Como Bush pode massacrar um povo que diz querer libertar?, pergunta-se em Bagdad
BAGDAD, 26/Março Foi um escândalo, uma obscenidade. A
mão enclavinhada na porta metálica, o charco de sangue e areia no
caminho, os miolos humanos na garagem, os restos calcinados de uma mãe
iraquiana e dos seus três pequenos filhos no automóvel ainda
fumegante. Dois mísseis disparados por um só jacto estadunidense
os matou: mais de 20 civis iraquianos explodidos em pedaços antes que
pudessem ser libertados pelo país que os arrancou à vida. Quem
se atreve, pergunto-me, a chamar isto um "dano colateral".
A rua Abú Taleb estava repleta de peões e automobilistas quando o
piloto estadunidense se aproximou na densa tormenta de areia que esta
manhã cobriu o norte de Bagdad com um véu de pó e chuva de cor
vermelha e amarela.
É um bairro pobre e poeirento na sua maioria de muçulmanos
xiitas, esse povo que George W. Bush e Tony Blair ainda confiam em que se
levantará contra Saddam Hussein , lugar de graxentas oficinas
mecanicas de automóveis, de edifícios de apartamentos repletos e
de cafés baratos.
Todas as pessoas com quem falei ouviram o avião. Um homem, emocionado
pelos corpos decapitados que acabava de ver, apenas pode dizer quatro palavras:
"Um rugido, uma luz", que repetia várias vezes e, por fim,
fechou os olhos com tal força que se enrugaram os músculos que os
rodeiam.
Carniceria humana
Como relatar um acontecimento tão terrível? Talvez um
relatório médico fosse mais apropriado. Contudo, prevê-se
que a conta mortal chegará finalmente a cerca de 30 e agora os
iraquianos presenciam diariamente estes horrores, assim não há
razão para não dizer a verdade, toda a verdade do que vêm.
Enquanto caminhava hoje pelo lugar desta matança ocorreu-me outra
pergunta: se isto é o que estamos a ver em Bagdad, o que se
passará em Basora, Nasiriya e Kerbala? Quanto civis também
estão morrendo lá, de forma anónima, sem que
ninguém informe porque não há repórteres que
testemunhem seu sofrimento?
Abú Hassán e Malek Hammoud preparavam a comida para os fregueses
do restaurante Nasser, na parte norte da rua Abú Taleb. O
mísssil que os matou caiu exactamente ao lado do trilho em
direcção oeste, e a explosão arrancou a frente do
café e cortou em pedaços ambos os homens, o primeiro de 48 anos
de idade e o segundo apenas com 18.
Um dos seus companheiros de trabalho guiou-me pelos escombros. "É
tudo o que resta deles", disse, mostrando-me uma panela que gotejava
sangue.
Pelo menos 15 automóveis explodiram em chamas e todos os seus ocupantes
morreram incinerados. Vários homens sacudiam desesperadamente a porta
de outro veículo que se incendiava no meio da rua, o qual havia-se
voltado devido ao mesmo míssil.
Viram-se obrigados a olhar com impotência como os ocupantes, uma mulher e
os seus três filhos, eram cremados vivos diante deles.
O segundo míssil bateu no trilho em direcção leste e
lançou pedaços de metal nos três homens que estavam
sentados fora de um conjunto de apartamentos em betão, em cujo muro
exterior se lê, escrito com giz, "Isto é propriedade de
Deus".
O porteiro do edifício, Hishem Danún, correu à porta logo
que ouviu a terrível explosão. "Ali encontrei Ta'ar feito
em pedaços", disse-me. A cabeça fora arrancada. "Essa
é sua mão".
Um grupo de homens e mulheres jovens levou-me à rua e ali, numa cena de
filme de horror, estava a mão cortada na altura do punho, com os dedos a
segurarem um pedaço de ferro.
Seu jovem colega, Sermed, morreu instantaneamente. Seus miolos viam-se
amontoados uns metros mais além, uma massa de cor cinza e vermelho claro
por trás de um automóvel incendiado. Ambos eram empregados de
Danún, tal como um porteiro do edifício, que também
pereceu. À medida que cada sobrevivente falava, as vítimas
recuperavam sua identidade.
Estava o dono da oficina eléctrica, morto por trás do seu
balcão pelo mesmo míssil que acabou com Ta'ar, Sermed e o
porteiro, assim como uma jovenzinha que estava parada na zona peatonal do
centro da rua, tentando cruzar, o condutor de um camião que ia a uns
metros do lugar do impacto e o mendigo que vinha todos os dias para pedir
pão a Danún e acabava de sair dali quando os mísseis
apareceram rugindo entre a tormenta de areia para destruí-los.
Em Qatar as forças anglo-estadunidenses esqueçamos essa
asneirada da "coalizão" anunciaram uma
investigação. O governo iraquiano, o único que se
beneficia com o valor propagandístico de semelhante banho de sangue,
naturalmente denunciou a matança e fixou em princípio em 14 o
número de vítimas mortais.
Qual era o verdadeiro alvo? Alguns iraquianos disseram que havia um
acampamento militar a menos de quilómetro e meio da rua, ainda que
não tenha conseguido encontrá-lo. Outros falavam de um quartel
local de bombeiros, mas este dificilmente poderia ser descrito como objectivo
militar.
Certo, havia-se realizado um ataque menos de uma horas antes a um campo militar
situado ao norte. Passava eu no meu automóvel pela base quando dois
foguetes explodiram e vi soldados iraquianos sairem correndo das portas em
direcção à avenida para se porem a salvo.
A seguir ouvi duas explosões mais: as dos mísseis que atingiram
a rua Abú Taleb.
Matar com alegria
Naturalmente, o piloto que matou hoje esses inocentes não podia ver suas
vítimas. Disparam por meio de coordenadas alinhadas por computador e a
tormenta de areia pode haver ocultado a rua.
Mas quando um dos amigos de Malek Hammoud perguntou-me como podiam os
estadunidenses matar tão alegremente aqueles que dizem querer libertar,
não lhe interessava saber sobre a ciência da aeronáutica
nem sobre os sistemas de direcção de armas.
Por que havia de interessar-lhe? A questão é que isto acontece
todos os dias em Bagdad. Na segunda-feira uma família inteira de nove
membros foi varrida em sua casa, perto do centro da cidade. Na
terça-feira informou-se da morte de todos os passageiros civis de um
autocarro num caminho a sul de Bagdad.
Apenas hoje os iraquianos souberam da identidade de cinco civis assassinados
num autocarro sírio que foi atacado por aviões estadunidenses
perto da fronteira com o Iraque, no fim de semana.
A verdade é que ninguém está seguro em Bagdad e que, a
medida que estadunidenses e britânicos estreitem o cerco à cidade,
nos próximos dias e horas essa simples mensagem tornar-se-á cada
vez mais real e mais sangrenta.
Poderíamos por a roupagem da moralidade para explicar porque essas
pessoas tinham que morrer. Morreram por causa do 11 de Setembro de 2001, pelas
"armas de destruição maciça" de Saddam Hussein,
pelas violações aos direitos humanos, pelo nosso desesperado
desejo de "libertá-los" a todos. Não confundamos o tem
com o petróleo.
Seja como for, aposto que se dirá que Hussein é o
responsável final destas mortes. Naturalmente, não mencionaremos
o piloto.
[*]
Jornalista irlandês.
O original foi publicado pelo jornal mexicano
La Jornada.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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