O que está por trás da exigência de Washington de levantar as sanções ao Iraque

por Sara Flounders [*]


Antes da agressão americana, em consequência das sanções, as crianças iraquianas já precisavam de ir a filas para obter comida. O governo americano exigiu o completo e imediato levantamento das sanções do Conselho de Segurança da ONU ao Iraque.

Durante 13 anos um movimento mundial contra as sanções deparou-se com a resistência total do governo americano, tanto sob as administrações republicanas como democratas. Por que agora Washington reverteu a sua própria posição acerca disto? E como deveria o movimento mundial contra as sanções responder à nova estratégia de Washington?

Em primeiro lugar, é importante entender os motivos da administração Bush.

O Conselho de Segurança da ONU agora controla pelo menos US$ 30 mil milhões, mantido nas suas contas Petróleo por Alimentos, que foram acumulados com a venda de petróleo iraquiano durante o regime de sanções.

Desde que destruíram militarmente o governo, os EUA indicaram-se a si próprios como os responsáveis (overseer) do Iraque que escolherão os elementos de um novo governo. Mas as sanções impedem que o dinheiro vá para o Iraque. Assim, os EUA querem por um fim às sanções a fim de que estes milhares de milhões de dólares possam ser entregues a um governo no Iraque administrado pelos EUA. Encaram o dinheiro como o botim a que tem direito pela sua criminosa invasão e destruição da soberania do Iraque.

Além disso, desde Agosto de 1990 milhares de milhões de dólares de dinheiro iraquiano foram congelados em contas por todo o mundo. Um fim das sanções poderia ser um primeiro passo a fim de tornar este dinheiro disponível para um "governo iraquiano" controlado pelos EUA, o qual iria passá-lo às vorazes corporações americanas que foram premiadas com contratos para a "reconstrução" do Iraque.

As sanções provocaram a morte de mais de um milhão e meio de iraquianos, segundo estimativas da ONU. Deveria o governo que causou estas mortes e devastou cidades iraquianas numa brutal guerra de conquista ser agora ser confiado com a tarefa de administrar fundos que ele por longo tempo retirou ao povo iraquiano?

É essencial reconhecer que os EUA ou a Grã-Bretanha não tem qualquer direito aos recursos do Iraque. Não há justificação para as dezenas de milhares de soldados imperialistas que ocupam o país. É criminoso, uma agressão ilegal. Agora a campanha dos EUA para acabar com as sanções e virar aqueles milhares de milhões em fundos iraquianos retidos para si próprios, os ocupantes, é pirataria na sua forma mais grosseira.

Milhares de milhões em causa

Esta questão do levantamento das sanções ao Iraque está a perfilar-se como a próxima grande confrontação no Conselho de Segurança da ONU.

A França, a Rússia e a China têm, todos eles, poder de veto sobre o fim das sanções. Um certo número de países no Conselho de Segurança recordam a Washington que as sanções não podem ser levantadas até que os inspectores de armas da ONU confirmem que o Iraque não tem armas de destruição em massa. Isto diplomaticamente joga na cara de Washington a mesma desculpa fraudulenta que o governo americano utilizou durante 13 anos para continuar as sanções.

A França mais uma vez enraiveceu a administração Bush ao propor que as sanções civis podiam ser "suspensas" por razões humanitárias. Ao declarar que não era pelo "levantamento" das sanções, estava a recordar Washington de que a teia de sanções que os EUA haviam estendido davam ao Conselho de Segurança controle sobre todas as futuras receitas petrolíferas do Iraque. Também é esta a posição da Rússia.

O porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer, rejeitou estas visões quando declarou categoricamente: "As sanções deveriam ser levantadas e não meramente suspensas. ... Com a queda do regime, a posição dos EUA é de que as sanções económicas já não são necessárias".

Enquanto as sanções permanecerem oficialmente em vigor, as receitas de todo o petróleo iraquiano vendido continuarão a ser depositadas em contas da ONU. Milhares de milhões de dólares estão em jogo nos contratos futuros. Os países do Conselho de Segurança que apoiaram os EUA na imposição de sanções não estão tão ansiosos para repassarem estes fundos acumulados, o meio para todos os contratos de reconstrução, e as futuras receitas do petróleo, para os conquistadores.

Naturalmente, a França também pode estar desejosa de conseguir um acordo discreto com o imperialismo americano em troca de uma fatia destes fundos expropriados e de futuros contratos. A França, deve-se recordar, também é uma potência imperialista com interesses financeiros globais baseados no saque de recursos dos países em desenvolvimento que outrora fizeram parte do seu império colonial. A França tem tropas em vários países africanos.

Isto é uma parte da razão porque Washington não quer as Nações Unidas envolvidas de qualquer forma no Iraque. A administração Bush não quer quaisquer outras reclamações financeiras sobre o seu roubo unilateral.

A Síria, um membro rotativo do Conselho de Segurança, declarou que o levantamento das sanções "legalizaria a invasão americana e britânica". Isto daria aos EUA "o direito de controlar o petróleo do Iraque e instalar o governo que preferisse".

Enquanto isso, a administração Bush está a pressionar exactamente pela instalação de um tal governo. Ela, conforme relatado, planeia para a Maio a colocação do controle diário da indústria petrolífera nas mãos de iraquianos indicados pela administração Bush. Eles por sua vez estarão sob a administração "civil" do general americano reformado Jay Garner. Um antigo director-executivo da Shell, Philip J. Carroll, encabeçará um comité de aconselhamento para a indústria petrolífera iraquiana. Será claramente neste comité que serão tomadas as decisões reais.

Até que se torne claro quem tem titulo legal ao petróleo do Iraque será difícil para os EUA vender o óleo no mercado mundial. Antes da guerra de 1991, a receita petrolífera iraquiana montava a mais de US$ 20 mil milhões por ano.

História das sanções da ONU

Vale a pena rever a história das sanções dos EUA/ONU impostas ao Iraque, seu impacto e o que está em causa hoje neste novo e velho debate.

Em Agosto de 1990, utilizando o seu poder esmagador, Washington articulou e martelou junto ao Conselho de Segurança da ONU as sanções económicas que estrangularam o Iraque ao longo dos últimos 13 anos. As sanções foram definidas como uma medida para forçar o Iraque a retirar-se do Kuwait.

Deve-se recordar que em 25 de Julho, antes da invasão do Kuwait, a embaixadora americana April Glaspie encontrou-se com o líder iraquiano Saddam Hussein. Ele informou-as de que o Iraque tomaria medidas contra o Kuwait se as negociações fracassassem. O rico sheik do Kuwait estivera a manter baixos os preços do óleo e a roubar o petróleo iraquiano por meio de perfurações dirigidas (slant drilling) no seu subsolo. O Iraque estava numa horrenda situação financeira devido à sua guerra com o Irão.

Glaspie respondeu que Washington "não tinha opinião" acerca do conflito do Iraque com o Kuwait.

Quanto o Iraque entrou no Kuwait, contudo, os EUA exigiram e obtiveram da ONU a mais extrema forma de punição colectiva já imposta desde sempre a todo um povo.

O Iraque não podia vender o seu petróleo ou quaisquer outros bens. Não podia importar coisa alguma. Todos os seus fundos mantidos em bancos fora do Iraque — milhares de milhões de dólares da venda de petróleo — foram congelados. Com os seus fundos congelados, sem qualquer comércio, créditos ou empréstimos, toda a economia soçobrou. A inflação tornou-se galopante e fora de controle.

Quando o Pentágono principiou a bombardear, em Janeiro de 1991, seus objectivos foram escolhidos de modo a agravar o impacto mortal das sanções. Os EUA conscientemente destruíram as instalações de água, saneamento básico, esgotos e bombagem, juntamente com fábricas de processamento de alimentos, industrias farmacêuticas e instalações médicas. Epidemias de cólera, tifo e sarampo irromperam. Em poucos meses, dezenas de milhares de crianças iraquianas foram mortas pela contaminação da água não tratada.

No fim de uma maciça campanha americana de 40 dias de bombardeamento, o Iraque retirou-se do Kuwait. Isto deveria ter acabado com as razões para as sanções da ONU. Mas como condição para o cessar-fogo os EUA exigiram que as sanções permanecessem até que o Conselho de Segurança da ONU tivesse confirmado que o Iraque havia destruído quaisquer armas não convencionais que pudesse ter obtido.

Isto tornou-se a desculpa para uma luta prolongada a fim de exigir o direito de enviar milhares de inspectores ao Iraque para confirmar que este não tinha tais armas. Todas as indústrias necessárias para qualquer país industrializado moderno funcionar foram explodidas, incluindo fábricas químicas e fábricas de fertilizantes e pesticidas. Apesar de mais de 9000 inspecções, a contínua ameaça de veto americano manteve em vigor estas sanções destinadas a provocar a fome durante 13 anos.

A campanha contra as sanções

Desde o seu início, em 1991, o International Action Center travou uma campanha para acabar com as sanções ao Iraque. O antigo Procurador-Geral dos EUA, Ramsey Clark, fundador do IAC, num esforço para chamar a atenção do mundo para o impacto das sanções, efectuou difíceis viagens anuais ao Iraque com delegações à procura de factos. Ele escreveu um International Appeal to End Sanctions on Iraq que foi assinado por um certo número de líderes mundiais, juntamente com grupos internacionais de direitos humanos e organizações pacifistas.

O apelo caracterizou as sanções como uma arma de genocídio e um "crime contra a humanidade", tal como definido pelos Princípios de Nuremberg. O apelo foi traduzido em muitas línguas e tornou-se a base de uma série de conferências de paz internacionais em Londres, Roma, Atenas, Madrid, Tóquio, Nova York e S. Francisco.

Em 1995 a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) confirmou que 567 mi crianças abaixo dos cinco anos havia morrido em resultado directo das contínuas sanções da ONU. Uma crescente mobilização global exigindo que as sanções fossem levantadas criou uma viragem radical na opinião pública mundial.

Como o ultraje mundial crescia, os EUA mudaram a sua abordagem de relações publicas. Numa tentativa de dar uma cobertura humanitária à sua política brutal, pressionaram pelo Programa Petróleo por Alimentos. Este programa permitia ao Iraque vender uma quantidade limitada do seu petróleo e comprar comida e medicamentos com esta receita. O Conselho de Segurança da ONU, sob um comité especial chamado Comité 661, controlaria todas as receitas e reveria todo contrato para os abastecimentos que o Iraque recebesse.

Com os recursos destas vendas de petróleo severamente restringidas o Iraque também teria de pagar reparações ao Iraque e muitas das outras reclamações provocadas pela destruição e bombardeamento americano na guerra de 1991. De Janeiro de 1997, quando este programa começou, ao fim de 2001, o Iraque pôde vender aproximadamente US$ 50 mil milhões de petróleo. Todo este dinheiro foi depositado numa contra controlada pela ONU. O Iraque recebeu menos de 25 por cento desta quantia para a compra de alimentos e medicamentos, montando a menos de 22 centavos de dólar por dia e por pessoa.

Cerca de 34 por cento da receita iraquiana do Petróleo por Alimentos foi para a monarquia kuwaitiana e outras "vítimas" da guerra de 1991. A ExxonMobil recebeu US$ 200 milhões em "reparações de guerra" dos fundos Petróleo por Alimentos, os quais eram supostos alimentar crianças iraquianas famintas. Milhares de milhões de dólares foram também para a ONU administrar este programa. Foi criada uma burocracia multibilionária que garantia contratos lucrativos para muitos países.

Nos últimos seis anos os representantes americanos e britânicos no Comité 661 negaram, atrasaram ou obstruíram a maior parte dos contratos submetidos pelo Iraque. Sob a pressão do EUA, o comité negou mais de 90 por cento dos contratos do Iraque para a reparação dos sistemas de água e esgotos e para projectos de irrigação.

Devido à esta obstrução contínua, milhares de milhões de dólares de vendas de petróleo nunca foram libertados para as desesperadoras necessidades do Iraque, mas continuaram a ser mantidos em contas da ONU. É sobre estes fundos, bem como os das futuras receitas do petróleo, que as corporações americanas querem apossar-se e exercer controle indiscutível.

O movimento mundial para acabar as sanções ao Iraque é essencialmente um movimento para lutar pelo direito de o povo iraquiano controlar os seus próprios recursos. As sanções foram um crime contra a humanidade e um assalto à soberania nacional de todo país em desenvolvimento. Elas devem ser levantadas.

Mas aos ocupantes americanos do Iraque de hoje não deve ser permitido que continuem a sua pilhagem imperialista sob uma outra forma. O movimento anti-guerra e anti-sanções deve exigir que as tropas americanas se retirem, bem como os seus sequazes escolhidos a dedo. Nem um centavo do petróleo do Iraque deveria ir para o criminoso regime americano de ocupação.

___________
[*] Sara Flounders é coordenadora do Iraq Sanctions Challenge e co-directora do International Action Center .

(Copyright Workers World Service: Everyone is permitted to copy and distribute verbatim copies of this document, but changing it is not allowed. For more information contact Workers World, 55 W. 17 St., NY, NY 10011; via email: ww@wwpublish.com . Subscribe wwnews-on@wwpublish.com . Unsubscribe wwnews-off@wwpublish.com . Support independent news http://www.workers.org/orders/donate.php)

O original encontra-se em http://www.workers.org/ww/2003/sanctions0508.php .

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

12/Mai/03