
[3] Ver Sapir J.,
Souveraineté, Démocratie, Laïcité,
Paris, éditions Michalon, 2016.
[*]
Economista.
O original encontra-se em
www.les-crises.fr/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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