Oito falsários (e dois criminosos de guerra)

por Higinio Polo

Um deles. Faz agora um ano, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha iniciavam a guerra contra o Iraque. Umas semanas antes, a 30 de Janeiro de 2003, oito dirigentes europeus, preparando o terreno para a agressão militar, subscreviam um artigo dirigido à opinião pública europeia e mundial, que foi publicado por muitos jornais europeus. Esse manifesto, no qual os oito subscritores mentiam conscientemente, foi esquecido pela opinião pública, mas convém recordá-lo, sobretudo, para exigir uma prestação de contas àqueles que o assinaram. Recordem: eram José María Aznar, presidente do governo espanhol; Durão Barroso, primeiro ministro português; Silvio Berlusconi, primeiro ministro italiano; Tony Blair, primeiro ministro britânico; Peter Medgyessy, primeiro ministro húngaro; Leszek Miller, primeiro ministro polaco; Anders Fogh Rasmussen, primeiro ministro dinamarquês, e Václav Havel, presidente da República Checa. Eram, são, o melhor de cada casa: filhos da direita mais reaccionária, às vezes com matizes fascistas, como Berlusconi ou Aznar; social-democratas thatcherianos, como Blair; corruptos convertidos do socialismo real, como Miller ou Medgyessy; veteranos da extrema esquerda também convertidos ao liberalismo, como Durão Barroso; ou antigos dissidentes, amantes da democracia capitalista e de Washington, como Havel.

Aquela declaração dos oito estadistas, sob o título "Europa e América devem permanecer unidas", sugeria na realidade que as reticências europeias -- da França, da Alemanha e da Rússia -- perante o belicismo norte-americano, deviam desaparecer. Jogando na ambiguidade e na mentira, pese a evidente falta de provas, pese que os inspectores das Nações Unidas continuavam a trabalhar no Iraque e jamais afirmaram que o seu governo dispusesse de armas de destruição massiva, esses oito dirigentes europeus não tiveram pejo em escrever frases como esta: "O regime do Iraque e as suas armas de destruição massiva representam uma ameaça clara para a segurança mundial. Assim o reconheceram expressamente as Nações Unidas".

Mestres da hipocrisia, os oito presidentes mentirosos proclamavam no texto o seu "desejo de prosseguir pelo caminho da ONU e o nosso apoio ao seu Conselho de Segurança". Assim, os oito falsários se declaravam alarmados pelos riscos para a humanidade de umas inexistentes armas iraquianas e não se coibiam de afirmar que "a combinação de armas de destruição maciça e terrorismo supõe uma ameaça de consequências incalculáveis." Isto, sabendo como sabiam, por outro lado, que são os Estados Unidos o país que mais armas de destruição maciça possui no planeta; o único sobre a terra que utilizou os três tipos de armas convencionalmente assim chamadas (químicas, biológicas e nucleares), e o que mais tem recorrido ao terrorismo, tanto próprio e encoberto, como através do treinamento de mercenários (não se lembravam já, os oito estadistas, dos sinistros combatentes da liberdade de Reagan, entre os quais Ben Laden, que aterrorizavam a população civil no Afeganistão no tempo do governo aliado de Moscovo?).

Dispostos a acompanhar Bush e os seus generais numa repugnante agressão, os oito dirigentes não hesitaram em recorrer às grandes frases: " O nosso objectivo é salvaguardar a paz e a segurança mundiais, assegurando que este regime [o de Sadam Hussein] entregue as suas armas de destruição maciça." Num mundo de mentiras, para "salvaguardar a paz" sugeriam a conveniência de iniciar a guerra. Dispostos a tudo, para às mentiras juntar a vergonha, o manifesto nem sequer foi uma ideia sua, nem tão pouco o escreveram os oito subscritores. Tudo foi decidido nos Estados Unidos, no seguimento de uma iniciativa do Wall Street Journal, em contacto com o gabinete de Bush, e depois, em Londres, onde foi redigido o texto, a todo o momento em contacto com Washington. Não foi esta a única mesquinhez: ao mesmo tempo que trabalhavam com Bush para apoiar a guerra, os oito dirigentes europeus simulavam acreditar na ONU, cuja autoridade estava a ser dinamitada pelos constantes ultimatos dos Estados Unidos. Os oito estadistas, ao mesmo tempo que colaboravam nos preparativos de guerra, não tinham vergonha de declarar o seu apoio à paz: "A Carta das Nações Unidas comete ao Conselho de Segurança a tarefa de preservar a paz e a segurança internacionais. Para isso, é essencial que o Conselho de Segurança mantenha a sua credibilidade através da eficácia plena das suas Resoluções", afirmavam. Diziam isto quando ainda alimentavam a esperança de que os Estados Unidos lograssem forçar o Conselho de Segurança da ONU para que avalizasse a guerra de Bush. Quando se tornou evidente que não o conseguiriam, estes amantes da credibilidade do Conselho de Segurança não tiveram a mínima dúvida em apoiar uma guerra que não tinha esse aval.
Estes esforçados paladinos da democracia, defensores do papel dos parlamentos na vida democrática, tão pouco tiveram a menor dificuldade em fazer caso omisso da votação do Parlamento Europeu, que, no próprio dia em que eles publicavam o seu texto de mentiras, a 30 de Janeiro de 2003, aprovava por maioria uma resolução, na qual afirmava não ser justificado o recurso à acção militar no Iraque. Podiam estar satisfeitos. Três dias depois da publicação do texto dos oito falsários, o presidente norte-americano Bush lançava um ultimátum à ONU. A guerra já estava decidida. Aplicados títeres cobertos de ignomínia, os oito presidentes europeus puseram os seus nomes debaixo de um infame texto que se converteu num eloquente exemplo da história universal da infâmia.

Hoje, esses estadistas continuam a cavalgar na mentira, ainda que algum deles tenha já abandonado o seu antigo cargo. Nenhum pediu desculpa. Nenhum teve ao menos a dignidade de proclamar que estava equivocado. Nenhum sentiu o menor remorso por ter contribuído no Iraque para uma suja matança na qual foram assassinadas dezenas de milhar de pessoas. Levando o cinismo às suas últimas consequências, alguns inclusive implicaram-se a seguir na ilegal ocupação militar do Iraque, contribuindo para a repressão do povo iraquiano, como Aznar, Berlusconi ou Miller. Convertidos em tristes acólitos das decisões de Washington, obrigados a aceitar a política de Bush, continuam a aplaudir sem corar, uma acção imperial que está a criar múltiplos agravamentos no mundo. Mentirosos dirigentes da morte, acostumados a viver entre patranhas, fingindo com habilidade e hipocrisia o seu amor pela liberdade, calam-se agora sobre as suas mentiras de ontem. Convirá recordar a actuação destes avalistas da guerra no próximo 20 de Março, durante a Jornada Internacional contra a ocupação, em solidariedade com o Iraque e a Palestina, nas manifestações convocadas em todo o mundo.

Enquanto os oito presidentes subscreviam, faz agora um ano, essa carta repugnante, obra prima da impostura e da infâmia, os cúpidos generais do Pentágono já preparavam a matança, e eles sabiam. Os atilados personagens que estudavam os objectivos militares, estavam também a seleccionar povoações iraquianas, estações de tratamento de água, bairros de Bagdad e de Basora, para bombardear a população civil e semear o pânico. Essa suja guerra do Iraque, que continua, foi iniciada por um presidente e por um primeiro ministro — dois criminosos de guerra —, avalizados por oito falsários. Nenhum responderá pelos milhares de mortos? Agora, enquanto prossegue o horror e a ocupação no Iraque, e enquanto se exige que a detenção de Sadam Hussein culmine perante um tribunal, a opinião pública e as organizações de direitos humanos de todo o mundo deveriam exigir, por difícil que seja, que os oito falsários e os dois criminosos de guerra prestem também conta dos seus actos perante o Tribunal Penal Internacional de Haia.

07/Mar/04

O original encontra-se em http://www.rebelion.org/imperio/040307polo.htm.
Tradução de Carlos Coutinho.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
10/Mar/04