Entrevista de Noam Chomsky sobre o Iraque
Entrevistador: Michael Albert
[*]
Quanto Sadam cometia os seus piores crimes e era realmente perigoso contava com
todo o apoio dos EUA. Hoje, quando o Iraque está em ruínas,
controlado e bombardeado, prepara-se a guerra contra ele, enquanto os arsenais
de Israel estão repletos de armas nucleares e Israel constitui na
prática uma imensa base militar dos EUA no Oriente Próximo.
É o que mostra Noam Chomsky, uma das vozes mais lúcidas dos EUA,
nesta entrevista.
É o pior que pode haver, tal como Suharto e outros monstros da era moderna. Todos os que puderem deveriam pôr-se fora do seu alcance. Mas, por sorte, o seu alcance não vai muito longe. Internacionalmente, Sadam invadiu o Irão (com apoio ocidental) e, quando a guerra ia mal, recorreu a armas químicas (também com apoio ocidental). Invadiu o Kuwait e expulsaram-no rapidamente. Uma das grandes preocupações em Washington, logo após a invasão, era de que Sadam se retirasse rapidamente, instalando "o seu títere [e] que todos no mundo árabe ficassem contentes" (Colin Powell, naquela época Chefe do Estado Maior). O Presidente Bush estava preocupado com a possibilidade de que a Arábia Saudita pudesse "desligar-se na última hora e aceitasse um regime títere no Kuwait". A menos que os EUA impedissem a retirada iraquiana. A preocupação, em suma, era que Sadam pudesse reproduzir o que os EUA acabavam de fazer no Panamá (excepto que os latino-americanos estavam longe de contentes). Desde o primeiro momento os EUA tentaram evitar esse "panorama de pesadelo". Trata-se de uma história que deve ser considerada com muito cuidado. Até agora os piores crimes de Sadam têm sido internos, incluindo o uso de armas químicas contra os curdos e uma grande matança de curdos em fins dos anos 80, bárbaras torturas, e os mais espantosos crimes imagináveis. Estão no topo da lista dos crimes terríveis, pelo que é justamente condenado no presente. Mas é bom perguntar com que frequência essas apaixonadas denúncias e eloquentes expressões de horror são acompanhadas destas três palavrinhas: "com nossa ajuda" . Os crimes foram de imediato bem conhecidos, mas não preocuparam demasiado o Ocidente. Sadam recebeu algumas suaves reprimendas; uma dura condenação do Congresso foi considerada demasiado extrema por eminentes comentaristas. Os reaganistas e Bush nº 1 continuaram a saudar o monstro como aliado e apreciado sócio comercial, durante e após as suas piores atrocidades. Bush autorizou garantias de empréstimos e a venda de tecnologia avançada com claras aplicações em armas de destruição maciça (WMD, na sua sigla em inglês) até o próprio dia da invasão do Kuwait, fazendo por vezes caso omisso dos esforços de parlamentares para impedir o que estava a fazer. A Grã-Bretanha continuava ainda a autorizar a exportação de equipamentos militares e de materiais radioactivos alguns dias depois da invasão. Quando o correspondente da cadeia ABC e actualmente comentarista da Znet, Charles Glass, descobriu instalações de armas biológicas (utilizando satélites comerciais e testemunhos de fugitivos), suas revelações foram imediatamente desmentidas pelo Pentágono e a história desapareceu. Foi desenterrada quando Sadam cometeu o seu primeiro crime verdadeiro: desobedecer as ordens dos EUA (ou talvez interpretá-las mal) ao invadir o Kuwait e passou, instantaneamente, de amigo a reencarnação de Átila. As mesmas instalações foram então utilizadas para demonstrar a sua natureza perversa inata. Quando Bush nº 1 anunciou novas prendas ao seu amigo, em Dezembro de 1989 (prendas também à agroindústria dos EUA), foram consideradas demasiado insignificantes para mencioná-las, ainda que se pudesse ler a respeito em Z magazine nessa época, talvez em nenhum outro lugar. Uns poucos meses depois, pouco antes de invadir o Kuwait, uma delegação de alto nível do Senado, encabeçada pelo que (mais tarde) foi o candidato presidencial republicano, Bob Dole, visitou Sadam, levando as saudações do Presidente e assegurando ao brutal assassino em massa que não precisava preocupar-se com as críticas que ouvia dos repórteres inconformistas deste país. Sadam pôde inclusive desenvencilhar-se depois de atacar um navio dos EUA, o USS Stark, matando várias dezenas de tripulantes. É um sinal de verdadeira estima. O único outro país que conseguiu esse privilégio foi Israel, em 1967. Em deferência a Sadam, o Departamento de Estado proibiu todos os contactos com a oposição democrática iraquiana, mantendo essa política inclusive depois da Guerra do Golfo, enquanto Washington efectivamente autorizava Sadam a esmagar uma rebelião xiita que poderia tê-lo derrubado a fim de preservar a "estabilidade" explicou a imprensa, anuindo gravemente. Não há dúvida de que é um criminoso com C maiúsculo. Não deixa de ser pelo facto de que os EUA e a Grã-Bretanha terem considerado insignificantes suas piores atrocidades por "razões de estado" mais importantes, antes da Guerra do Golfo e até depois. 2- Encarando o futuro, será Sadam Husein tão perigoso como o dizem os media convencionais? O mundo estaria melhor se ele não estivesse lá, não há dúvida. Certamente o mesmo é verdadeiro para os iraquianos. Mas não pode ser tão perigoso como era quando os EUA e a Grã-Bretanha o apoiavam, fornecendo-lhe inclusive tecnologia de dupla utilização que podia utilizar para o desenvolvimento de armas nucleares e químicas, como presumivelmente terá feito. Há 10 anos, as audiências do Comité Bancário do Senado revelaram que a administração Bush estava concedendo licenças para tecnologia de dupla utilização e para "materiais que fossem posteriormente utilizado pelo regime iraquiano para mísseis nucleares e químicos". As audiências acrescentaram mais informações e há relatórios da imprensa e da literatura erudita convencional sobre o assunto (assim como literatura dissidente). A guerra de 1991 foi extremamente destrutiva e, desde então, o Iraque foi assolado por uma década de sanções que provavelmente fortaleceram o próprio Sadam (debilitando a possível resistência numa sociedade despedaçada), mas certamente reduziu consideravelmente sua capacidade bélica e de apoio ao terror. Além disso, desde 1991 o seu regime foi limitado por "zonas de não voo", voos regulares de controle e bombardeamento, e uma vigilância muito estrita. É provável que os acontecimentos do 11 de Setembro o tenham enfraquecido ainda mais. Se há alguma relação entre Sadam e o Al Qaeda, seria muito mais difícil mantê-la agora devido à grande intensificação da vigilância e dos controles. Aliás, tais ligações não são muito prováveis. Apesar dos enormes esforços para relacionar Sadam com os ataques do 11 de Setembro, não encontraram nada, o que não é muito surpreendente. Sadam e Bin Laden eram implacáveis inimigos, e não há nenhuma razão particular para supor que tenha havido alguma mudança em relação a isso. A conclusão racional é que Sadam provavelmente será menos perigoso agora do que antes do 11 de Setembro, e uma ameaça menor do que quando gozava do apoio substancial dos EUA, da Grã-Bretanha e de muitos outros países. Isto leva a algumas perguntas. Se Sadam representa actualmente uma ameaça tão grande para a sobrevivência da civilização que o polícia global tem de recorrer à guerra, porque não foi assim há um ano? E, de maneira muito mais dramática, em princípios de 1990? 3- Como se deveria enfrentar o problema da existência e da utilização de armas de destruição maciça no mundo de hoje? Deveriam ser eliminadas. O Tratado de Não Proliferação compromete os países com armas nucleares a tomarem passos para a sua eliminação. Os tratados sobre as armas biológicas e químicas têm os mesmos objectivos. A principal resolução do Conselho de Segurança sobre o Iraque (687, de 1991) apela à eliminação das armas de destruição maciça e dos sistemas de lançamento do Oriente Próximo, e que se trabalhe rumo a uma proibição global das armas químicas. É um bom conselho. O Iraque está longe de estar na vanguarda a este respeito. Poderíamos recordar a advertência do General Lee Butler, chefe do Comando Estratégico de Clinton nos princípios dos anos 90, de que "é extremamente perigoso que no caldeirão de animosidades a que chamamos Oriente Próximo uma nação se tenha armado, ostensivamente, com arsenais de armas nucleares, centenas talvez, e que inspire outras nações a fazê-lo". Estava a falar, certamente, de Israel. As autoridades militares israelenses afirmam que possuem forças aéreas e blindadas que são maiores e mais avançadas do que as qualquer potência europeia da NATO (Yitzhak ben Israel, Ha'aretz , 16 de Abril de 2002, em hebraico). Também anunciam que uns 12% dos seus bombardeiros e caças está estacionada permanentemente na Turquia oriental, junto com forças navais e submarinas comparáveis em bases turcas, e também forças blindadas, para o caso de se tornar necessário recorrer a extrema violência, mais uma vez, para submeter a população curda da Turquia, como nos anos Clinton. Informa-se que os aviões israelenses estacionados estão a realizar voos de reconhecimento ao longo das fronteiras iranianas, como parte de uma política geral dos EUA, Israel e Turquia de ameaçar o Irão com um ataque e talvez uma partição forçada. Os analistas israelenses também informam que os exercícios aéreos conjuntos dos EUA, de Israel e da Turquia têm a intenção de representar uma ameaça e uma advertência ao Irão. E, naturalmente, ao Iraque (Robert Olson, Middle East Policy , Junho de 2002). Israel utiliza sem dúvida as imensas bases aéreas dos EUA na Turquia Oriental, onde presumivelmente bombardeiros dos EUA têm armas nucleares. Enquanto isso, Israel é virtualmente uma base militar offshore dos EUA. E o resto da área também está armado até aos dentes. Mesmo que o Iraque fosse governado por Gandhi se pudesse estaria a desenvolver sistemas de armas, provavelmente muito mais intensamente do que pode fazê-lo agora. Isso provavelmente continuaria, talvez até se acelerasse, se os EUA ganhasse o controle do Iraque. A Índia e o Paquistão são aliados dos EUA, mas avançam com o desenvolvimento de armas de destruição maciça e várias vezes terrivelmente próximos de utilizarem armas nucleares. O mesmo vale para outros aliados e clientes dos EUA. É provável que isto continue até que haja uma redução geral de armamentos na zona. Será que Sadam estaria de acordo? Na realidade, não sabemos. Em princípios de Janeiro de 1991, o Iraque aparentemente ofereceu a retirada do Kuwait no contexto de negociações regionais de redução de armamentos, uma oferta que funcionários do Departamento de Estado descreveram como séria e negociável. Mas não sabemos mais do assunto, porque os EUA rechaçaram a oferta sem lhe dar resposta e a imprensa não informou virtualmente nada a respeito. Entretanto, tem um certo interesse saber que nesse momento exactamente antes dos bombardeamentos os inquéritos revelassem que a opinião pública dos EUA preferisse numa proporção de 2:1 a proposição que Sadam aparentemente havia feito, preferindo-a aos bombardeamentos. Se se tivesse permitido que as pessoas fossem informadas sobre o tema, certamente a maioria teria sido muito superior. A ocultação dos factos foi um serviço importante por causa da violência estatal. Poderiam essas negociações ter levado a algo? Só os ideólogos fanáticos podem mostrar confiança. É possível reviver tais ideias? A mesma resposta continua verdadeira. Uma maneira de descobrir é experimentar. [*] O original desta entrevista encontra-se em http://www.zmag.org/ , com o título: "Albert Interviews Chomsky on Iraq". Este artigo encontra-se em http://resistir.info |