O sofrimento do Iraque foi tornado invisível


por John Pilger [*]

. Nas últimas semanas, tenho assistido videotapes do ataque ao Iraque, a maior parte deles não exibida neste país. O filmes concentram-se no sofrimento dos iraquianos comuns. Também existem fotografias jamais publicadas aqui. Elas mostram ruas e hospitais banhados de sangue, com as forças americanas e britânicas despedaçando tudo no seu caminho por meio de armas concebidas para incinerar e desmembrar seres humanos.

É difícil encarar isto, mas é necessário se se quiser compreender totalmente as palavras dos juízes de Nuremberg, em 1946, quando estabeleceram os princípios da moderna legislação internacional: “Iniciar uma guerra de agressão... não é apenas um crime internacional; é o mais grave crime internacional diferenciando-se somente dos outros crimes de guerra por conter dentro de si próprio os males acumulados do todo”.

Guiando-me através desta evidência visual de um grande crime está o diário de uma jovem advogada, Jô Wilding, que estava em Bagdá com um grupo de observadores dos direitos humanos. Ela e outros permaneceram com famílias iraquianas enquanto mísseis, bombas anti-bunker e de fragmentação explodiam em torno deles. Quando possível, eles corriam aos locais dos acontecimentos e acompanhavam as vítimas aos hospitais e necrotérios, entrevistando testemunhas e médicos. O trabalho deles recebeu pouca cobertura dos media.

Jô descreveu-me, em detalhes, como os ataques a alvos civis eram – ela não tem dúvidas – deliberados. Em todo o caso, a extrema ferocidade do ataque aos esquivos defensores iraquianos não poderia deixar de matar e ferir um grande número de civis. De acordo com recentes pesquisas, mais de 10.000 civis foram mortos.

“Uma das coisas mais estonteantes acerca da rápida vitória da coligação”, disse-me recentemente em Washington o sub-secretário de Estado para a segurança internacional de George Bush, John Bolton, “foi serem pequenos os danos causados à infra-estrutura iraquiana e o quanto foi baixo o número de vítimas”.

Eu disse, “Bem, se foram 10.000 civis é alto”.

Ele replicou, “Bem, eu penso que isto é razoavelmente baixo se você comparar com a dimensão da operação militar”.

Um tanto baixo o número de 10.000. E multiplique isso muitas vezes quando o número inclui a morte na maior parte de jovens recrutas que, como disse um coronel da marinha, “certo como o inferno que eles nem souberam o que os atingiu”. Continue multiplicando quando os feridos são acrescentados: tal como 1000 crianças mutiladas, de acordo com a Unicef, por explosões retardadas de bombas de fragmentação.

O que impede jornalistas com responsabilidades e obrigações perante a opinião pública de reconhecer a verdade de um tal crime? Estarão aqueles que se postam frente às câmeras na Downing Street e no relvado da Casa Branca, incessantemente obscurecendo o óbvio (uma técnica a que eles chamam de objetividade), como jornalistas condicionados? A resistência à ilegal ocupação anglo-americana do Iraque é agora propagandeada como uma parte da “Guerra Contra o Terror” de Bush. As mortes de americanos, britânicos e do pessoal da ONU são notícia; mas os iraquianos apenas voam fugazmente nas telas da TV; ou então, nem sequer existem.

Para os ministros de Blair, o encobrimento, assim como de quase tudo, tem origem em Washington. Ao ler a resposta do ministro das Forças Armadas, Adam Ingram, ao incansável questionamento do deputado Llewellyn Smith, verifica-se que a sua mensagem é quase idêntica à de Bolton. A “lamentável” perda de vidas não é realmente tão má, considerando “uma operação militar desta envergadura”. Em relação ao número de pessoas mortas, “nós não temos forma de determinar com certeza... ” Quem quer que seja Adam Ingram, lembrem o nome pois ele personifica o pensamento corrente, rotineiro, um apologista amoral do assassínio pelo Estado.

Naturalmente, se o grande crime no Iraque for representado não pelo momento pungente de um pelotão prestando honras fúnebres a caixões recobertos por bandeiras e sim pelo impiedoso horror que assisti nos videotapes não exibidos, o encobrimento cairia. E a ilusão apresentada pela investigação de Hutton seria desmascarada. Seja como for, Hutton é de longe o mais trapaceiro dos mágicos de Blair, pois um inquérito à morte de um único homem assegura que a verdadeira investigação pública dos motivos que levaram os britânicos à guerra não se verificará. Tal inquérito assegura que enquanto nos permitem ler emails internos de Whitehall, negam-nos o exame dos entendimentos entre Blair e Bush, que quase certamente exporia a maior de todas as mentiras e revelaria que a decisão de invadir foi tomada muito antes de Washington fantasiar a charada das armas de destruição em massa. Isto afundaria Blair.

Ao invés disso, temos relances da verdade. Em 17 de setembro de 2001, seis dias depois dos ataques nos Estados Unidos, Bush assinou um documento, rotulado de ultra-secreto, no qual ele orienta o Pentágono a começar a planear “opções militares” para uma invasão ao Iraque. Em julho do ano passado, Condoleezza Rice, conselheira de segurança nacional de Bush, afirmou a outra responsável do governo Bush: “A decisão já foi tomada. Não percam seu tempo” ( Washington Post , 12 de janeiro de 2003, New Yorker , 31 de março de 2003). Em 2 de julho último, o Marechal do Ar, sir John Walker, ex-chefe da Inteligência da Defesa e presidente do Joint Intelligence Committee escreveu um memorando confidencial a membros do parlamento a fim de alertá-los de que o “compromisso com a guerra” fora tomado um ano atrás. “Desde então”, escreveu ele, “todo o processo de razões, outra razões e ainda outros motivos, humanitários, de moralidade, de mudança de regime, de terrorismo, e finalmente de ataque iminente com armas de destruição em massa... foi meramente uma cortina de fumaça”.

A divulgação sem peias disto provocaria uma crise incontrolável na camarilha que controla a Grã-Bretanha: o serviço secreto, o serviço civil, Downing Street, os protegidos da City e os media cortejados. Poucos diabos e mandarins têm muito tempo para o estranho e messiânico Blair, mas farão esforços para protege-lo a fim de se protegerem a si próprios e para assegurar que a sua versão do “Grande Jogo” (isto é, imperialismo) de Lord de Curzon, continue sem opositores.

Um bom exemplo desse jogo é a feira de armas inaugurada em Londres a 9 de setembro, apoiada por um governo e uma indústria de armas que são em conjunto o segundo maior mercador da morte do mundo, vendendo para os tiranos e Estados assassinos habituais. A sua falta de compaixão exprimiu-se a mesma feira reuniu-se em 2001 e o 11 de setembro aconteceu. Eventos públicos como a conferência do Trade Union Congress foram cancelados por respeito às vítimas de Nova York e Washington. A feira de armas foi mantida em funcionamento.

“O caleidoscópio foi sacudido”, disse Blair após o 11 de setembro. “As peças estão em movimento. Em breve estarão arrumadas outra vez. Antes que eles o façam, vamos reordenar este mundo em torno de nós”. Seja quem for que tenha escrito esta idiotice, agora já pode ter ter deixado Downing Street; mas Blair repete-nos constantemente que acredita no que diz, e talvez acredite mesmo. Vários dos defensores em Nuremberg apresentaram a mesma alegação, bem como outros Estados assassinos no Tribunal de Haia. Tal como eles, Blair deveria um dia ser apresentado àquele tribunal.

[*] Jornalista, cineasta e documentarista de TV, australiano. © Copyright J Pilger, New Statesman, 2003 For fair use only / pour usage équitable seulement. Traduzido por Marciel Iasniewicz.

O original encontra-se em http://globalresearch.ca/articles/PIL309A.html


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

22/Set/03