Guerra imperialista e sinais de um declínio
por José Reinaldo Carvalho
e Carlos Umberto Martins
[*]
Dentre os grandes acontecimentos de nossa época, as
manifestações maciças em escala planetária contra a
guerra imperialista se inscrevem como um dos mais destacados. Seu verdadeiro
significado será aquilatado com o tempo histórico e seus reflexos
se farão sentir nas lutas políticas e sociais vindouras. Mas
não cabe dúvida de que nos dias 15 de fevereiro e 15 de
março deste ano os povos escreveram uma página inédita na
história contemporânea e protagonizaram um episódio
transcendente. Inauguraram um novo momento da luta antiimperialista. Fundaram o
marco miliário de uma nova luta, desencadearam uma insopitável
força até então represada e latente, lançaram as
bases de um internacionalismo com caráter mais amplo, com forma
flexível e conteúdo radical e revolucionário, o
internacionalismo das forças em luta contra a barbárie, pois
é do que se trata quando se generaliza a opressão decorrente da
globalização capitalista e a guerra de agressão se
impõe como única via do imperialismo para enfrentar sua
prolongada crise.
A grande mobilização de massas contra a guerra corresponde
à emergência de novos pólos, num quadro em que
objetivamente está ruindo a ordem mundial inaugurada na
última década do século XX. Aos poucos vai aparecendo uma
polarização entre o imperialismo estadunidense e os povos. O
isolamento político e diplomático do governo Bush, a
condenação de sua política belicosa por milhões de
pessoas nas ruas em todo o mundo, o veemente repúdio à
própria essência da política imperialista, assinalam que
estamos no limiar de nova fase da luta antiimperialista. Com uma bandeira
política simultaneamente ampla e radical a luta contra a guerra
imperialista retorna ao proscênio da nossa época o
protagonismo do movimento político de massas.
Um massacre baseado em mentiras
O novo quadro em formação decorre de uma tomada de
consciência de que a humanidade está a braços com a mais
grave ameaça à sua sobrevivência desde sempre até os
nossos dias. A segunda guerra americana no Golfo contém a ameaça
de provocar uma catástrofe humana de proporções inauditas.
A ação da colossal máquina de guerra norte-americana no
Golfo cerca de 300 mil soldados, centenas de belonaves, aviões,
armas sofisticadas, inclusive as de destruição maciça,
milhares de toneladas de explosivos , o unilateralismo das
ações do governo estadunidense e o furor de facínoras
encastelados na Casa Branca, num flagrante desrespeito a todas as normas
diplomáticas, a denegação do papel da ONU como organismo
de ação multilateral, revelando uma escalada agressiva sem
volta que promoverá no largo prazo a reconfiguração da
ordem mundial, geram horror nas pessoas e insegurança
generalizada em todo o sistema internacional. Diante desse horror, é de
pasmar a sem-cerimônia e a desfaçatez com que os meios de
comunicação, retransmitindo os
press-release
do Pentágono, se referem à mãe de todas as
bombas, como se se tratasse de um novo brinquedo ou utensílio de
uso ordinário na vida doméstica e profissional das pessoas.
O mais desatento observador percebe que atua às escâncaras no
mundo um partido da guerra, mentor, proponente e executor de um
genocídio, a destruição de objetos civis e bens culturais,
o que certamente provocará danos irreversíveis ao Iraque e em
perspectiva a todos os países da região. É
incalculável o custo humano e material das ações que os
Estados Unidos estão a dispostos a levar às últimas
conseqüências.
Os argumentos para atacar o Iraque não se sustentam na
lógica nem nos fatos. A propaganda do partido da guerra diabolizou o
presidente iraquiano Sadam Hussein e tenta fazer crer na necessidade de agir
militarmente para depor um perigoso ditador. Não há precedente
histórico, nem legitimidade amparada no direito internacional. De
assinalar, a hipocrisia, pois o presidente iraquiano já foi aliado dos
Estados Unidos quando convinha aos interesses estratégicos da
superpotência, como foram e são aliados dos norte-americanos um
sem-número de tiranetes, monarcas, generais em todos os continentes,
régulos de província do império moderno. O arsenal de
mentiras exibe a acusação de que o Iraque protege terroristas e
é aliado de Osama Bin Laden, outro ex-aliado de Washington adestrado
pela CIA. Nada tem sido provado. Desde a primeira guerra americana no Golfo
Pérsico em 1991, o governo iraquiano atua na defensiva, procurando
contornar os terríveis efeitos do embargo a que foi submetido como
força derrotada no campo de batalha. A diabolização do
regime iraquiano assumiu novos contornos com a acusação de que o
Iraque havia expulsado os inspetores da UNSCOM em 1998, o que teria motivado as
pressões para adotar a draconiana resolução 1441 em finais
do ano passado, atualmente em vigor. Rematada mentira. A
organização não governamental norte-americana ANSWER
publicou um circunstanciado estudo no sítio
resistir.info
no qual demonstra que os inspetores deixaram o Iraque em 1998 por
determinação da ONU, já que o governo norte-americano, que
utilizara alguns inspetores como espiões, segundo denunciou o diplomata
sueco Rolf Ekeus, havia identificado alguns objetivos a bombardear e não
queria fazê-lo enquanto estivessem em território iraquiano
inspetores do organismo internacional.
A mais importante mentira, também já desmascarada, é
a de que o Iraque possuiu armas de destruição maciça,
capazes de ameaçar a segurança dos Estados Unidos. Sobre isso, em
1998, o inspetor da ONU, Scott Ritter, declarou: Os programas em grande
escala de armas de destruição maciça haviam sido
destruídos e desmantelados fundamentalmente pelos inspetores de armas
já em 1996. O definitivo desmentido veio agora. Os
relatórios de Hans Blix e Al Baradei sobre as inspeções em
curso, que vasculharam as entranhas do Iraque, a ponto de realizar
verificações até em fábricas de produtos
alimentícios e palácios, no fundamental refutaram a
acusação da posse de armas de destruição em massa
pelo país árabe. E a destruição dos mísseis
Al Samoud demonstra que o Iraque está cumprindo estritamente as
determinações do Conselho de Segurança e que este tem
autoridade e capacidade para desarmar o país árabe.
As mentiras, que se resumem na fantasiosa tese de que o Iraque representa
uma ameaça à segurança dos Estados Unidos, são o
último recurso do governo Bush para obter legitimidade principalmente
junto à população norte-americana, onde são
crescentes as resistências à política belicosa nos meios
populares e entre círculos políticos e intelectuais.
Planos delirantes de domínio do mundo
Em que reside o perigo à sobrevivência de humanidade e quais
as verdadeiras razões da guerra americana?
Em seu delírio expansionista, Hitler concebeu um
império de mil anos. O lúcido escritor comunista
luso-brasileiro Miguel Urbano Rodrigues, em um percuciente artigo recentemente
publicado no sítio web
resistir.info
, denuncia os planos do imperialismo norte-americano de
criar um quarto Reich.
Depois do término da guerra fria, com o desaparecimento da
União Soviética e a derrota temporária do socialismo como
sistema mundial, os Estados Unidos sentiram a sensação do poder
ilimitado e de que vivem um novo momento imperial. O exercício desse
poder
manu militari
configura uma nova fase da política mundial, cujos elementos se
encontravam já em desenvolvimento latente há mais tempo. Os
eventos que marcaram a vida internacional nos anos 90 foram também
dramáticos e não poucas vezes o governo norte-americano recorreu
aos meios militares, como na Somália, na Bósnia, em Kossovo e no
próprio Iraque que sofreu diversos bombardeios. Mas jamais se viu
tamanha imprudência, unilateralidade, desrespeito ao sistema das
Nações Unidas e militarismo como agora durante a
Administração de Bush, que introduziu novos conceitos à
linha de ação imperialista dos Estados Unidos, como a guerra
infinita. Falando
urbi et orbi
depois dos atentados de 11 de setembro, em discurso no Congresso, o presidente
dos Estados Unidos, George W. Bush declarou: não se tratará
de uma guerra curta, mas prolongada, sem precedentes na história.
Essa foi a base a partir da qual os Estados Unidos adotaram depois a
estratégia da guerra preventiva, indexaram países em categorias
arbitrárias como países bandidos e integrantes do
eixo do mal, ameaçaram usar armas nucleares
(empenharemos todas as armas que sejam necessárias, disse
Bush no discurso citado) e abandonaram a diplomacia, a ponto de proclamar a
irrelevância da ONU, desmoralizando assim os organismos
multilaterais.
Claramente, os Estados Unidos estão a desafiar o mundo, segundo o
ponto de vista de que quem não está conosco está com
os terroristas (idem) e optaram por fazer valer o seu papel de poder
mundial: A conquista de nosso tempo e a esperança para o futuro
dependem de nós (idem). A deriva militarista no plano externo
corresponde internamente ao amesquinhamento do sistema democrático, do
que são exemplo o
Patriotic Act
, conjunto de normas restritivas de direitos e garantias constitucionais,
de novembro de 2001, e a criação do Departamento de
Segurança Interna, em novembro de 2002, que confere ao governo poderes
adicionais somente concebíveis em períodos de guerra ou estado de
exceção. Na época em que esses conceitos foram emitidos e
em que começaram a ser postos em prática, o presidente cubano
Fidel Castro disse com toda razão que se tratava da
proclamação de uma tirania global, sob o comando exclusivo da
força, sem a mínima legitimidade institucional. Finalmente, os
EUA proclamaram formalmente, a substituição do
multilateralismo afirmativo de Clinton, com que o ex-presidente
dissimulou o exercício da hegemonia política e militar da
superpotência americana, pelo unilateralismo baseado exclusivamente no
uso da força bruta. Os fatos se encarregaram de encerrar a
polêmica, presente em círculos acadêmicos,
diplomáticos, políticos e militares norte-americanos, acerca da
disjuntiva entre o exercício do poder brando e o poder bruto para
assegurar a liderança dos Estados Unidos. Ver a respeito o livro O
Paradoxo do Poder Americano, de Joseph S. Nye Jr, ed. UNESP, 2002. Diante
da formidável mobilização guerreira deste início de
2003, a discussão parece mais uma invocação saudosista de
algo que de há muito o vento já levou. Os Estados Unidos exercem
seu poder imperial sobretudo através da força bruta. Detêm
uma incontrastável superioridade na posse das armas convencionais e
nucleares e concebem planos mirabolantes para reforçar ainda mais sua
capacidade ofensiva e defensiva, espalharam bases militares em mais de 70
países, têm um orçamento militar de quase 400
bilhões de dólares, equivalente a um terço do gasto
militar global.
A guerra é o meio pelo qual o atual governo norte-americano
pretende dar passos para que os Estados Unidos exerçam sozinhos o poder
mundial, impedindo a formação de potências em
condições de rivalizar globalmente e mesmo a emergência de
competidores regionais. Estudo do
Quadriennal Defense Review
, do Departamento da Defesa dos Estados Unidos, datado de 30 de setembro de
2001, assinala: Embora os Estados Unidos não tenham diante de si
no futuro próximo um rival com força semelhante, existe a
possibilidade de que potências regionais desenvolvam capacidade
suficiente para ameaçar a estabilidade de regiões cruciais para
os interesses estadunidenses. A Ásia, em particular, está
gradualmente emergindo como uma região suscetível de
competição militar em larga escala. Existe a possibilidade de
emergir na região um rival militar com uma formidável base de
recursos (Extraído de L'Ernesto, revista comunista
italiana, número 6 de 2001). O mesmo documento defende ainda a
necessidade de usar a força militar para mudar o regime de um
país adversário ou ocupar um território estrangeiro
enquanto não sejam realizados os objetivos estratégicos
estadunidenses.
O massacre dos iraquianos, a transformação da antiga
civilização mesopotâmica em protetorado norte-americano,
sob governo militar administrado diretamente pelos generais estadunidenses ou
por algum governo fantoche afigura-se, dessarte, como doloroso rito de
passagem, como um dos muitos ( infinitos?!) momentos de
conflagração no quadro da guerra infinita e da
concretização dos planos delirantes de exercer seu poder global e
tirânico sobre o planeta e a humanidade. Como já foi a guerra ao
Afeganistão, onde também se pretendeu encobrir os crimes
estadunidenses com falsos pretextos. Na verdade, estavam em jogo as jazidas de
gás natural, o controle dos gasodutos e oleodutos que levam ao Mar da
Arábia e ao Mediterrâneo, assim como de uma área
estratégica a Ásia Central, no quadro dos planos de
domínio global.
Sangue por petróleo
A guerra ao Iraque, segundo momento da guerra infinita, tem a ver
diretamente com o petróleo. O Oriente Médio e a Ásia
Central, com a bacia do Mar Cáspio e o Golfo
Pérsico-Arábico, são as regiões onde mais abundam
no mundo os recursos petrolíferos. A disputa pelo controle dessa riqueza
sempre esteve no centro das atenções dos países
industrializados, desde que se transformou na principal base energética
da economia. A luta pelo controle das reservas petrolíferas esteve no
centro das ações das grandes potências e constituiu o pano
de fundo da luta do nacionalismo árabe. As grandes companhias
petrolíferas do mundo são bastante ativas na região do
Oriente Médio e Golfo Pérsico-Arábico.
Os Estados Unidos começaram a desenvolver fontes alternativas de
abastecimento petrolífero, tais como a Rússia, o México, a
Venezuela, o Mar Cáspio e a África Ocidental, mas a sua
dependência do petróleo do Golfo Pérsico-Arábico
é e continuará grande. O Iraque tem a segunda maior reserva de
petróleo do mundo, depois da Arábia Saudita. Tem potencial para
produzir oito milhões de barris por dia nesta década. É um
objetivo chave. O argumento de que o petróleo sempre esteve ali e os
Estados Unidos não consumaram antes uma ação militar
não é válido para desmentir a importância do
petróleo no atual empreendimento do governo Bush. As
condições políticas não estão
permanentemente presentes. Vivemos hoje outro momento político.
Um artigo de W. Clark vindo à luz recentemente no jornal Indy
Times, publicado em português por
resistir.info
, chama a atenção para outro aspecto
econômico desta guerra, pelo qual se compreende a divisão de
campos em interesses opostos entre o imperialismo norte-americanos e seus
competidores europeus, particularmente a França e a Alemanha. Para
além do fato de que os países imperialistas europeus
também são clientes dos fornecedores de petróleo do Golfo
Pérsico e do Oriente Médio, o que os coloca em colisão com
o objetivo norte-americano de controlar sozinhos esse recurso energético
estratégico, há um aspecto financeiro da maior importância.
Diz W. Clark em RESISTIR: O maior pesadelo do Federal Reserve é
que a OPEP, nas suas transações internacionais, abandone o
padrão dólar e adote o padrão euro. O Iraque efetuou esta
mudança em novembro de 2000 (quando o euro valia 80 centavos de
dólar) e na verdade escapou com perfeição da firme
depreciação do dólar frente ao euro ( o dólar caiu
15% em relação ao euro em 2002). Artigo de Paul Harris, no
sítio REBELION (www.rebelion.com.), em 28 de fevereiro deste ano, aponta
o mesmo fato, captado na imprensa brasileira pelo colunista da FOLHA, Gilson
Schwartz, em 09/03/2003 e em reportagem publicada pelo jornal paulista em 16 de
março último.
Um império em guerra contra o próprio declínio
O rufar dos tambores de guerra, a explosão da mãe
de todas as bombas e o rastro de horrores que deixará serão
seguramente também o sinal de alarme anunciando o declínio da
superpotência americana. Pode parecer um paradoxo, mas antes é uma
contradição dialética. O momento em que exibe maior poder
é também o do seu declínio, até então
restrito à área econômica, hoje manifesto na
política.
As bombas de Bush sobre os iraquianos evidenciam o estilhaçar
e a transformação em pó dos mitos dos anos 90, dos lugares
comuns tão em voga sobre a hegemonia inconteste dos Estados Unidos, da
ilusão da sua ascensão contínua, tão ao gosto dos
teóricos do exercício do poder brando, como
suficientemente atraentes para encantar e seduzir os teóricos
no-global
que descobriram o poder das transnacionais sem expressão
geopolítica, sem imperialismo, substituído pelo vago
império global. O discurso triunfalista que comemorava a
recuperação da hegemonia do dólar e previa o
fim das contradições interimperialistas cede lugar à
retórica e à prática belicistas, trincheira a partir de
onde o imperialismo norte-americano vai travar cruentas batalhas para prolongar
sua sobrevida.
A partir dos Estados Unidos, maior economia do mundo e centro
nevrálgico da vida internacional, irradia-se uma crise de inauditas
proporções. Há um cenário de depressão
planetária, de retração da demanda, de queda dos
índices de crescimento no conjunto das mais importantes economias do
mundo. Entre os países dependentes e medianamente industrializados, como
a Argentina, o Brasil e o México, citando apenas os casos
paradigmáticos, o panorama é de bancarrota, resultado da
aplicação das receitas neoliberais.
A maior economia do mundo , tanto a velha como a
nova, enfrenta dificuldades de tal ordem que a guerra se tornou uma
bandeira de neokeynesianos militaristas que sonham com um novo
impulso da economia a partir do ciclo
destruição-reconstrução e da
realização de maciços investimentos no complexo
industrial-militar com indução e subvenções
estatais. A nova economia não era só um conceito
falso. A partir dela os neoeconomistas extraíram a
refutação das leis da economia política marxista. Ela se
esboroou na prática, com a perda de centenas de bilhões de
dólares.
O declínio econômico norte-americano é um processo
histórico que vem de há três décadas. É este
declínio que condiciona as suas ações diplomáticas
e militares. É o pano de fundo da atual crise política
internacional, da deriva militarista, das contradições
interimperialistas, das negativas à guerra de Bush oriundas da Alemanha
e da França, do inusitado isolamento internacional do governo
norte-americano. Jamais uma potência teve, exibiu e usou semelhante
força, mas também a história dos impérios
não registra a existência de um líder com tão poucos
liderados, de um poder hegemônico tão falto de apoios.
A maior economia do mundo é também a do país com a
maior dívida externa 7 trilhões de dólares (mais de
60% do PIB- , de um déficit recorde em conta corrente de cerca de 500
bilhões de dólares 5% do PIB - , de um déficit
também recorde de 435 bilhões de dólares na balança
comercial. A balança de pagamentos, que compreende o movimento de
capitais, também é deficitária em cerca de 450
bilhões de dólares.
A decadência econômica americana passa a um novo
estágio qualitativo, porquanto o ingresso de capitais em juros,
dividendos e lucros, embora impressionante, já não é
suficiente para cobrir o rombo em conta corrente e que o fabuloso passivo
externo acumulado pelo império já está cobrando seu
preço, gerando a necessidade de crescentes remessas de renda. Já
o déficite no balanço de pagamentos, sinalizando uma crise na
conta de capitais, indica que os EUA não estão conseguindo atrair
capitais estrangeiros em montante suficiente para cobrir o déficite
corrente. É a razão por que o dólar se desvaloriza em
relação ao euro e ao iene. Os EUA já não
estão conseguindo manter um suficiente fluxo através dos
papéis do tesouro e de entes financeiros privados. Em 2002,pela primeira
vez na história, a China superou os EUA na atração de
investimentos diretos externos (IDEs). Os ventos que sopram hoje, orientando a
direção do movimento do capital estrangeiro, já não
são os mesmos dos anos 90 do século passado. A irresponsabilidade
fiscal do governo Bush tende a agravar sobremaneira esse quadro e ao
invés de reativar a combalida economia do império, ao modo
keynesiano, pode produzir um desastre ainda maior para a saúde do
dólar, pois sabe-se que o problema de fundo, a causa da ruína do
império, entrelaçada com o parasitismo, é uma taxa de
poupança interna chocantemente baixa, conforme as palavras
de J. E. Stiglitz. Falta poupança interna para financiar a
renúncia fiscal e a farra consumista do governo Bush, ou seja, o
déficit público teria de ser financiado pelo capital estrangeiro.
A prevalecer a tendência atual, não será investido dinheiro
de fora e a alternativa poderá ser a pura e simples emissão, o
que embute sério risco inflacionário. Nesse sentido, é
significativo que o FED ( Banco Central) esteja estudando a possibilidade de
comprar títulos públicos para sustentar a política do
governo Bush, cuja irracionalidade já está saltando aos olhos.
Será, segundo informações da imprensa, a primeira vez que
isto ocorre desde a Segunda Guerra.
A dívida americana é alimentada pelo crescente saldo
negativo da balança comercial, resultado de um consumismo
parasitário, exponencialmente superior ao que o país efetivamente
produz.
São dados eloqüentes a demonstrar que o dólar
forte é artificial e, embora não se possa determinar em
termos de calendário, é óbvio que não vai perdurar.
Essa é a razão por que os Estados Unidos têm na Alca
um projeto estratégico, que corresponde à necessidade de
interromper sua decadência na área que consideram seu quintal e
onde vêm sendo progressivamente suplantados pela União
Européia.
É parte desse cenário de declínio americano a
emergência de outros pólos , como o Japão, malgrado sua
prolongada crise, a China, que emerge como nova potência financeira, e a
União Européia, que se transformará globalmente, quando se
concluir sua expansão, numa força econômica equivalente aos
Estados Unidos.
Novos alinhamentos em perspectiva
Já afirmamos acima que o declínio econômico norte-americano
data de pelo menos três décadas. Onde reside, então, a
novidade do quadro atual? O novo agora é que está ocorrendo
também uma contestação cada dia mais aberta e intensa de
sua liderança política, um traço que diferencia o momento
atual, por exemplo, de 1991, quando da primeira guerra do Golfo, e da
proclamação da nova ordem mundial, pelo ex-presidente
George Bush, e até de 2001, quando da guerra ao Afeganistão, para
falar apenas de dois episódios recentes em que os Estados Unidos
conseguiram organizar em apoio à sua política uma
formidável coalizão internacional. Isto significa que está
em curso agora o declínio da liderança ou da hegemonia
política e que o domínio imperial dos Estados Unidos se sustenta
cada dia mais exclusivamente na supremacia militar.
Emerge, em conseqüência, um novo quadro geopolítico, com
reflexos na diplomacia e no sistema multilateral das Nações
Unidas, que deverá ser marcado por notáveis realinhamentos
políticos. A rigor, já se impõe a necessidade de uma nova
ordem internacional, que já vinha sendo sugerida pelo fim da
bipolaridade e, antes disso, pelo desenvolvimento desigual entre as
potências capitalistas, a decadência dos Estados Unidos constatada
acima, a ascensão da Alemanha, no quadro da União
Européia, do Japão e mais recentemente da China. Não
é de hoje que este quadro se reflete na necessidade de reformular o
Conselho de Segurança da ONU.
Agora é a própria ONU que caduca e, a exemplo da Liga das
Nações na década de 30 do século 20, tende a se
tornar irrelevante, como aliás, decretou a diplomacia
unilateral de Bush.
A necessidade objetiva de transição para uma nova ordem
internacional, de que os comunistas brasileiros falam desde o início
dos anos 90, já não se prende mais aos aspectos econômicos,
diz respeito diretamente à esfera política. Lembrando Hegel, o
que caduca precisa perecer. Não podemos prefigurar o que irá
acontecer diante das evidências de crise do padrão dólar e
da insustentabilidade da ordem política, marcada pela unilateralidade da
diplomacia americana e pela imposição
manu militari
da sua hegemonia. Trata-se de um processo histórico que pode ter longa
duração e cobrar ingentes sacrifícios à humanidade,
inclusive a barbárie de sucessivas guerras preventivas, dentro da
perspectiva de guerra infinita dos EUA.
A segunda guerra do Golfo afigura-se, desse modo, como um de muitos
episódios do longo e penoso para a humanidade processo de
decadência do imperialismo norte-americano. O que deixa claro que os
alvos estratégicos são outros e que os interesses em confronto
apontam para o desenvolvimento de cenários de conflagração
e luta e não de equilíbrio entre pólos de poder
econômico e militar em convivência harmônica.
Os órgãos de espionagem e inteligência e os
experts
da mídia registram com inquietação a difusão e o
crescimento do antiamericanismo no mundo. Seria mais apropriado
dizer antiimperialismo, porque necessário se torna conquistar o povo
norte-americano para integrar a grande frente dos povos contra a guerra
imperialista, pela civilização contra a barbárie, pela paz
e a soberania. No fundo, a inquietação com o
antiamericanismo é o pressentimento ou será a
certeza? de que a mãe das bombas pode também
abrir a porta do inferno, aumentar a oposição aos
EUA, acrescentar dificuldades à trajetória de
imposição do poder norte-americano e acentuar seu declínio.
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[*]
José Reinaldo Carvalho é jornalista, vice-presidente do Partido
Comunista do Brasil e responsável pelas Relações
Internacionais. Autor de
Conflitos Internacionais num Mundo Globalizado,
Ed. Alfa Ômega, 2003.
Carlos Umberto Martins é jornalista, estudioso de economia e
política internacional, membro da Comissão Sindical e da
Assessoria Política da Presidência do Partido Comunista do Brasil.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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