«Objectivo Bagdad»
A conquista do mundo

por César Príncipe [*]

Babilónia - aqui nasceu a escrita Um dos tiros de pólvora seca para justificar a guerra preventiva contra o Iraque parte do pressuposto de que Saddam é um perigo equiparável ao da ascenção de Hitler na década de 30. É uma tese das lavandarias de cérebros, na luta pelo domínio da opinião publicada e da opinião pública. Como é dos manuais, tal cassette veio preencher uma das prateleiras da retórica intervencionista, vazia de legitimações sérias e alargadas. O argumento não suporta uma análise de superfície. Qualquer atirador de médio calibre reconhecerá que nenhum paralelismo se poderá fixar entre o regime de Saddam de 2003 (ano do clamor das armas de destruição maciça) e o regime de Hitler de 1933 (ano em que o Adolf foi empossado chanceler). A inconformidade dos tempos e dos contextos e a desproporcionalidade de países, potencialidades e poderes é tão manifesta que a metodologia da sensatez logo anula este míssil psicológico.

Bastaria um relance pelo século XX para se demonstrar o inverso: os Estados Unidos são o maior produtor, o maior detentor e o maior empregador de armas de destruição massiva e maciça (nucleares, químicas e biológicas). Algumas delas (como o antraz) foram gentilmente cedidas pelo libertador Rumsfeld ao ditador de Bagdad para ensaiar em iranianos, xiitas e curdos. Também a Inglaterra está pejada de armas químicas, biológicas e nucleares. Também Israel está bem dotado de armas químicas, biológicas e nucleares. Também o Paquistão, reconciliado com os donos do Mundo, está bem guarnecido de armas proibidas. Uns já as aplicaram, outros ameaçam despejá-las, aqui e ali, nomeadamente no Iraque. Portanto, quem poderá e a quem estará interdito desferir armas a favor e contra a Humanidade? Portanto, quais as democracias e as ditaduras com «via verde» para cometer genocídios e ecocídios? Não foi Jack Straw, na qualidade de ministro do Interior britânico, que tudo fez para que Pinochet se evadisse de Londres, escapando ileso à indignação cívica e à Justiça Internacional? Não é Jacques Straw, na qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, que tudo fez e tudo faz para abater ou julgar Saddam?

Se pretendermos também ensaiar uma provocação, talvez mais aliciante e menos inconsistente-eis um perfil-robô para um III Reich, o Anglo-Saxónico: em 2003, o Iraque emerge como país-laboratório, teatro experimental do complexo militar-industrial anglo-saxónico; em 1936, a Espanha desempenhou, para o nazi-fascismo, esse tablado de musculação continental e de manobra estratégica.

É certo que, nesse mesmo ano, a Alemanha de Hitler reocupou a Renânia, dando também aí um pontapé de partida expansionista, um sinal de abertura do trânsito para os carros de assalto da Globalização Germânica ou da Política do Espaço Vital. Todavia, a Espanha funcionou, nessa dinâmica de redesenhamento de fronteiras e de incorporação e gestão de recursos, como símbolo da arrancada imperial da Pax Germana. Desenrolou-se, então, no mapa e nos palcos das lideranças, um teste às democracias parlamentares e às democracias populares, repto transitoriamente ganho pelo nazi-fascismo.

ALIADOS-MORDOMOS

Assentava a coligação da Pax Germana no Eixo (Alemão, Italiano e Japonês, para lá de aliados-mordomos, como Portugal, Hungria ou Roménia). Hoje, a coligação da Pax Americana assenta no Eixo (Americano, Inglês e Australiano, para lá de aliados-mordomos, como Portugal, Hungria ou Roménia).

O nazismo disparava vários scuds doutrinários, a partir das rampas do Arianismo, baseado na «raça pura», alta, robusta e loira, com forte sentido étnico e que, na fase mais ingénua da História Ariana, adorou a vaca e cozeu tijolos. Visava o nazismo, entre os desígnios territoriais, económicos e militares, erradicar o judaísmo, o cristianismo e o comunismo. O bushismo também exterioriza uma gramática de pedigree anglo-saxogénico. O clã bushiano (que, de momento, lidera o processo de globamericanização) alardeia o divino encargo de expulsar o «eixo do mal» do Paraíso, periodicamente renovando a lista dos párias e obsessivamente se propondo libertar os povos com porta-aviões de última performance , miséria mínima garantida e urânio devidamente empobrecido, embargos de alimentos e medicamentos, versículos sobre os crânios renitentes. Nesta cruzada, o bushismo sintoniza-se com o sionismo-sharonismo. As voltas e as cambalhotas que o Eixo deu entre 1933 e 2003!

Com tal background de afinidades, interesses e intrigas, não admira que a libertação do Iraque comporte duas tipologias de bombas: na vaga da invasão, as propriamente ditas; na vaga da ocupação, as de gasolina.

Atentemos, pois, sem vendas no olhar, na ofensiva contra o Iraque: os exércitos do Novo Eixo premeditaram e accionaram o «Objectivo Bagdad», que não passa de uma escala técnica para atacar e protectorar uma série de Estados, apertar o cerco à Europa, redefinir os padrões-alvos da NATO e desautorizar as Nações Unidas. Entretanto, ainda não foi apresentada qualquer prova de perigo mundial das armas inconvencionais de Saddam, um dos embustes para varrer o Iraque à bomba. Entretanto, ainda não foi apresentada qualquer prova da ligação de Saddam, ex-aliado americano, a Bin Laden, ex-aliado americano. Pelo contrário, há quem tema (por exemplo, o presidente do Egipto, Hosni Mubarak ou o ex-presidente de Portugal, Mário Soares), que a guerra contra o Iraque e as respectivas sequelas inaugurem mais e superlotadas escolas de terrorismo. É evidente que há estabelecimentos de ensino clandestinos e oficiais. Estamos a reportar-nos ao terrorismo impróprio para a convivência internacional e não ao terrorismo amigo. Mubarak estima mesmo em 100 mil os predispostos a alistar-se no Terrorismo Inimigo, nessa Academia de West Point do Desespero, nesse Pentágono dos Pobres.

O ESTOFO DE BUSH

E George Bush, como responde às inquietações e destas personalidades, tão gratas de tantas administrações americanas? Que estofo de estadista e de visionário revelará Bush II na governação dos Estados Unidos e das Nações Desunidas? Antes do «11 de Setembro» apontado como «ex-drogado», «ex-alcoólico», «administrador falhado», eleito por falcatruas e cabeça de abóbora, foi transfigurado em confidente do Criador, Messias da Lockheed, da Shell e dos Povos Oprimidos. Tomado de arrebatamentos místicos, optou por relações directas com o Além, dispensando as Religiões Tradicionais (incluindo a sua, a Metodista, que condena a guerra do seu ex-devoto). Convertida a Rússia ou a URSS, conforme o espírito de cruzada, a White House e o White Power impõem, sem disfarces nem compagnons de route , a Teologia do Mercado.

Acontece que, tal como em 1933/36/42, o Novo Eixo corre para Estalinegrado, para a Normandia, para Pearl Harbor, para o maquis electrónico, para o confronto sem limites. O balanço resultará trágico em vidas (civis e militares) e patrimónios (económicos, ambientais e culturais). Acontece que entre o Admirável Mundo Novo, Brave New World (1932), de Aldous Huxley e O Triunfo dos Porcos, Animal Farm (1945), de George Orwell, hão-de as vítimas e os reservistas da paz encontrar uma saída, uma alternativa ao III Reich. Numa guerra de armas inteligentes e manejadores diminuídos, conta-se com a Nova Potência, a consciência das ruas, constituindo a mobilização interna americana um dado promissor na cadeia de esperança para alterar a marcha da Morte. Os americanos têm especiais condições e obrigações para conter o americanismo. Os europeus, principalmente estes, têm especiais condições e obrigações para conter o anti-americanismo. Mas jamais se poderá conter a lucidez, a honra, a justiça, a liberdade. E a contenção requer reciprocidade e multilateralidade. O que, nas presentes circunstâncias, permanece no domínio angélico, embora se augure que desça à Terra. Descida que impele as forças da Paz para intensificação dos diálogos em rede, a reorganização das fortalezas sociais, sindicais e culturais, a internacionalização das causas. Na agenda das causas, temos na ordem do dia e da noite, a guerra contra o Iraque, contra um povo orgulhoso de haver nascido num dos berços da agricultura e da escrita, nas rotas de caravanas da civilização, que tem em Bassorá um dos arquivos milenares da Sabedoria e da Estética e que já mereceu que Bagdad fosse enaltecida como capital do Mundo, a Nova Iorque do séc. XIII.

E agora, que dizer do Iraque?

No séc. XIX, sentenciou-se na Inglaterra: «Quando um inglês fala em Deus quer dizer Carvão». No séc. XX, sentenciou-se nos Estados Unidos: «Tudo o que é bom para a General Motors é bom para a América e tudo o que é bom para a América é bom para a General Motors». No século XXI, sentencia-se: Tudo o que um bom americano diz um bom inglês repete . Está bom de ver que os Estados Unidos ocuparam o lugar da Inglaterra no Mundo e que o Deus-Carvão foi substituído pelo Deus-Petróleo. A teocracia ou petrocracia anglo-saxónica arrasta os povos para limiares de «choque e espanto». E os povos tendem a fascinar-se pelo catastrofismo: Tudo o que é mau para a América é bom para o Mundo . Ora, esta espiral de opostos assume um carácter de After Day permanente, que urge suster nos quadros do Direito Internacional, das dignidades nacionais e das dignidades pessoais. Como, perante tanta arrogância e tanta ganância, tanta concentração da violência e tanta rarefacção da resistência?

BUSINESSGAME & VIDEOGAME

É claro que o Novo Eixo detém maiores capacidades do que o Antigo Eixo, incluindo o instrumental nuclear, de telecomando, de telespionagem, de teledestruição, de condicionamento das massas críticas, bem como meios de sedução e dissuasão de natureza económico-financeira. Felizmente os povos estão mais despertos: o regime de Saddam é um risco controlável, o regime de Bush é um risco sem controlo. O «Objectivo Bagdad» e a «Liberdade para o Iraque», consignas pressurosamente adoptadas para titulagens dos media, micro-actores e servidores do Novo Eixo, a partir das fontes de caução da guerra (porta-vozes militares e enlatados CNN) estão desacreditados pela evolução dos factos e pela voracidade dos empreiteiros da reconstrução. Não emergiu, na conquista das primeiras posições, logo a task force do abocanhamento de contratos, envolvendo figuras da Presidência, da Secretaria de Estado da Defesa, da Segurança e do Planeamento Estratégico? Os apoiantes desta guerra dividem-se em duas categorias: os indecentes e os inocentes. Todos úteis para os senhores das petroleiras e das canhoneiras. Uns fazem da guerra um negócio, o businessgame ; outros um ócio, o videogame .

E não obstante a profusão de suportes propagandísticos, salta à vista que os criativos do Pentágono, de Wall Street e da Casa Branca têm dificuldades de audiência. Apesar da overdose de editoriais, destacamento de especialistas e sistemáticas convocatórias da Imprensa em Washington e no Qatar (por exemplo, os écrans portugueses parecem ocupados militarmente, num arremedo de golpe de Estado, com «capitães» de Março ou da Coligação a exibirem peitorais-cabides de medalhas, exprimindo-se num dialecto pretensamente técnico e neutralista), os falcões e os falconetes não conseguiram vender esta guerra. O equívoco tomou proporções, que seriam risíveis se não fosse o drama em curso: os iraquianos, talvez por ingratidão, talvez por «fanatismo», segundo um director das antenas da Pátria, preferiram bater-se a receber os libertadores com pétalas dos Jardins Suspensos da Babilónia, com beijos das Mil e Uma Noites, com danças de ventre nos bunkers das cidades e nas tendas dos desertos. Vai daí o Novo Eixo decidiu-se por uma política de gente queimada: todo o iraquiano é um objectivo militar.

Salta à vista que a coligação anglo-saxónica estaria a dois passos de perder a guerra se não detivesse o exclusivo aéreo e se tivesse de sujeitar-se à implacabilidade da exposição física e à endurance das convicções. Os prisioneiros anglo-saxónicos e alguns expedicionários com microfone aberto apenas alegam que «foram mandados», que «obedecem a ordens», que «lhes pagam para cumprir». É um discurso sem defesas ideológicas ou afectivas. As tropas do Novo Eixo sentem-se orfãs de um pretexto, de um valor meritório e não brutalmente mercenário. Mas estão ali para ganhar algum e salvar a pele. Que postura deprimente para trezentos mil efectivos e mais cem mil a caminho da Libertação do Iraque: desconfiam das areias que pisam e das pessoas que lhes acenam. Que paradigma de democracia o Ocidente exporta para o Oriente. É o espectáculo da logística contra a lógica, da guerra sem princípios mas com objectivos: o saque das multinacionais e o soldo dos operacionais.

Assim tem sido desde a Suméria, a Acádia, a Babilónia, a Assíria.
Assim foi com persas e gregos, selêucidas e romanos, partos e sassânidas.
Assim foi com bizantinos, omíadas, abássidas, mongóis, safévidas.
Assim foi com otomanos, ingleses e americanos.
Assim foi com Ciro, Alexandre e Tamerlão.
Assim será com Bush & Blair.

[*] Jornalista / Escritor

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

05/Abr/03