O padrinho da guerra
Saberiam os organizadores da Feira Internacional do Livro do Cairo (FILC) o que
estavam a assinar quando convidaram o sheikh Ahmed Zaki Yamani, antigo ministro
do petróleo da Arábia Saudita, a falar acerca da guerra que vem
aí, do petróleo, do presidente George W. Bush dos EUA, do seu
"lacaio" o primeiro-ministro britânico Tony Blair e de
"regimes árabes que não derivam o seu poder do povo"?
Em circunstâncias normais, a palestra de Yamani provavelmente não
ganharia destaque. Mas nestes dias, a dissensão política em
relação à guerra ao Iraque não é tolerada.
Não apenas os activistas anti-guerra são perseguidos pela
polícia como todos os fórums políticos programados pela
FILC foram bruscamente cancelados. Como o Egipto ata-se a si próprio
quanto à guerra no Iraque, as autoridades procuram garantir que o
cenário local permaneça sob controle.
Entra Yamani com um apelo para "por favor esqueçam" a desculpa
das "armas de destruição em massa" (WMD, na sigla em
inglês) pois "estas armas estavam ali com a ajuda dos EUA, e de
alguns daqueles que governaram os EUA". Yamani começou a sua
palestra de duas horas na quinta-feira passada apresentando o seu entendimento
da situação global. "O presidente Bush e o seu lacaio o
primeiro-ministro Blair insiste em que o Iraque tem WMDs. Assim há a
Coreia do Norte que admite possuir WMDs, as quais são mesmo mais
perigosas do que aquelas que eles acusam o Iraque de possuir. Mas Bush diz que
negociará política e diplomaticamente com a Coreia do Norte, ao
passo que atacará e ocupará o Iraque".
"Então há uma potência regional vizinha, Israel, que
tem 200 ogivas nucleares e recusa-se a ser monitorada", acrescentou
Yamani. "E uma recente conferência sobre energia em Abu Dhabi
recusou nomear Israel como um país que está na posse de armas
destrutivas. Tal é o estado da nossa nação árabe
hoje".
Depois deste intróito, Yamani abordou a grande questão: o que os
EUA pretendem ganhar com a ocupaçãodo Iraque? "Os EUA
têm uma política muito clara no Médio Oriente",
declarou. "Esta política é baseada em duas frentes, ou
seja, Israel e petróleo. E nunca as duas chegaram a encontrar-se,
excepto quando os árabes "atreveram-se" a impor o embargo
petrolífero de 1973", disse ele. "Isto aborreceu os EUA, os
quais prepararam um plano de longo prazo para controlar o petróleo e o
Golfo por meios militares e conseguiram ter êxito ao fazer isto
graça a nós, os árabes".
Yamani, o ministro do Petróleo e Recursos Minerais da Arábia
Saudita de 1962 a 1986, foi o primeiro secretário-geral da
Organização dos Países Exportadores de Petróleo
(OPEP). Sua fama internacional foi estabelecida com o embargo
petrolífero de 1973. Yamani é encarado como o arquitecto da
maior parte das leis e regulamentos modernos da Arábia Saudita e
actualmente é presidente do Center for Global Energy Studies, que tem
sede em Londres.
Segundo Yamani, com a formação da nova
administração Bush "a maior parte [do seus membros]
dirigindo companhias petrolíferas" o presidente americano
fundou um comité dirigido pelo vice-presidente Dick Cheney cujo
objectivo é assegurar que os EUA não ficam dependentes do
petróleo do Golfo, "especialmente não do petróleo
saudita". A formação do comité esteve inicialmente
encoberta pelo segredo, mas não por muito tempo, ele destaca.
Um quarto das importações de petróleo americanas vêm
do Golfo Arábico e 16,5 por cento das mesmas da Arábia Saudita.
Segundo Yamani, os EUA começaram a desenvolver fontes alternativas, tais
como a Rússia, o Mar Cáspio e a África Ocidental,
assegurando que por volta de 2005 o país não teria de depender do
petróleo do Golfo. Mas os EUA logo perceberam que esta política
significava que a Europa também ficaria mais dependente do
petróleo do Golfo. Perceberam igualmente que quaisquer
turbulências, tais como aquelas na Venezuela, forçariam novamente
os EUA a dependerem do petróleo do Golfo. O que fazer? "Cheney
é um homem que sabe tudo sobre petróleo, cinco anos atrás
publicou um artigo em que declarava claramente que os EUA deveriam invadir o
Iraque e controlar o seu petróleo", disse Yamani. O Iraque,
explicou ele, tem a segundo maior reserva de petróleo do mundo
após a Arábia Saudita e, segundo estudos recentes, é capaz
de produzir sozinho oito milhões de barris por dia nesta década.
Se o Iraque fosse invadido, os EUA poderia estender oleodutos em
direcção do Mediterrâneo Oriental. Teria então
suficiente acesso ao petróleo sem ter de passar pelo Estreito de Ormuz.
Mas o petróleo não é a única razão para a
guerra, argumentou Yamani. "Israel quer que o mapa da região seja
redesenhado de modo a tornar-se a única potência, o que lhe
permitiria controlar o Médio Oriente". E há, naturalmente,
o desejo de Bush de ser eleito para um segundo mandato.
Yamani avançou para a questão mais premente: se, sim ou
não, haverá uma guerra. "O grande sonho dos EUA é a
vitória sem uma guerra, o que significa que Saddam se retiraria do poder
ou iria para o exílio. Deste modo, os americanos poderiam entrar em
Bagdade como conquistadores vitoriosos. Para alcançar tal
vitória, os EUA recrutaram seus amigos e lacaios que estão a
trabalhar com fidelidade a fim de satisfazer o Padrinho". Neste ponto,
soam risadas entre os ouvintes.
Outro cenário possível seria adiar a guerra até o Outono.
A instabilidade na Venezuela, que abastece os EUA com um milhão de
barris por dia, também é uma preocupação para eles.
"Os EUA quiseram remover o presidente Hugo Chavez orquestrando um golpe
militar falhado quando o homem começou a aplicar democracia real.
Quando aquilo não funcionou, os EUA viraram o homem da rua contra ele.
Este estratagema funcionou, mas a produção de petróleo
parou em consequência e então todos os recursos
petrolíferos secaram. Se a Arábia Saudita não tivesse
[recentemente] aumentado a sua produção de petróleo, os
EUA estariam numa situação verdadeiramente miserável hoje.
Se a situação na Venezuela continuar a deteriorar-se, os EUA
terão de adiar sua invasão, porque, segundo inquéritos, o
Iraque produz de 800 mil a um milhão de barris por dia. Se o Iraque for
atacado, este fluxo cessará, pelos menos temporariamente. Com as
exportações da Venezuela em dúvida, os EUA podem
não querer depender da Arábia Saudita para cobrir este
défice. Não é mesmo claro se poderia esta poderia
cobri-lo".
Há a seguir a questão do segundo mandato de Bush. "Se o
presidente americano sentir que a vasta maioria do americanos se opõe
à guerra o que não é o caso ele terá
de alterar a sua posição. Alguns prevêem que a economia
americana entrará em colapso de qualquer forma". Mas Bush,
argumenta Yamani, já se colocou numa situação
embaraçosa. "É muito difícil para ele não
invadir o Iraque, e também é muito difícil invadi-lo. Mas
parece mais provável que ele vá à guerra".
Yamani apresentou três cenários para a guerra no Iraque. O
primeiro é uma entrada rápida dentro do Iraque com a
avançada maquinaria militar dos EUA combinada com o controle
rápido da situação. A segunda opção
é um ataque militar rápido e a invasão do Iraque, mas com
grande dificuldade em conseguir o controle deste país
multi-étnico.
O terceiro cenário é "assustador e provoca-me
insónias", disse Yamani. "Bush e o seu lacaio Blair dizem que
Saddam tem armas químicas e biológicas; uma
afirmação que é negada por Saddam. A partir de estudos
que efectuamos e que envolveram antigos inspectores no Iraque, há
evidência de que ele possui armas químicas e biológicas.
Também sabemos que possui 12 mísseis, cada um deles com um raio
de 650 quilómetros. Cápsulas contendo pragas e germes poderiam
facilmente ser colocadas nestes mísseis os quais poderiam aterrar em
países vizinhos ao sul do Iraque. Se Saddam [cumprir este
cenário] dezenas de milhares de pessoas inocentes morrerão. Isto
também significará a obstrução do petróleo
do Kuwait, da Arábia Saudita e talvez do Irão. Se aquilo
acontecesse, haveria uma previsível escassez de mais de 10
milhões de barris no mercado [internacional], um fosso que nenhum
país poderia preencher nem mesmo em parte. Neste caso, os
preços do petróleo alcançariam US$ 80 a US$ 100 por
barril. Nenhuma das fontes de petróleo dos principais países
industriais poderia salvar desta devastadora situação. Muitas
fábricas em todo o globo seriam forçadas a fechar, o que
resultaria numa onda maciça de desemprego sem precedentes
históricos. Sem mencionar, naturalmente, o que aconteceria a
crianças inocentes, mulheres, idosos e outras pessoas. Espero que este
cenário não aconteça, mas não deveríamos
ignorá-lo. Este cenário significaria o fim para os EUA, a Europa
e o Ocidente".
Isto também causaria grandes repercussões no mundo árabe,
particularmente entre os "suprimidos" cidadãos árabes
comuns, os quais, prevê Yamani, seriam as vítimas de terroristas e
terrorismo e possivelmente golpes.
Contudo, se os EUA tiverem êxito em assegurar uma vitória sem
guerra e se Saddam for persuadido a abandonar o poder, Yamani pensa que
ocorrerá outro cenário terrível. O Iraque será
invadido e ocupado durante três anos, "o plano para dividir o
país já foi concebido pela Grã-Bretanha". O trabalho
será então retomado nos campos petrolíferos do Iraque. E
se a Venezuela retomar a sua produção de petróleo, os
preços do cairão para possivelmente US$25 por barril e a
Arábia Saudita será forçada a reduzir sua
produção. Isto também afectará as receitas do
Canal de Suez, pois menos petroleiros terão de atravessá-lo.
Mas mais danos seria infligidos à Jordânia, advertiu Yamani, que
recebe 59 mil barris de petróleo [por dia] do Iraque. "Metade
desta quantia é uma doação do Iraque e a outra metade
é paga sob a forma de exportações jordanianas para o
Iraque, via Golfo de Aqaba. Isto cessaria quando e se o Iraque fosse invadido,
naturalmente. A Jordânia "está em perigo real e
sofrerá em qualquer caso" se se incluir os planos do primeiro
ministro Ariel Sharon para expulsar os palestinos do West Bank para a
Jordânia, sugeriu. "Então será a vez do Irão e
a Síria cairá. O resultado final é que Israel será
o país mais forte e mais poderoso na região".
Apesar da variedade de cenários apresentados por Yamani, a sua conversa
acabou por aterrar no mais gélido. Saddam provavelmente criará
um bocado de problemas se o seu país for atacado. "Ele não
abandonou o Kuwait sem antes queimar os seus campos de petróleo, o que
custo US$20 milhões para consertar. Ele provavelmente também
explodirá os campos de petróleo do seu país, e isso
criará uma enorme nuvem fazendo com que os pilotos americanos não
possam ver os seus alvos".
"As horrendas repercussões de um ataque ao Iraque são
assustadoras", acrescentou Yamani. "Haverá centenas de Osamas
Bins Ladens".
Qual seria o seu conselho aos presidentes e reis que participarão da
próxima cimeira árabe, perguntou alguém a Yamani. "O
que pode a minha humilde pessoa oferecer a suas altezas,
excelências?", disparou ele, sarcasticamente. "Está a
falar acerca de líderes cujo poder não resulta do seu povo".
Ele não pôde continuar porque aplausos histéricos encheram
o salão de conferências da 35ª Feira Internacional do Livro
do Cairo.
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[*]
Jornalista do jornal egípcio Al-Ahram.
O original deste artigo encontra-se em
Al-Ahram Weekly.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info.
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