O significado da captura de Saddam

por James Petras

Tratamento dado pelo US Army aos detidos iraquianos. Os meios de comunicação mais poderosos dos Estados Unidos e da Europa associaram-se ao júbilo da Casa Branca pela captura de Saddam Husein. Presumivelmente as massas ocidentais também se lhe associaram, ante a perspectiva de um fim rápido e bem sucedido da guerra colonial. Sem dúvida que no Iraque a cólera popular cresce por todo país, à medida que os EUA e as tropas satélites, intensificam o despejo violento de milhares de casas, a demolição (a dinamite) de casas de “terroristas suspeitos” como forma de castigo colectivo, e as prisões indiscriminadas em massa de centenas de jovens nas suas incursões nocturnas. As actuais injustiças norte-americanas, com prisões arbitrárias, destruição de lares, muros tipo ghetto de arame farpado em volta de aldeias e povoados e assassínio diário de crianças e civis, preocupam muito mais o povo iraquiano que a captura de Saddam Husein. Para Washington, processar Saddam por violação dos direitos humanos é uma jogada muito perigosa, porque os crimes de que possa ser acusado são igualmente imputáveis à administração colonial anglo-americana.

Ao contrário do que afirmam os meios de comunicação norte-americanos, a captura de Saddam Husein, não é um golpe na resistência popular mas, pelo contrário, um importante revés na base em que assenta a ocupação colonial (do mesmo modo que o fracasso na descoberta das armas de destruição maciça fez ruir o pretexto imperialista para a guerra). Todos os argumentos para a ocupação e violenta repressão norte-americana de milhões de iraquianos giraram em torno da ameaça do “regresso de Saddam Husein”. Foi-nos dito que Saddam “roubou milhares de milhões de dólares” que “estava a financiar uma rede de terroristas Baasistas e ex-especialistas militares” para atacar as forças de “libertação” norte-americanas.

A descoberta de Saddam numa choça de aldeia, enterrado num buraco de 3 metros, sem comunicações, e mesmo sem instalações higiénicas elementares, mostra apenas um fugitivo que se oculta para assegurar a sobrevivência individual, e não a mão secreta que dirige um movimento de resistência de âmbito nacional.

A captura deveu-se a um delator, não resultou da diligência, persistência ou habilidades investigadoras dos seus perseguidores norte-americanos e seus assessores da Mossad. Não se deu nenhuma ofensiva geral lançada por leais seguidores após a captura de Saddam, mas apenas as “habituais” dezenas de ataques e dois bombardeamentos importantes da resistência Islâmica. Os limitados fundos encontrados na posse de Saddam e o seu remoto e inacessível esconderijo, confirmam a mentira de que as acções da resistência eram financiadas e dirigidas pelo ex-presidente. Em suma, a captura de Husein e o seu estado físico indicam claramente que, decerto não desempenhou qualquer papel de liderança e o mais que podia ser era um símbolo para alguns sectores do partido Baasista que, por sua vez, são uma pequena minoria da resistência.

Existem muitas razões para pensar que a captura de Saddam aumentará a resistência à ocupação norte-americana. Porque, em primeiro lugar, os EUA se apresentam agora como único e principal inimigo para muitos iraquianos, unindo nacionalistas laicos, Islamitas, gente de esquerda e outros que, no passado, possam ter divergências de opinião sobre a liderança de Saddam. Em segundo lugar, a descoberta de um Saddam “isolado” reforça a hipótese de que a resistência é um movimento descentralizado, com liberdade para desenvolver as suas próprias iniciativas, sem controle centralizado. Em terceiro lugar, a pobreza que rodeava Saddam sugere que o “aparelho Baasista” se mostrou inoperante e incapaz de funcionar para proporcionar segurança ao ex-ditador. Em quarto lugar o isolamento de Saddam confirma o facto de que a actual resistência nacional não é um movimento “restauracionista”, mas sim um movimento para renovar a soberania nacional e estabelecer um sistema eleitoral viável, livre de líderes seleccionados pelo império.

Que acontecerá se Saddam for levado a tribunal? Pode apresentar alguma evidência condenatória pela suas relações duradouras e íntimas com o governo norte-americano até à primeira Guerra do Golfo. Poderia inclusivamente requerer como principias testemunhas Bush pai, Rumsfeld, Baker e líderes israelenses dos anos 1980. Poderia proporcionar pormenores adicionais e demonstrar a inexistência de armas de destruição maciça – cravando assim mais um prego no caixão das litanias mentirosas utilizadas por Washington e Israel para justificar a guerra. Ou, quem sabe, Saddam sofrerá uma enfermidade imprevista e fatal durante a sua prisão e interrogatório, e não será capaz de proporcionar a prolixa evidência que pudesse por apuros as aspirações presidenciais de Bush.

O mais provável é que a lógica da resistência anti-colonial polarize ainda mais a sociedade iraquiana, em grande desfavor dos EUA. À medida que a resistência aumente, concretamente os seus ataques contra colaboradores locais, em especial contra a polícia, vai haver provavelmente menos “voluntários” e maior infiltração por parte de militantes da resistência, colaboradores renitentes e agentes duplos entre as forças de segurança. A resposta fora do Iraque revela também uma maior polarização. Sharon salientou aos seus protectores sionistas do Pentágono que, depois de Saddam, é tempo de apontar para a Síria, para o Irão e para o Líbano, enquanto por outro lado, a UE firma acordos de largo alcance com o regime de Assad. No seio do regime de Bush crescem as divergências entre os sionistas extremistas (Wolfowitz, Feith, Abrams) e os seus influentes colaboradores de Washington (Perle, Kagan, Cohen, Kristol, Pipes) por um lado, e os “realistas” do Departamento de Estado e a Casa Branca sobre o tema de uma “mudança de regime” a nível mundial. Os sionistas do Pentágono, sob o pretexto de uma “campanha global para impor a democracia” pretendem intensificar e alargar a intervenção dos EUA para destruir os adversários de Israel. Os realistas estão cada vez mais conscientes dos custos políticos em face das próximas eleições presidenciais e do perigo de seguir as orientações de estrategas políticos que têm duplicidade de lealdades, sejam elas verdadeiras ou aparentes.

A captura de Saddam e o recrudescer da resistência anti-colonial aumenta a probabilidade de que algum candidato democrata à presidência possa argumentar que a “meta” da intervenção era a captura de Saddam e que é agora o momento de convocar eleições antecipadas e retirar as tropas. É provável que isto tenha reflexos em amplos sectores do eleitorado que estão fartos dos crescentes custos políticos e económicos da invasão, da corrupção e do roubo por parte dos empreiteiros da guerra e do empenhamento fanático dos grupos de pressão israelenses em prol do seu plano especial à custa dos interesses nacionais dos EUA.

É típico dos meios de comunicação norte-americanos inflacionar a propaganda de vitórias como a captura de Saddam, durante uns poucos dias, captar a atenção do público, estimular uma euforia artificial e, depois, quando de novo vem ao de cima a realidade da prolongada luta iraquiana de libertação nacional e aumenta a lista de soldados norte-americanos mortos e feridos, é natural que o público norte-americano procure alguém a quem culpar, acusar e castigar.

19/Dez/2003

O original encontra-se em http://www.rebelion.org/petras/031218jp.htm .
Tradução de Carlos Coutinho.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
24/Dez/03