Agora somos nós os extremistas do Iraque
A "libertação" do Iraque é uma brincadeira cruel
para um povo massacrado. Os americanos e os ingleses, parceiros num grande
crime confessado, levaram ao Médio Oriente e a grande parte do resto do
mundo, a perspectiva do terrorismo e do sofrimento numa escala que o Al Qaeda
nunca poderia imaginar.
É o que significa o sangrento bombardeamento desta semana contra a sede
das Nações Unidas em Bagdad.
Trata-se de uma "chamada de atenção", segundo Mary
Robinson, a antiga Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU.
Tem razão, naturalmente, mas é uma chamada de
atenção que milhões e pessoas já fizeram nas ruas
de Londres e de todo o mundo há mais de sete meses antes que
começasse a matança.
E a máquina de tornear anglo-americana, cujos aspectos menores
estão agora a ser expostos pela investigação de Hutton,
ainda está a trabalhar.
Segundo os governos de Bush e Blair, os responsáveis pela atrocidade
contra a ONU são "extremistas de fora": terroristas da Al
Qaeda ou militantes iranianos, ou ambos.
Esteja ou não implicada gente de fora, a finalidade desta propaganda
é distrair de uma verdade elementar: que os EUA e a Grã-Bretanha
estão agora imersos numa guerra de guerrilhas clássica, uma
guerra de resistência e pela autodeterminação daquela
espécie que se trava contra agressores estrangeiros e regentes coloniais
desde o princípio da História.
Para os EUA, é outro Vietnam. Para a Grã-Bretanha é outro
Quénia, ou na verdade outro Iraque.
Em 1921, o Tenente General Sir Stanley Maude declarou em Bagdad: "Nossos
exércitos não vêm como conquistadores, mas sim como
libertadores".
Ao fim de três anos haviam morrido 10 mil pessoas num levantamento contra
os ingleses, os quais gasearam e bombardearam os "terroristas".
Nada mudou, só o nomes e a fina marca das mentiras.
Quanto aos "extremistas de fora", ao dar simplesmente a volta ao
significado temos uma descrição sumária dos actuais
ocupantes que, sem serem provocados, atacaram um indefeso país soberano,
desafiando as Nações Unidas e a oposição da maior
parte da humanidade.
Utilizando armas concebidas para causar o máximo sofrimento humano
bombas de fragmentação
(cluster bombs)
, munições contendo urânio e bombas incendiárias
(napalm)
estes extremistas de fora causaram a morte de pelo menos 8 mil civis e
uns 30 mil soldados, a maior parte deles constituída por recrutas
adolescentes. Pensem nas ondas de aflição em qualquer sociedade
depois de semelhante carnificina.
No seu momento de "vitória", estes extremistas de fora
tendo já destruído a infra-estrutura do Iraque com a campanha de
bombardeamentos ao longo de 12 anos e com o embargo assassinaram
jornalistas, derrubaram estátuas e estimularam o saque em grande escala,
enquanto recusavam-se a efectuar as reparações
humanitárias mais elementares pelos danos que haviam provocado ao
abastecimento de electricidade e água potável.
Isto significa que hoje crianças doentes estão a morrer de sede e
de gastrenterite, que os hospitais ficam frequentemente sem oxigénio e
que aqueles que poderiam ser salvos não podem ser salvos.
Quantos morreram assim?
"Contámos cada chave de parafusos", disse um coronel
norte-americano durante a primeira guerra do Golfo, "mas contar civis que
morrem no caminho não faz parte da nossa política".
A maior máquina militar do planeta, que diz estar a gastar até 5
mil milhões de dólares por mês com a sua
ocupação do Iraque, aparentemente não pode encontrar
recursos e mão-de-obra a fim de instalar geradores para uma gente que
está a suportar as maiores temperaturas do século quase a
metade deles constituída por crianças, das quais oito por cento,
diz a UNICEF, sofre desnutrição extrema. Quando os iraquianos
protestaram por isso, os extremistas de fora mataram-nos a tiros.
Dispararam sobre multidões, ou individualmente, e orgulham-se disso.
Outro dia, a Task Force 20, uma unidade americana de elite, assassinou pelo
menos cinco pessoas que iam num automóvel por uma rua.
No dia seguinte assassinaram uma mulher e os seus três filhos seguiam num
automóvel em outra rua.
Não são diferentes dos esquadrões da morte treinados pelos
estadunidenses na América Latina.
A estes extremistas de fora permitiu-se-lhes fazer o que quisessem em
parte por causa da teia de mentiras de Londres e de Washington, e em parte por
culpa daqueles que voluntariamente se tornam o eco das suas mentiras e
ampliam-nas.
No actual braço de força entre o governo de Blair e a BBC surgiu
um novo mito: de que a BBC foi e é "anti-guerra".
Isto é aquilo a que George Orwell denominou "verdade oficial".
Mais uma vez, dê-lhe a volta e terá a verdade autêntica:
que a BBC apoiou a guerra de Blair, que dia após dia retransmitiu e
"debateu" e legitimou a charada das armas de destruição
maciça, bem como asneiras sem sentido como aquela de que Blair exercia
uma "influência moderadora" sobre Bush quando, como
sabemos agora, um é tão belicista quanto o outro.
Quem poderá esquecer o eufórico Correspondente Chefe de
Política da BBC Andrew Marr, no momento do triunfo da
"coligação". Tony Blair, declarou ele, "disse que
tomariam Bagdad sem banho de sangue, e que no fim os iraquianos estariam a
celebrá-lo. E em ambos os pontos demonstrou-se de modo concludente que
tinha razão".
Se o senhor substituir "tinha razão" por "estava
errado", terá a verdade. Para o homem da BBC em Downing Street,
parece que até 40 mil mortes não constitui um "banho de
sangue".
De acordo com a Media Tenor, organização independente americana
de acompanhamento dos media, a BBC permitiu menos dissensão contra a
guerra do que todas as principais cadeias internacionais que examinaram,
inclusive as redes americanas.
Andrew Gilligan, o jornalista da BBC que revelou as preocupações
do Dr. Kelly acerca do "dossier cozinhado" pelo governo sobre o
Iraque, é um dos poucos inconformistas, uma espécie inoportuna
que desafia a verdade oficial.
Uma das mentiras mais importantes foi vincular o regime de Saddam Hussein a Al
Qaeda.
Como sabemos agora, tanto Bush como Blair ignoraram o conselho das suas
agências de inteligência e apregoaram tal conexão.
Funcionou. Quando começou o ataque ao Iraque, as sondagens mostraram
que a maioria dos norte-americanos acreditava que Saddam Hussein estaria por
trás do 11 de Setembro.
A verdade era o inverso. Por monstruoso que fosse, o regime de Saddam Hussein
era um verdadeiro bastião contra a Al Qaeda e o seu fanatismo
islâmico. Saddam era o homem do ocidente, que foi armado até aos
dentes pelos EUA e a Grã-Bretanha na década de 1980 porque tinha
petróleo e muito dinheiro e porque era um inimigo dos mullahs
anti-ocidentais do Irão e outras partes da região.
Saddam e Osama bin Laden incomodavam-se mutuamente.
O seu erro grave foi invadir o Kuwait em 1990. O Kuwait é um
protectorado anglo-norteamericano, parte do império petrolífero
ocidental no Médio Oriente.
A matança no complexo da ONU em Bagdad esta semana, bem como a
matança de muitos outros milhares no Iraque, formam um rastro de sangue
conduzido por Bush, Blair e os seus cortesãos.
Para milhões de pessoas de todo o mundo era óbvio que se os
estadunidenses e os britânicos atacassem o Iraque, então a
conexão fictícia entre o Iraque e o terrorismo islâmico
poderia converter-se em realidade.
A brutalidade da ocupação do Iraque na qual os
estadunidenses disparam contra crianças ou detêm-nas, e
inúmeras pessoas "desapareceram" em campos de
concentração é um convite aberto àqueles que
agora encaram o Iraque como parte de uma Jihad santa.
Quando viajei por todo o Iraque, há vários anos, senti-me
totalmente seguro.
Fui recebido em toda a parte com generosidade a afabilidade, ainda que fosse de
um país cujo governo bombardeava e sitiava os meus anfitriões.
O tribunal de Bush e Blair suprimiu a verdade de que a maioria dos iraquianos
opunham-se a Saddam Hussein tanto quanto opunham-se à invasão do
seu país.
Milhares de exilados, desde a Jordânia até a Grã-Bretanha,
afirmaram isso reiteradamente.
Mas quem as ouviu? Quando a BBC interrompeu o seu rufar de tambores
anti-Cristo acerca de Saddam Hussein e informou acerca destas notícias
vitais?
Nem tão pouco as Nações Unidas são simples
"pacificadores" e "reconstrutores" que as manchetes desta
semana apregoam.
Havia pessoas humanitárias entre os mortos de Bagdad. Mas durante mais
de 12 anos o Conselho de Segurança da ONU permitiu-se deixar manipular a
fim de que Washington e Londres pudessem impor ao povo do Iraque, sob a
bandeira da ONU, um embargo que se assemelhava a um sítio medieval.
Foi isto o que mutilou o Iraque e, ironicamente, concentrou todo o poder
interno nas mãos do regime, rematando assim com qualquer
esperança de uma insurreição com êxito.
Outro dia reuni-me com Dennis Halliday, o anterior adjunto do
secretário-geral da ONU, em Nova York. Halliday foi o
funcionário da ONU de maior categoria no Iraque em meados dos anos 1990,
tendo preferido demitir-se a administrar o bloqueio.
"Estas sanções", disse ele, "representam guerra
contínua contra o povo do Iraque. Chegaram a ser, na minha
opinião, genocidas pelo seu impacto ao longo dos anos, e o Conselho de
Segurança manteve-as, apesar do conhecimento pleno do seu impacto,
especialmente sobre as crianças do Iraque.
"Desprezámos nossa própria Carta, o direito internacional, e
matámos provavelmente mais de um milhão de pessoas.
"É uma tragédia que não será esquecida. Estou
certo de que os iraquianos expulsarão as forças de
ocupação. Não sei quanto tempo levarão para isso,
mas expulsar-las-ão com base num impulso nacionalista.
"Não tolerarão a presença de tropas estrangeiras no
seu país, ditando o seu estilo de vida, sua cultura, seu futuro, sua
política.
"Trata-se um povo muito orgulhoso, muito consciente de uma grande
história.
"Isto é brutalmente inaceitável. Todo o país agora
é ameaçado pelo Sr. Bush, como é seu costume, representa
uma agressão para todos nós.
"Deveríamos nós ficar na expectativa e simplesmente observar
enquanto um homem tão perigoso como ele está disposto a
sacrificar as vidas de americanos e, pior ainda, a vidas de outros?"
___________
[*]
Jornalista e cineasta australiano.
Em 22 de Setembro a ITV inglesa transmitirá o seu documentário
sobre o Iraque, o Afeganistão e a guerra contra o terrorismo.
O original deste artigo encontra-se em
Mirror.co.uk
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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