Seis semanas em Bagdad sob a ocupação
Testemunho do médico belga Geert Van Moorter acerca da
ocupação americana
O Dr. Geert Van Moorter, da organização Medicina para o Terceiro
Mundo, regressou há dias do Iraque, onde permanecera desde o
início de Julho. Um testemunho exclusivo sobre a vida quotidiana sob a
ocupação e as numerosas formas de resistência.
O presidente Bush diz que a situação em Bagdad melhora a cada dia
que passa. Foi o que viu?
Geert Van Moorter.
De início tem-se a impressão que tudo corre mais ou menos bem. A
vida segue o seu curso. Numerosos estabelecimentos comerciais estão
abastecidos. Apenas os Jeeps americanos destoam. Mas logo que cai a noite, toda
a ilusão desaparece: antes da guerra, a cidade animava-se ao cair da
noite. Viam-se grupos de pessoas a conversar e a conviver nas ruas até
à 1 ou 2 horas da manhã. Agora, Bagdad à noite é
uma cidade fantasma. Além disso, os americanos decretaram o recolher
obrigatório a partir das 23 horas.
Depressa me apercebi que a população sofre aínda
terrivelmente os efeitos da guerra. Os iraquianos não podem compreender
como é possível que, quatro meses após o fim oficial do
conflito, continue a haver apenas algumas horas de electricidade por dia.
Há também enormes problemas com o fornecimento de água
potável. O abastecimento de combustíveis continua gravemente
desorganizado. Numerosas pessoas me asseguraram que, após a devastadora
primeira guerra do Golfo, em 91, na qual a maior parte do país
permaneceu sob controle do governo iraquiano, todos estes problemas foram
resolvidos em menos de dois meses. Presentemente, toda a estrutura
administrativa do país está profundamente desorganizada. A maior
parte dos serviços públicos e dos ministérios continuam
inactivos. As empresas do Estado estão fechadas. Centenas de milhares de
trabalhadores perderam os empregos e estão mais ou menos na
miséria. De que vivem? Não faço ideia; já
não devem ter economias, depois de duas guerras e de doze anos de
embargo. Por sorte, o programa «petróleo por alimentos» vai
funcionando. Cerca de 80% da estrutura de distribuição montada
pelo anterior regime de parece ainda existir. É óbvio que tudo
isto não passa de fraca consolação.
E no entanto, instalaram um «governo provisório», não
é? Este não consegue resolver os problemas?
Geert Van Moorter.
Todas as pessoas com quem falei não manifestaram senão desprezo
por este conselho dos 25 que, pretende agora dirigir o país.
«Primeiro, tinhamos um Saddam, agora temos 25», ironizava um dos
meuis interlocutores. «A maior parte são oportunistas que
permaneceram longos anos no estrangeiro. Entraram em Bagdad atrás dos
tanques americanos.» São os americanos que puxam os cordelinhos. Os
pretensos «ministros» não têm rigorosamente nenhum voto
na matéria.
AS CICATRIZES CONTINUAM A DOER
As pessoas conseguem esquecer a guerra? Podem recompor-se das apreensões
e da tensão desses dias?
Geert Van Moorter.
Muita gente continua a ser diariamente confrontada com as
consequências dos bombardeamentos. Reencontrei, por exemplo, Mohammed Ali
Sarhan. Durante a guerra, perdeu as duas pernas. Em 7 de Abril, numa
ambulância que se dirigia para o hospital Yarmouk de Bagdad, acompanhava
a sua mulher no fim da gravidez e uma outra já em trabalho de parto. Foi
então que foram alvejados por um tanque americano. Mohammed foi
projectado da ambulância, as duas mulheres e os bebés a ponto de
nascerem pereceram carbonizados. Quando testemunhas da cena pretenderam ajudar
Mohammed, foram corridos a tiro. Posteriormente, pude reunir testemunhos
suplementares do pai e da irmã da outra mulher grávida, que
também seguiam na ambulância. A irmã continua em
convalescença no seguimento de queimaduras graves e de uma extensa
fractura. O seu depoimento confirma os factos: os americanos atiraram sobre a
ambulância sem qualquer razão.
UMA OCUPAÇÃO SEM PERSPECTIVA
Como vivem as pessoas a presença do exército americano?
Geert Van Moorter.
Uma intérprete disse-me: «Sinto-me como uma estrangeira no meu
próprio país. Cada vez que vejo americanos, sinto-me ferver de
cólera». E contou-me que antes da guerra tinha uma vida social
muito rica. Hoje não sai à noite e não ousa sequer andar
de automóvel.
Os soldados americanos são arrogantes. Os iraquianos que, a
princípio ostentavam uma atitude neutra ou um pouco de simpatia para com
os americanos por eles terem expulso Saddam Hussein, estão agora
convencidos que o exército americano não veio para os ajudar.
Milhares de pessoas são detidas no aeroporto internacional de Bagdad.
Toda a pessoa «suspeita» é detida e com frequência
abatida sumariamente. Fui ver um rapazito de 10 anos, baleado num posto de
controle. Tinha o ombro totalmente retalhado e ficou inválido para toda
a vida. E trata-se de uma criança sem família e sem abrigo. a
polícia militar americana, que era suposto reprimir os abusos do
exército de ocupação, não mexe um dedo para impedir
os abusos de poder e as agressões cometidas pelos soldados americanos.
Quando perguntei a um deles como reagiam perante as queixas dos iraquianos,
respondeu-me: « É a guerra, meu!»
Que pensam os soldados americanos da sua presença no Iraque?
Geert Van Moorter.
Um soldado disse-me que não podem consumir qualquer alimento ou bebida
local, mas apenas as suas próprias rações. É
evidente que isto é insustentável.
Tive também uma conversa cordial com um soldado numa viagem de Jeep. Ele
trazia um capacete bastante pesado e um espesso colete à prova de bala.
A temperatura era superior a 40°C e eu levava uma T-shirt. Disse-lhe que
estava cheio de calor e perguntei-lhe se ele não abafava sob aquele
equipamento. Resposta: «Claro que sim. Tenho a sensação de
ser eu próprio um prisioneiro. Não podemos abandonar o nosso
Jeep, não estamos seguros em lado nenhum.»
A RESISTÊNCIA IRAQUIANA APRESENTA MÚLTIPLAS FORMAS
Que ideia colheu da resistência ?
Geert Van Moorter.
Naturalmente, há numerosas acções de protesto e
manifestações, organizadas por razões muito variadas. Os
desempregados, as famílias de pessoas arbitrariamente detidas, os
habitantes que reclamam água e electricidade, os militares que
não recebem salários há meses. Depois, é claro,
há a resistência armada. Eu ouvia explosões regulares,
sobretudo em pleno dia. No início de Julho, estava eu no hotel Palestine
lorsque, do outro lado do Tigre, no bairro presidencial, quando explodiu uma
bomba. Senti trepidações, viam-se nuvens de fumo. Depressa
apareceram helicópteros num constante vai e vem, assim como
camiões. Vi também um camião do exército americano
incendiado. Três horas após o atentado, fui lá. Para ver
qualquer coisa é preciso ir logo porque os americanos escamoteiam
sempre, e o mais depressa possível, todos os vestígios dos
atentados.
Já não é segredo para ninguém que o número
oficial de vítimas americanas é sempre subestimado. Averiguei
através de testemunhas directas que, apenas no decurso dos meus
primeiros quinze dias no Iraque, desde o início de Julho, houve 16
americanos abatidos.
Pode dizer-se que a resistência se intensifica?
Geert Van Moorter.
Tenho a impressão que se organiza cada dia melhor: as
acções têm agora maior amplitude, o que requer melhores
preparativos. Falaram-me de treinos militares organizados por oficiais e
generais do antigo exército. Em certas regiões, fazem-se
abertamente colectas de dinheiro para apoiar a resistência. Tive
oportunidade de ler numerosos panfletos contra a ocupação
americana. A oposição política reforça-se e
manifesta pontos de vista mais contundentes. No final de Julho, o poder
colonial encerrou três jornais porque criticavam os americanos e falavam
dos sucessos da resistência.
O senhor é um dos primeiros subscritores da queixa contra o general
Franks. Que ponto de vista tem agora sobre este assunto, após a sua
visita ao Iraque ocupado?
Geert Van Moorter.
Um dos objectivos da minha visita era precisamente colher também
informações suplementares sobre os crimes de guerra, o que
consegui. Por outro lado, recebi toda uma série de novas queixas e todas
elas respeitantes precisamente a graves crimes de guerra. A queixa apresentada
na Bélgica contra o general Franks visa a obtenção de um
inquérito independente sobre estes crimes. Mas este foi precisamente o
momento que o governo belga escolheu para liquidar a lei de competência
universal. Isto dificilmente poderá ser compreendido pelos iraquianos.
CONTACTOS PARA APOIAR A RESISTÊNCIA IRAQUIANA:
StopUSA:
www.stopusa.be
,
info@stopusa.be
Médecine pour le Tiers monde,
info@m3m.be
,
www.m3m.be
.
O original desta entrevista encontra-se em:
http://www.ptb.be/scripts/article.phtml?lang=1&obid=20725#4
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Tradução de Carlos Coutinho.
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info
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