A política por trás da tragédia da ONU
por James Petras
O bombardeamento do complexo das Nações Unidas no Iraque provocou
cólera, pena, fanfarronadas altissonantes do governo Bush e promessas
irreflectidas do secretário-geral Kofi Annan de "continuar com a
missão humanitária". O debate e a discussão, tal
como apareceram nos meios de comunicação, centra-se na
questão de saber quem foi o responsável pelas "falhas de
segurança". A ONU e os seus partidários assinalam a
incompetência da tropa de ocupação estadunidense, os
oficiais estadunidenses culpam os funcionários da ONU de
negligência. Tais discussões são questões
secundárias, técnicas, e omitem os motivos políticos mais
profundos que estão subjacentes ao ataque à ONU.
Previsivelmente, os neoconservadores pro-israelenses de Washington atribuem o
bombardeamento da ONU ao terrorismo árabe-islamico e juntam o bombardeio
de um autocarro israelense e o da ONU como justificação para uma
maior violência por parte dos EUA e de Israel. O centro esquerda louva
as virtudes diplomáticas e humanitárias do representante especial
da ONU no Iraque, Sérgio Vieira de Mello e com indisfarçada
incompreensão clamam que o bombardeio prejudicou a causa do povo
iraquiano e atrasou o processo de reconstrução nacional.
Tanto a ONU como os oficiais dos EUA, os neoconservadores os intelectuais de
centro esquerda esquecem-se de analisar o verdadeiro papel político das
Nações Unidas no Iraque e especialmente o papel político
de Sérgio Vieira de Mello que podem ter provocado o ataque.
A ONU dirigida por Kofi Annan não desempenhou um papel imparcial no
conflito EUA-Iraque. Durante mais de uma década a ONU apoiou as
sanções económicas contra o Iraque, provocando mais de um
milhão de mortos iraquianos, na sua maior parte crianças, e a
demissão de dois altos funcionários da ONU em sinal de protesto.
Os inspectores da ONU supervisionaram o desarmamento das defesas iraquianas e
ignoraram ou aprovaram os bombardeamento estadunidenses-britânicos contra
o Iraque ao longo de 12 anos. Até a hora final da invasão
estadunidense do Iraque, toda a atenção da ONU estava dirigida no
sentido de pressionar o governo iraquiano a que aceitasse as exigências
dos EUA, não condenando os preparativos de guerra estadunidenses, mesmo
quando o Conselho de Segurança finalmente recusou-se a aprovar a
invasão unilateral dos EUA. O registo histórico da década
que antecede a invasão coloca a ONU claramente ao lado dos EUA,
até ao ponto de terem sido identificados vários inspectores da
ONU a trabalhar para a CIA e a realizar buscas e a proporcionar
informação estratégica à inteligência militar
estadunidense.
A isto pode opor-se algum escritor e argumentar que a colaboração
ONU-EUA foi uma coisa do passado pois após a conquista militar
estadunidense a ONU não apoiou a ocupação colonial e
promoveu uma transição para um autogoverno democrático.
Os documentos publicados, entrevistas oficiais e resoluções da
ONU apresentam um quadro muito diferente. Um quadro no qual a ONU aceitou e
trabalhou com o governador colonial estadunidense, Paul Bremer, numa tentativa
de consolidar o controle estadunidense do país ocupado.
Após o desastroso mês de governo do primeiro governador colonial
estadunidense, Garner, e da sua substituição por Paul Bremer,
ficou claro até para o mais teimoso e sanguinário militarista do
Pentágono que esse governo imperial trouxe como resultado um poderoso
movimento de resistência de todos os sectores da sociedade iraquiana e o
isolamento total do regime colonial estadunidense em relação a
todos os governos árabes, muçulmanos ou europeu (excepto a
Inglaterra e, naturalmente, Israel). O governo Bush foi inexorável na
sua reivindicação do poder total sobre o Iraque, mas estava
disposto a permitir que a ONU operasse sob o controle estadunidense. Annam
despachou Vieira de Mello para trabalhar com o governador colonial Bremer e
isto foi um brilhante êxito político em termos que resultavam
vantajosos para o poder colonial estadunidense.
UMA FOLHA DE PARREIRA
A missão das Nações Unidas de Vieira de Mello era
colaborar com Bremer e estava destinada a criar uma junta consultora (Conselho
Interino Nacional Iraquiano) que proporcionasse uma folha de parreira para o
controle colonial estadunidense. Sob a Resolução 1483 aprovada
pelo Conselho de Segurança a 22 de Maio de 2003, foram assinaladas a
Vieira de Mello oito áreas de actuação, que tinham todas a
ver com a "reconstrução" do país especialmente
na esfera política. Vieira de Mello mostrou-se muito activo em seduzir
os líderes tribais, clérigos conservadores e os indivíduos
do exílio descobertos pelo Pentágono, a fim de formar a junta com
a cláusula de que o governador colonial estadunidense teria que aprovar
todos os seus membros, e que todos aprovavam a invasão estadunidense e a
ocupação. Com efeito, Vieira de Mello organizou uma impotente
colecção de autoproclamadas elites, que não tinha qualquer
credibilidade no Iraque nem legitimidade entre o povo iraquiano, a fim de que
servisse de vitrine para o governo colonial estadunidense.
Depois de a junta aprovada pelos EUA ter ocupado o seu posto, Vieira de Mello
viajou por todo o Médio Oriente para tentar convencer os países
vizinhos de que a "criação" estadunidense, à que
se opunha a maioria dos iraquianos, era um "regime de
transição" legítimo e representativo. O argumento
principal de Vieira de Mello era que a junta designada pelos EUA era um corpo
"governamental" e não meramente "consultivo",
argumento que não convenceu ninguém, e menos ainda os oficiais
estadunidenses que estavam a repartir contratos à Halliburton
Corporation e a organizar a privatização do petróleo
iraquiano, e nem tão pouco ao exército estadunidense que estava a
aterrorizar e disparar sobre inocentes civis iraquianos.
Tanto a resolução 1483 da ONU acerca da
"reconstrução" sob o governo colonial estadunidense
como o papel activo de Vieira de Mello na promoção e defesa do
regime títere dos EUA não constituíam actividades
humanitárias desinteressadas. Eram posições
políticas compromissos que implicaram a aceitação
do governo colonial estadunidense e uma decisão clara e deliberada de
utilizar as Nações Unidas como veículo para a
legitimação do governo imperial por meio de uma junta impotente e
corrupta rechaçada pelo povo iraquiano. Vieira de Mello estava
plenamente consciente da concentração de poder em mãos de
Bremer, estava plenamente consciente de que o povo iraquiano ao qual em
momento algum se deu voz ou voto na sua selecção
rechaçava a junta, tomou parte activa na exclusão deste conselho
dos críticos anticoloniais. Sua estreita relação de
trabalho com Paul Bremer, o governador estadunidense do Iraque, sem
dúvida esvaziou qualquer pretensão de que a ONU fosse uma
força independente no Iraque. Aos olhos dos iraquianos e dois
anteriores altos funcionários da ONU (Boutros Ghali e Denis Halliday) a
ONU e em particular Kofi Annan e Vieira de Mello eram apêndices do poder
colonial estadunidense.
Deni Halliday, o anterior adjunto do secretário-geral da ONU e
coordenador humanitário da ONU no Iraque declarou recentemente que o
bombardeamento da ONU no Iraque foi uma retaliação pela
colusão com os EUA. A 24 de Agosto de 2003 numa entrevista com
The Sunday Herald
(Escócia) observou que a "colaboração
adicional" entre a ONU e os EUA e a Inglaterra "seria um desastre
para as Nações Unidas porque seria induzida a secundar a
ocupação ilegal do Iraque... A ONU foi estimulada a ser um
braço dos EUA uma divisão do Departamento de Estado. Kofi
Annan foi designado e apoiado pelos EUA e isso corrompeu a independência
da ONU".
ONU, A SUB-EMPREITEIRA
Numa entrevista à BBC, Boutros Boutros Ghali, o anterior
secretário-geral da ONU, ao falar das repercussões do
bombardeamento declarou que "a percepção em grande parte do
Terceiro Mundo é de que as Nações Unidas, devido à
influência americana (sic)... é um sistema que discrimina muitos
países do Terceiro Mundo". George Monbiot, do jornal inglês
The Guardian
(25/Ago/03) afirma que "O governo dos EUA deixou perfeitamente claro que
a ONU pode operar no Iraque só como sub-empreiteiro. As tropas
estrangeiras receberão as suas ordens de Washington". Nenhuma
destas observações apareceu em qualquer meio de
comunicação estadunidense.
A ONU afastou-se muito dos seus princípios fundadores originais. Em
tempo a ONU defendia a paz, a justiça e a autodeterminação
social e opunha-se às guerras coloniais, à pilhagem da riqueza
nacional e aos governos coloniais. Como a ONU tomou partido por um dos lados
no Iraque e exerce um papel activo na criação de uma
armação política compatível com um prolongado
governo colonial estadunidense, não é nenhum mistério a
razão porque a resistência iraquiana atacou o seu edifício
assim como ataca o exército imperial e os oleodutos que estão
à venda para as corporações multinacionais estadunidenses
e europeias.
Tendo tomado partido pelos EUA, é o cúmulo da hipocrisia que
altos funcionários da ONU digam que são vítimas inocentes.
É igualmente enganoso que os EUA e funcionários da ONU declarem
que a resistência anti-colonial é composta por
"estrangeiros", "restos" de Saddam Hussein, terroristas da
Al Qaeda, extremistas sunitas ou xiitas iranianos. A resistência
não está confinada às áreas onde Saddam Hussein era
popular, nem está limitada a áreas de crentes sunitas,
está ao norte e ao sul, a leste a oeste, cobrindo todas as
regiões e enclaves étnicos e religiosos. A resistência
é nacional, interna e baseada na oposição à
ocupação colonial estadunidense, à
destruição da infra-estrutura e à degradação
física e psicológica de 23 milhões de iraquianos.
Enquanto os iraquianos sofrem um desemprego de 80% e estão sem
água limpa, nem alimentos e nem electricidade, altos funcionários
das Nações Unidas ganham salários de US$ 80 mil a US$ 150
mil por ano, movem-se em automóveis de luxo e SUVs
(sports utility vehicles)
, trabalham em escritórios com ar condicionado e jantam alimentos
frescos importados em apartamentos ou chalés confortáveis
gozando o que há de melhor na vida colonial. Não é
preciso introduzir a hipótese da Al Qaeda para entender que o
ressentimento político e pessoal contra arrogantes colaboradores
imperiais poderia transformar-se num ataque violento.
Está claro para muita gente no Médio Oriente que a ONU
converteu-se num corpo falso de agências vassalas dirigidas por
funcionários escolhidos a dedo como Vieira de Mello, cujo encanto e
inteligência não compensam a sua colaboração na
construção do império estadunidense. Para um
número crescente de profissionais, jornalistas e especialmente para as
pessoas comuns está claro que a ONU perdeu a sua independência e
utilidade como força para paz. Cada vez mais movimentos sociais e
nações do Terceiro Mundo estão à procura de
organizações e foros internacionais novos a fim de prosseguir os
princípios que a ONU traiu. O novo corpo terá que renunciar ao
elitista da ONU actual, com o seu sistema de duas linhas de voto e poder,
terá que recusar como membros países que adoptem guerras
"preventivas" de conquista e governo colonial e pilhagem de recursos
nacionais. Numa palavra, a nova organização internacional e o
seu secretário-geral não devem ser uma apêndice de
Washington se se deseja evitar a tragédia da ONU , um corpo
que começou com grandes ideias e acabou como um manipulador
cínico desses ideais ao serviço do poder imperial.
25/Ago/03
O original encontra-se em
http://www.rebelion.org/petras/030828petras.htm
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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