Agora somos nós os extremistas do Iraque

por John Pilger [*]

'A ONU que vá para o inferno', diz este manifestante em Bagdad. A "libertação" do Iraque é uma brincadeira cruel para um povo massacrado. Os americanos e os ingleses, parceiros num grande crime confessado, levaram ao Médio Oriente e a grande parte do resto do mundo, a perspectiva do terrorismo e do sofrimento numa escala que o Al Qaeda nunca poderia imaginar.

É o que significa o sangrento bombardeamento desta semana contra a sede das Nações Unidas em Bagdad.

Trata-se de uma "chamada de atenção", segundo Mary Robinson, a antiga Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU.

Tem razão, naturalmente, mas é uma chamada de atenção que milhões e pessoas já fizeram nas ruas de Londres e de todo o mundo há mais de sete meses — antes que começasse a matança.

E a máquina de tornear anglo-americana, cujos aspectos menores estão agora a ser expostos pela investigação de Hutton, ainda está a trabalhar.

Segundo os governos de Bush e Blair, os responsáveis pela atrocidade contra a ONU são "extremistas de fora": terroristas da Al Qaeda ou militantes iranianos, ou ambos.

Esteja ou não implicada gente de fora, a finalidade desta propaganda é distrair de uma verdade elementar: que os EUA e a Grã-Bretanha estão agora imersos numa guerra de guerrilhas clássica, uma guerra de resistência e pela autodeterminação daquela espécie que se trava contra agressores estrangeiros e regentes coloniais desde o princípio da História.

Para os EUA, é outro Vietnam. Para a Grã-Bretanha é outro Quénia, ou na verdade outro Iraque.

Em 1921, o Tenente General Sir Stanley Maude declarou em Bagdad: "Nossos exércitos não vêm como conquistadores, mas sim como libertadores".

Ao fim de três anos haviam morrido 10 mil pessoas num levantamento contra os ingleses, os quais gasearam e bombardearam os "terroristas".

Nada mudou, só o nomes e a fina marca das mentiras.

Quanto aos "extremistas de fora", ao dar simplesmente a volta ao significado temos uma descrição sumária dos actuais ocupantes que, sem serem provocados, atacaram um indefeso país soberano, desafiando as Nações Unidas e a oposição da maior parte da humanidade.

Utilizando armas concebidas para causar o máximo sofrimento humano — bombas de fragmentação (cluster bombs) , munições contendo urânio e bombas incendiárias (napalm) — estes extremistas de fora causaram a morte de pelo menos 8 mil civis e uns 30 mil soldados, a maior parte deles constituída por recrutas adolescentes. Pensem nas ondas de aflição em qualquer sociedade depois de semelhante carnificina.

No seu momento de "vitória", estes extremistas de fora — tendo já destruído a infra-estrutura do Iraque com a campanha de bombardeamentos ao longo de 12 anos e com o embargo — assassinaram jornalistas, derrubaram estátuas e estimularam o saque em grande escala, enquanto recusavam-se a efectuar as reparações humanitárias mais elementares pelos danos que haviam provocado ao abastecimento de electricidade e água potável.

Isto significa que hoje crianças doentes estão a morrer de sede e de gastrenterite, que os hospitais ficam frequentemente sem oxigénio e que aqueles que poderiam ser salvos não podem ser salvos.

Quantos morreram assim?

"Contámos cada chave de parafusos", disse um coronel norte-americano durante a primeira guerra do Golfo, "mas contar civis que morrem no caminho não faz parte da nossa política".

A maior máquina militar do planeta, que diz estar a gastar até 5 mil milhões de dólares por mês com a sua ocupação do Iraque, aparentemente não pode encontrar recursos e mão-de-obra a fim de instalar geradores para uma gente que está a suportar as maiores temperaturas do século – quase a metade deles constituída por crianças, das quais oito por cento, diz a UNICEF, sofre desnutrição extrema. Quando os iraquianos protestaram por isso, os extremistas de fora mataram-nos a tiros.

Dispararam sobre multidões, ou individualmente, e orgulham-se disso.

Outro dia, a Task Force 20, uma unidade americana de elite, assassinou pelo menos cinco pessoas que iam num automóvel por uma rua.

No dia seguinte assassinaram uma mulher e os seus três filhos seguiam num automóvel em outra rua.

Não são diferentes dos esquadrões da morte treinados pelos estadunidenses na América Latina.

A estes extremistas de fora permitiu-se-lhes fazer o que quisessem – em parte por causa da teia de mentiras de Londres e de Washington, e em parte por culpa daqueles que voluntariamente se tornam o eco das suas mentiras e ampliam-nas.

No actual braço de força entre o governo de Blair e a BBC surgiu um novo mito: de que a BBC foi e é "anti-guerra".

Isto é aquilo a que George Orwell denominou "verdade oficial". Mais uma vez, dê-lhe a volta e terá a verdade autêntica: que a BBC apoiou a guerra de Blair, que dia após dia retransmitiu e "debateu" e legitimou a charada das armas de destruição maciça, bem como asneiras sem sentido como aquela de que Blair exercia uma "influência moderadora" sobre Bush – quando, como sabemos agora, um é tão belicista quanto o outro.

Quem poderá esquecer o eufórico Correspondente Chefe de Política da BBC Andrew Marr, no momento do triunfo da "coligação". Tony Blair, declarou ele, "disse que tomariam Bagdad sem banho de sangue, e que no fim os iraquianos estariam a celebrá-lo. E em ambos os pontos demonstrou-se de modo concludente que tinha razão".

Se o senhor substituir "tinha razão" por "estava errado", terá a verdade. Para o homem da BBC em Downing Street, parece que até 40 mil mortes não constitui um "banho de sangue".

De acordo com a Media Tenor, organização independente americana de acompanhamento dos media, a BBC permitiu menos dissensão contra a guerra do que todas as principais cadeias internacionais que examinaram, inclusive as redes americanas.

Andrew Gilligan, o jornalista da BBC que revelou as preocupações do Dr. Kelly acerca do "dossier cozinhado" pelo governo sobre o Iraque, é um dos poucos inconformistas, uma espécie inoportuna que desafia a verdade oficial.

Uma das mentiras mais importantes foi vincular o regime de Saddam Hussein a Al Qaeda.

Como sabemos agora, tanto Bush como Blair ignoraram o conselho das suas agências de inteligência e apregoaram tal conexão.

Funcionou. Quando começou o ataque ao Iraque, as sondagens mostraram que a maioria dos norte-americanos acreditava que Saddam Hussein estaria por trás do 11 de Setembro.

A verdade era o inverso. Por monstruoso que fosse, o regime de Saddam Hussein era um verdadeiro bastião contra a Al Qaeda e o seu fanatismo islâmico. Saddam era o homem do ocidente, que foi armado até aos dentes pelos EUA e a Grã-Bretanha na década de 1980 porque tinha petróleo e muito dinheiro e porque era um inimigo dos mullahs anti-ocidentais do Irão e outras partes da região.

Saddam e Osama bin Laden incomodavam-se mutuamente.

O seu erro grave foi invadir o Kuwait em 1990. O Kuwait é um protectorado anglo-norteamericano, parte do império petrolífero ocidental no Médio Oriente.

A matança no complexo da ONU em Bagdad esta semana, bem como a matança de muitos outros milhares no Iraque, formam um rastro de sangue conduzido por Bush, Blair e os seus cortesãos.

Para milhões de pessoas de todo o mundo era óbvio que se os estadunidenses e os britânicos atacassem o Iraque, então a conexão fictícia entre o Iraque e o terrorismo islâmico poderia converter-se em realidade.

A brutalidade da ocupação do Iraque – na qual os estadunidenses disparam contra crianças ou detêm-nas, e inúmeras pessoas "desapareceram" em campos de concentração – é um convite aberto àqueles que agora encaram o Iraque como parte de uma Jihad santa.

Quando viajei por todo o Iraque, há vários anos, senti-me totalmente seguro.

Fui recebido em toda a parte com generosidade a afabilidade, ainda que fosse de um país cujo governo bombardeava e sitiava os meus anfitriões.

O tribunal de Bush e Blair suprimiu a verdade de que a maioria dos iraquianos opunham-se a Saddam Hussein tanto quanto opunham-se à invasão do seu país.

Milhares de exilados, desde a Jordânia até a Grã-Bretanha, afirmaram isso reiteradamente.

Mas quem as ouviu? Quando a BBC interrompeu o seu rufar de tambores anti-Cristo acerca de Saddam Hussein e informou acerca destas notícias vitais?

Nem tão pouco as Nações Unidas são simples "pacificadores" e "reconstrutores" que as manchetes desta semana apregoam.

Havia pessoas humanitárias entre os mortos de Bagdad. Mas durante mais de 12 anos o Conselho de Segurança da ONU permitiu-se deixar manipular a fim de que Washington e Londres pudessem impor ao povo do Iraque, sob a bandeira da ONU, um embargo que se assemelhava a um sítio medieval.

Foi isto o que mutilou o Iraque e, ironicamente, concentrou todo o poder interno nas mãos do regime, rematando assim com qualquer esperança de uma insurreição com êxito.

Outro dia reuni-me com Dennis Halliday, o anterior adjunto do secretário-geral da ONU, em Nova York. Halliday foi o funcionário da ONU de maior categoria no Iraque em meados dos anos 1990, tendo preferido demitir-se a administrar o bloqueio.

"Estas sanções", disse ele, "representam guerra contínua contra o povo do Iraque. Chegaram a ser, na minha opinião, genocidas pelo seu impacto ao longo dos anos, e o Conselho de Segurança manteve-as, apesar do conhecimento pleno do seu impacto, especialmente sobre as crianças do Iraque.

"Desprezámos nossa própria Carta, o direito internacional, e matámos provavelmente mais de um milhão de pessoas.

"É uma tragédia que não será esquecida. Estou certo de que os iraquianos expulsarão as forças de ocupação. Não sei quanto tempo levarão para isso, mas expulsar-las-ão com base num impulso nacionalista.

"Não tolerarão a presença de tropas estrangeiras no seu país, ditando o seu estilo de vida, sua cultura, seu futuro, sua política.

"Trata-se um povo muito orgulhoso, muito consciente de uma grande história.

"Isto é brutalmente inaceitável. Todo o país agora é ameaçado pelo Sr. Bush, como é seu costume, representa uma agressão para todos nós.

"Deveríamos nós ficar na expectativa e simplesmente observar enquanto um homem tão perigoso como ele está disposto a sacrificar as vidas de americanos e, pior ainda, a vidas de outros?"

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[*] Jornalista e cineasta australiano. Em 22 de Setembro a ITV inglesa transmitirá o seu documentário sobre o Iraque, o Afeganistão e a guerra contra o terrorismo.

O original deste artigo encontra-se em Mirror.co.uk .


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

23/Ago/03