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Na recente Conferência dos Doadores de Madrid foram
prometidos US$ 33 mil milhões para a reconstrução do
Iraque. O autor questiona os motivos e a substância das
promessas dos países doadores.
Para muitos iraquianos, a Conferência de Doadores de Madrid ao insulto
acrescentou a injúria. O evento foi um surrealista leilão de
"caridade", vendendo o suposto beneficiário em estado de
sujeição. Governos do mundo posaram para as câmaras a fim
de se comprometerem nobremente a apoiar o povo do Iraque, mas a promessa foi
realmente de lealdade ao governo dos EUA e uma promessa de o apoiarem na sua
ocupação ilegítima.
Além do dinheiro oferecido pelos EUA, a maior parte dos compromissos
tomados em Madrid foi na forma de empréstimos e concessões
comerciais que agravam mais ainda a já pesada dívida
internacional do Iraque. Os interesses políticos e dos negócios
dos doadores reinaram soberanamente, ao passo que o conteúdo
humanitário e de desenvolvimento foi marginal.
Muitos compromissos de apoio financeiro decompõem-se no custo dos
contingentes militares que foram alistados para operar junto às
forças americanas e britânicas, enquanto cerca de um quarto do
compromisso americano original de US$ 20,3 mil milhões (reduzido pelo
Congresso para US$ 18,4 mil milhões) é dedicado a aspectos
puramente militares e de segurança. Além disso, a
administração Bush apresentou todo o compromisso ao
público americano no seu contexto estratégico, justificando-o
como uma forma de apoio às tropas americanas.
Uma parte da lógica do governo britânico por trás das suas
próprias promessas foi revelada por Jeremy Greenstock, um antigo
representante britânico junto ao Conselho de Segurança da ONU e
fervoroso apoiante das devastadoras sanções económicas
contra o Iraque. Greenstock, que agora actua como o vice do administrador
civil americano Paul Bremer, explicou numa entrevista ao Canal 4 da
televisão britânica que a Grã-Bretanha estava a
proporcionar dois a três por cento do total de fundos, mas ia receber 12
por cento do valor dos contratos. Naturalmente, a mesma
proporção de ganhos não está aberta aos outros
Estados, mas um desejo comum de partilhar no negócio lucrativo de
reconstruir o Iraque é óbvia na maneira de ligar a ajuda
às concessões comerciais e de projectos.
Alguns Estados do Golfo aderiram com promessas que exprimem tanto o apoio ao
empenho americano como aos seus próprios interesses financeiras e
comerciais. A Arábia Saudita falou da necessidade de um apagamento da
dívida do Iraque, mas foi incapaz de dar um exemplo. Ao invés
disso, prometeu uma redução não especificada no futuro e
prometeu mil milhões de dólares, divididos igualmente entre
financiamento a projectos e crédito comercial. Na verdade, a oferta
saudita é mesmo mais mesquinha do que parece. As suas pretensões
junto ao Iraque não têm virtualmente quaisquer probabilidades de
serem pagas excepto dentro de um liquidação internacional da
dívida. Ao invés de ser generosa, a Arábia Saudita parece
mais inclinada a fortalecer as suas reivindicações nas
próximas conversações do Clube de Paris, tentando aumentar
a sua própria probabilidade de reembolso, do que a ajudar o povo
iraquiano.
O mesmo se passa em relação ao Kuwait e à sua
insistência no reembolso de dívidas anteriores. A sua promessa de
US$ 500 milhões desvanece-se em comparação com o mais de
US$ 200 mil milhões em inflacionadas compensações pela
Guerra do Golfo apresentadas ao Iraque através da ONU. Em determinado
caso, o governo kuwaitiano reclamou US$ 86 mil milhões por danos, mas as
suas perdas foram julgadas ter sido apenas US$ 1,5 mil milhão. O Kuwait
poderia tem vindo a Madrid com uma promessa de apagar o quadro nas suas
relações financeiras com o Iraque, mas não o fez.
Por sua vez, os governos dos EUA e da Grã-Bretanha têm estado a
pressionar a comunidade internacional para avançar com
contribuições substanciais ao Fundo de Desenvolvimento do Iraque
criado em Maio de 2003 sob a Resolução 1453 do Conselho de
Segurança da ONU, mas têm resistido à
monitoração internacional deste fundo. Um acordo sobre o
estabelecimento de uma enfraquecida comissão de
monitoração levou quase seis meses para ser alcançado. No
entanto, os EUA, como era esperado, excluíram a sua própria
contribuição de US$ 18,4 mil milhões da
monitoração internacional, preferindo distribuí-la
directamente através dos seus desembolsos militares da Agência
Internacional de Desenvolvimento dos EUA.
Esta posição americana parece ter estimulado a
criação em Madrid de dois fundos adicionais para o Iraque, um
dirigido pelas Nações Unidas e outro pelo Banco Mundial.
Não está claro nesta etapa para quais destes fundos as
várias promessas de apoio internacional serão concretizadas, nem
se sabe em direcção a que prioridades económicas
serão dirigidos. A coordenação será
problemática na ausência de um Estado soberano e ferramentas
políticas efectivas e controle dos recursos. Acrescente-se a isto a
insegurança geral, além da continuação do conflito
militar, e o resultado económico parece longe de claro ou
desejável.
A Conferência de Madrid foi apresentada como uma avaliação
conjunta ONU/Banco Mundial das necessidades iraquianas a fim de clarificar o
apoio necessário. Contudo, o sector crucial do petróleo foi
omitido, pois foi considerado a preocupação única da
autoridade de ocupação juntamente com o sector da
segurança. Além disso, o impacto da despesa das forças de
ocupação e do próprio pessoal, e os efeitos das
agências internacionais e de negócios sobre a procura interna e a
capacidade infraestrutural, não foram abordados em qualquer pormenor.
Ministérios estatais foram assumidos serem capazes de operar com um
orçamento equilibrado sem apoio externo, nem com qualquer espaço
para uma política fiscal activa. Empresas possuídas pelo Estado
foram além disso canceladas como sendo sem valor económico, sem
qualquer avaliação individual pormenorizada. Aqueles limitados
fundos sugeridos para o sector público foram amplamente reservados para
a fiscalização da sua morte e não para a
reabilitação da capacidade destruída por três
guerras e uma décadas de sanções.
A avaliação da ONU/Banco Mundial não foi combinada ou
suplementada por uma avaliação do Conselho Governante Interino
(Interim Governing Council) e a administração ocupante. A sua
contribuição foi declarar uma política de porta aberta ao
comércio e ao investimento sem quaisquer precauções para a
protecção de empresas internas. Ao mesmo tempo, empresas
públicas, individuais e pequenos negócios tornaram-se
vítimas da ilegalidade geral, e os únicos negócios que
podem operar em relativa segurança são aqueles que podem
permitir-se contratar firmas de segurança privadas devidamente
licenciadas. Esta situação paralisa a economia interna e
favorece firmas estrangeiras que recebem a mina de ouro do financiamento
estrangeiro. Os ridiculamente altos custos de contratação
servirão para debilitar a capacidade interna e não para
estimulá-la. Nestas circunstâncias, o financiamento e despesas
acrescidas não estimularão o desenvolvimento.
Com base no exposto acima, pode-se assumir que o perfil da
administração económica nos próximos anos
será caracterizada pelos seguintes traços: O sector
público será pequeno e constrangido, com fraca capacidade
regulatória e nenhuma política económica activa.
Haverá um certo número de fundos públicos externos
não coordenados que funcionarão em reacção da
compromissos internacionais politicamente voláteis. Operarão
principalmente negócios privados estrangeiros através de
contratos internos sob pesada segurança privada, ou num ambiente
estilo-Mafia, pagando "protecção". Continuará a
maciça despesa militar externa, com efeitos temporários poderosos
sobre a economia. Um mercado livre favorecerá importações
para uma economia com instalações de produção
severamente danificadas e uma ambiente de negócios incerto que
está sujeito a poderosos choques externos. Finalmente, veremos o
menosprezo pela instituições iraquianas, segurança social
e capacidades humanas, como evidenciado pelas actuais tentativas da
administração ocupante de abandonar o racionamento de alimentos
de forma permanente.
Estes resultados seriam prejudiciais ao povo iraquiano, e assim chegamos ao
ponto de reflectir sobre se a Conferência de Madrid atingiu ou não
quaisquer alvos financeiros. Talvez seja mais apropriado recordar a
conferência pela corrida para agarrar uma posição nas
oportunidades de negócio no Iraque, e pela recusa em trazer para mesa a
questão do cancelamento dos pagamentos da dívida e das
reparações. O Iraque não necessitava ajuda. Precisa por
fim à dupla restrição da ocupação e da
dívida.
[*]
Economista iraquiano, professor no Instituto de Estudos
Árabes e Islâmicos da Universidade de Exeter, Grã-Bretanha.
O original encontra-se em
http://weekly.ahram.org.eg/2003/663/re7.htm
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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