Iraque: A ironia da História

por James Petras

James Petras. Entre as mentiras e deturpações mais insidiosas que os regimes de Bush e Blair e os seus meios de comunicação de massas inventaram para justificar esta guerra genocida está a ideia de que o povo iraquiano acolheria os invasores como libertadores e que (especialmente os xiitas) se sublevariam para derrubar o regime de Saddam Hussein. Quando nada disso aconteceu – a população iraquiana é hostil aos invasores – a campanha dos meios de comunicação anglo-americanos disse que se devia ao seu medo do exército iraquiano, dos comandos do partido Baas e da milícia local. A comunicação de massas continuou a descrever o povo iraquiano como «aterrorizado» por Saddam Hussein e na esperança de que os EUA destruíssem o seu regime antes de exprimir os seus «verdadeiros sentimentos» de gratidão aos invasores, aos seus tanques, mísseis e bombas de fragmentação.

A teoria dos meios de comunicação ocidentais e dos generais e políticos anglo-americanos era a de que havia uma distância insuperável entre Saddam Hussein, o Estado iraquiano e o «povo», o que levaria a um colapso do exército, uma vez que as forças armadas anglo-americanas conquistassem as cidades e aldeias. O registo histórico e a realidade empírica refutam todas as propostas do comando militar dos EUA.

Primeiro, a guerra não conduziu a nenhuma divisão nem abandono dentro das Forças Armadas ou entre os dirigentes políticos do Iraque, apesar de as unidades militares estarem descentralizadas e frequentemente isoladas do comando de Bagdad.

Segundo, não houve nenhum levantamento popular contra o regime iraquiano durante os primeiros dias da invasão norte-americana nem quando os invasores entraram nas cidades. Pelo contrário, a resistência mais eficaz e consistente no sul do Iraque contra esses invasores foi a milícia popular e as forças guerrilheiras que na sua maioria incluíam civis e cidadãos desafectos à Guarda Republicana Especial ou ao exército regular.

O tremendo bombardeamento de Baçorá e o cerco britânico à cidade deveram-se ao facto de os cidadãos, a milícia e os soldados lutarem juntos – não pela coacção de Saddam Hussein – mas por serem patriotas iraquianos defendendo as suas famílias, as suas comunidades e a sua nação dos invasores genocidas. Qualquer oposição ao regime que possa ter existido, desapareceu perante o bombardeamento em massa, o assassínio e a mutilação de milhares de crianças, mulheres, velhos e cidadãos normais iraquianos. A «guerra total» de Rumsfeld uniu os diferentes sectores políticos e sociais da população iraquiana em aldeias, cidades e vilas. Camponeses idosos disparavam sobre as tropas que passavam, mulheres grávidas atacavam os marines dos EUA, os adolescentes disparavam aos helicópteros dos telhados das casas… No sul de Baçorá, Al-Najaf e grandes zonas de Al-Nasiriya não foram tomadas, apesar de semanas de bombardeamento aéreo e de artilharia. As forças invasoras anglo-americanas, ao depararem com a hostilidade e a rejeição gerais, começaram a disparar indiscriminadamente contra homens e mulheres jovens com os seus grandes roupas ondulando ao vento por usarem o tipo incorrecto de calçado, e às mulheres com as suas grandes roupas; sobretudo, o comando geral ordenou às forças aéreas que usassem bombas de fragmentação para dizimar a população urbana.

A milícia local não são simplesmente activistas do partido Baas, mas principalmente iraquianos apolíticos furiosos pela morte e mutilação de amigos e familiares, pela destruição de habitações, escolas, fábricas, escritórios e dos seus meios de vida. Os activistas do partido Baas misturam-se com milhares de voluntários de bairros pobres e exilados da classe média que regressaram para lutar pela nação iraquiana.

As distinções que os meios de comunicação ocidentais fazem ao descrever a resistência iraquiana são falsas – sob as condições de uma guerra genocida – porque as bombas e os mísseis não fazem distinções nos seus ataques assassinos.

Os meios de comunicação de massas dos Estados ocidentais descrevem Saddam Hussein como um «ditador», um tirano, um «Hitler» que é odiado pelo seu povo. Isto poderá ter sido verdade entre alguns sectores da população antes da Guerra, mas perante o bombardeamento terrorista anglo-americano, a ocupação dos poços petrolíferos, a ocupação do país e a destruição dos fornecimentos de água, electricidade e alimentos, a recusa e a resistência de Saddam Hussein tornaram-no um herói popular nacional.

Muitos jornalistas ocidentais progressistas bem intencionados continuam a tentar «equilibrar» a sua descrição das atrocidades anglo-americanas com a contínua referência aos crimes de Saddam Hussein de há uma ou duas décadas como se o seu pecado original ainda o defina a ele e à sua identidade política actual, no meio de uma guerra contra os invasores coloniais.

Estes repórteres progressistas não podem aceitar que um político como Saddam Hussein (mesmo alguém que cometeu graves crimes no passado), se redima e se redefina nas novas circunstâncias: que, longe de ser um criminoso de guerra, está comprometido a lutar contra o genocídio; de cliente de EUA contra o Irão, transformou-se num líder de uma revitalização do movimento pan-árabe que pretende derrubar os regimes corruptos clientes dos EUA no Médio Oriente. A História funciona de modos estranhos. Hoje em dia, não teme lavar as mãos dos «duplos demónios» Rumsfeld lançando bombas sobre cidadãos civis e o ditador Saddam Hussein armando todo o povo e ficando sozinho entre os dirigentes árabes para defender a nação árabe contra a recolonização.

No filme «A batalha de Argel», um jovem ladrúnculo encarcerado pelas autoridades coloniais francesas é posto em liberdade e incorpora-se na Frente de Libertação Nacional, tornando-se um líder da resistência anticolonialista e um herói das massas argelinas. A máquina de propaganda estatal colonial prefere descrevê-lo como parte da «conspiração terrorista criminosa» por desafiar os símbolos e a presença dos colonos franceses. Para o povo colonizado, foi visto como um símbolo heróico da nação resistindo aos invasores e aos bombardeamentos, um homem que no decorrer da sua luta se transformou de ladrúnculo num herói popular… É igualmente possível que suceda o mesmo com Saddam Hussein: não fugiu, não se rendeu, não partiu para o exílio, permaneceu em Bagdad e ficou para lutar apesar do bombardeamento terrorista, dia e noite, e de um quarto de milhão de invasores procurarem a sua cabeça. Não nos iludamos, Saddam pode personificar a resistência nacional para muita gente, mas para a maioria dos iraquianos que lutam contra os tanques Abram, os helicópteros Cobra e os bombardeiros B52 dos EUA, armados com pouco mais que espingardas e lança-granadas, a luta é por objectivos que transcendem Saddam Hussein: lutam pelo seu país, pela sua nação, pelos seus cinco mil anos de civilização e pela sua dignidade como povo independente.

Por isso, milhões de iraquianos estão a resistir aos invasores, mulheres grávidas e jovens continuam a atacar os exércitos ocupantes. É uma coisa que todos os especialistas do Pentágono, os comentadores dos meios de comunicação de massas e os assessores israelenses não poderão compreender e nunca entenderão: essas forças podem conquistar mas nunca governarão. Um povo orgulhoso e independente luta ao lado de um tirano nacional transformado em líder contra um invasor conquistador e assassino.

Nos anos vindouros, os investigadores especializados no Médio Oriente talvez escrevam sobre a grande ironia da História, que autoproclamadas democracias ocidentais cometeram crimes contra a Humanidade, enquanto um ditador único resistiu e defendeu o seu povo no meio dos escombros a arder de uma antiga cidade devastada. Será mais reverenciado morto do que vivo, pelo que defendeu no final, e não pelo seu passado.

05/Abr/03

A versão em espanhol encontra-se em http://www.rebelion.org .
Tradução de José Colaço Barreiros.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
12/Abr/03