Eles estão a combater pelo que?

O pior problema enfrentado pelas forças americanas no Iraque pode não ser a resistência armada mas sim a crise moral. O jornalista Robert Fisk relata uma quase epidemia de indisciplina, suicídios e conversa disparatada.

por Robert Fisk

Tropa ianque revista perigosos terroristas iraquianos. Estava eu na esquadra de polícia na cidade de Fallujah quando apercebi-me da extensão da esquizofrenia. O capitão Christopher Cirino, do 82º Airborne estava a tentar explicar-me a natureza dos ataques tão regularmente executados contra as forças americanas naquela cidade sunita. Seus homens estavam acantonados numa antiga casa de descanso presidencial abaixo da estrada — "Dreamland", chamavam-na os americanos — mas isto não mostrava quão grande era a desorientação dos seus soldados. "Os homens que nos atacam", disse ele, "são terroristas treinados na Síria e combatentes locais pela liberdade (local freedom fighters) ". O que? Será que ouvi bem? "Combatentes pela liberdade". Mas foi isto que o capitão Cirino os chamou — e com muita justeza.

Eis a razão. Todos os soldados americanos são supostos acreditar — na verdade tem de acreditar, juntamente com o seu presidente e o seu secretário da Defesa, Donald Rumsfeld — que as guerrilhas "al-Qaida" de Osama bin Laden, fluindo através das fronteiras iraquianas com a Síria, o Irão, a Arábia Saudita (note como aliados e vizinhos próximos do Iraque, o Kuwait e a Turquia, são deixados sempre fora da equação) estão a assaltar as forças dos Estados Unidos como parte da "guerra do terror". Aos soldados das forças especiais dizem agora os seus oficiais que a "guerra ao terror" foi transferida dos EUA para o Iraque, como se de alguma forma milagrosa, o 11 de Setembro de 2001 é agora o Iraque de 2003. Note também como os americanos deixam sempre os iraquianos fora do grupo dos culpados — a menos que possam ser descritos como "remanescentes do partido Baath", "teimosos" ou "desesperados" pelo procônsul americano Paul Bremer.

O problema do capitão Cirino, naturalmente, é que conhece parte da verdade. Os iraquianos comuns — muitos deles há muito inimigos de Saddam Hussein — estão a atacar o exército de ocupação americano 35 vezes por dia só na área de Bagdad. E o trabalho do capitão Cirino na esquadra de polícia local em Fallujah, onde os polícias iraquianos recém-contratados pelos EUA são os irmãos e tios e — sem dúvida — pais de alguns daqueles que agora travam guerra de guerrilha contra os soldados americanos em Fallujah. Alguns deles, suspeito, na verdade são eles próprios os "terroristas". Assim se ele chamar os maus rapazes de "terroristas", os polícias locais — sua primeira linha de defesa — ficariam realmente muito irritados.

Não é de admirar que a moral seja baixa. Não é de admirar que os soldados americanos que encontrei nas ruas de Bagdad e outras cidades iraquianas não mostrem falsas delicadezas em relação ao seu próprio governo. Foi dada ordem às tropas americanas para não pronunciarem más palavras em relação ao seu presidente ou secretário da Defesa em frente a iraquianos ou repórteres (os quais têm aproximadamente o mesmo status aos olhos das autoridades de ocupação). Mas quando sugeri a um grupo de polícias militares americanos perto de Abu Ghurayb que eles iriam votar republicano nas próximas eleições, eles caíram na gargalhada. "Nós não deveríamos estar aqui e nunca deveríamos ter sido enviados para cá", disse-me um deles com espantosa candura. "E talvez você possa dizer-me: por que fomos nós enviados para cá?".

Pouco é de admirar, portanto, que "Stars and Stripes", o jornal dos militares, relate este mês que um terço dos soldados no Iraque sofrem de uma moral baixa. E haverá alguma admiração, nesse caso, de que as forças americanas no Iraque estejam a abater os inocentes, sovar e brutalizar prisioneiros, saquear residências e — segundo testemunhas oculares de centenas de iraquianos — roubar dinheiro das casas que estão a revistar? Não, isto não é o Vietnam — onde em certas ocasiões os americanos perderam 3000 homens num mês — nem o exército americano no Iraque está a tornar-se uma chusma. Por enquanto. E eles estão a anos luz dos carniceiros da gang de Saddam. Mas monitores de direitos humanos, responsáveis civis da ocupação e jornalistas — para não mencionar os próprios iraquianos — estão cada vez mais aterrorizados com o comportamento dos ocupantes militares americanos.

Iraquianos que deixem de ver pontos de controle militares americanos, que se aproximem de comboios sob ataque — ou que simplesmente passem junto a um raid americano — estão a ser abatidos a tiro sem hesitação. Os "inquéritos" oficiais americanos a estes assassinatos habitualmente resultam tanto em silêncio como em afirmações de que os soldados "obedeceram às suas regras" — regras que os americanos não revelam ao público.

A podridão vem do topo. Mesmo durante a invasão anglo-americana do Iraque, as forças americanas declinaram assumir responsabilidade pelos inocentes que elas mataram. "Nós não contamos corpos", anunciou o general Tommy Franks. Assim, não houve desculpas para os 16 civis mortos em Mansur quando os "aliados" — note-se como nós britânicos fomos apanhados neste título enganoso — bombardearam um subúrbio residencial na vã esperança de matar Saddam. Quando forças especiais americanas invadiram uma casa exactamente na mesma área quatro meses depois — na caça ao mesmo líder iraquiano — mataram seis civis, incluindo um rapaz de 14 anos e uma mulher de meia-idade, e só anunciaram, quatro dias depois, que fariam um "inquérito". Não uma investigação, entenda-se, nada que sugerisse que havia alguma coisa errada em abater seis civis iraquianos, e na altura devida o "inquérito" foi esquecido — como não podia deixar de ser — e nada sobre o assunto foi ouvido outra vez.

Em outra ocasião, durante a invasão, os americanos despejaram centenas de bombas de fragmentação (cluster bombs) sobre aldeias do lado de fora da cidade de Hillah. Elas deixaram atrás de si um açougue de cadáveres cortados aos bocadinhos. O filme com bebés cortados ao meio durante o raid nem mesmo foi transmitido pela equipa da Reuters em Bagdad. O Pentágono disse então que "não havia indicações" de que tivessem sido lançadas bombas de fragmentação em Hillah — apesar de a Sky TV ter encontrado algumas não explodidas e tê-las trazido de volta a Bagdad.

Deparei-me pela primeira vez com esta ausência de remorso — ou antes, ausência de responsabilidade — num subúrbio pobre de Bagdad chamado Hayy al-Gailani. Dois homens haviam estendido um novo posto de controle americano — um rolo de arame farpado lançado transversalmente numa estrada antes do amanhecer numa manhã de Julho — e tropas americanas abriram fogo sobre um carro. E enquanto os mortos ou moribundos eram queimados dentro, os americanos que haviam erguido o posto de controle simplesmente embarcaram nos seus veículos blindados e abandonaram a cena. Eles nem mesmo se incomodaram em visitar o hospital mortuário para saber as identidades dos homens que haviam matado — um passo óbvio se acreditassem que haviam morto "terroristas" — e informar os seus parentes. Cenas como esta repetem-se diariamente por todo o Iraque.

É por isso que a Human Rights Watch, a Amnesty e outras organizações humanitárias protestam cada vez mais vigorosamente quanto à falha do exército americano mesmo em contar os números dos iraquianos mortes, deixando em silêncio a contagem do seu próprio papel no assassinato de civis. "É uma tragédia que soldados americanos tenham morto tantos civis em Bagdad", disse Joe Stork do Human Rights Watch. "Mas é realmente incrível que os militares americanos nem mesmo contem estas mortes". O Human Rights Watch contou 94 civis iraquianos mortos pelos americanos na capital. A organização também criticou as forças americanas por humilhares prisioneiros, no mínimo pelo seu hábito de colocarem os seus pés sobre as cabeças dos prisioneiros. Alguns soldados americanos estão agora a ser treinados na Jordânia — por jordanianos — quanto ao "respeito" que deveriam ter para com os civis iraquianos e em relação à cultura do Islão. Um bocado tardio.

Mas sobre o terreno, no Iraque, os americanos têm licença para matar. Nem um único soldado foi punido por atirar em civis — mesmo quando a fatalidade envolve um iraquiano a trabalhar para as autoridades de ocupação. Nenhuma acção foi tomada, por exemplo, em relação ao soldado que disparou um único tiro através da janela do carro de um diplomata italiano, matando o seu tradutor, no norte do Iraque. Nem contra os soldados do 82º Airborne que abateram 14 muçulmanos sunitas que protestavam em Fallujah no mês de Abril (o capitão Cirino não esteve envolvido). Nem contra as tropas que dispararam para matar 11 outros protestantes em Mosul. Por vezes, a evidência de baixa moral aumenta durante um longo período. Numa cidade iraquiana, por exemplo, a "Coalition Provisional Authority" — que é como as autoridades de ocupação se autodenominam — instruiu os cambistas locais a não darem dólares por dinares iraquianos aos soldados ocupantes: demasiado dinares iraquianos haviam sido roubados pelas tropas durante rusgas em residências e em postos de controle. A menos que haja uma conspiração monumental numa escala nacional por parte dos iraquianos, alguns destes relatos devem merecer o selo da verdade.

E então houve o caso do tigre de Bengala. Um grupo de tropas americanas entrou uma noite no zoo de Bagdad para uma festa de sandes e cervejas. Durante a festa, um dos soldados decidiu acariciar o tigre que — sendo um tigre de Bengala — afundou os dentes no soldado. Os americanos então dispararam sobre o tigre até morrer. Os americanos prometeram um "inquérito" — acerca do qual nada foi ouvido desde então. Ironicamente, o único incidente em que forças americanas enfrentaram uma acção disciplinar seguiu-se a um incidente em que uma tripulação de helicóptero retirou uma bandeira religiosa negra de uma torre de comunicação em Sadr City, em Bagdad. A violência que se seguiu custou a vida de um civil iraquiano.

Os suicídios entre as tropas americanas no Iraque têm aumentado nos últimos meses — mais de três vezes em relação à taxa habitual entre conscritos americanos. Acredita-se que pelo menos 23 soldados tenham acabado com as suas vidas desde a invasão anglo-americana e outros foram feridos em tentativas de suicídio. Como de hábito, o exército americano só revelou esta estatística após questionamentos constantes. Os ataques diários a americanos fora de Bagdad — mais de 50 numa noite — ficam, tal como as mortes de civis iraquianos, sem registo. Ao viajar de volta de Fallujah para Bagdad após o escurecer, no mês passado, vi explosões de morteiros e fogo com balas tracejantes em torno de 13 bases americanas — mas nem uma palavras sobre isso foi revelado depois pelas autoridades de ocupação. No mês passado, no aeroporto de Bagdad cinco disparos de morteiros caíram próximos à pista de decolagem quando um avião de carreira jordaniano estava a embarcar passageiros para Aman. Vi este ataque com os meus próprios olhos. Naquela mesma tarde, o general Ricardo Sanchez, o oficial superior americano no Iraque, afirmou que nada sabia acerca do ataque, o qual — a menos que os seus oficiais inferiores fossem negligentes — ele devia ter estado bem consciente.

Mas o que é que se pode esperar de um exército que pode deliberadamente enganar soldados convencendo-os a escrever "cartas" para os seus lares nos EUA acerca de melhorias na vida diária iraquiana?

"A qualidade de vida e a segurança para os cidadãos foi grandemente restaurada, e nós somos em grande parte os responsáveis por isto ter acontecido", vangloriou-se o sargento Christopher Shelton, do 503º Airborne Infantry Regiment, numa carta de Kirkuk ao "Snohomish County Tribune". "A maioria na cidade saudou a nossa presença de braços abertos". Só que isto não aconteceu. E o sargento Shelton não escreveu a carta. Nem tão pouco o sargento Shawn Grueser, de West Virginia. Nem tão pouco o soldado raso Nick Deaconson. Nem oito outros oficiais que supostamente teriam escrito cartas idênticas aos seus jornais locais. As "cartas" foram distribuídas entre soldados, aos quais foi pedido para assinar se concordassem com o seu conteúdo.

Mas isto é, talvez parte do mundo de fantasia inspirado pelos ideólogos de extrema-direita em Washington que querem esta guerra — apesar de a maior parte deles nunca ter servido o seu país em uniforme. Eles inventaram as "armas de destruição em massa" e a louvação que as tropas americanas teriam por "libertarem" o povo iraquiano. Incapazes de ajustarem os factos com a ficção, eles agora simplesmente reconhecem que os soldados que enviaram ao maior ninho de ratos do Médio Oriente têm "um bocado de trabalho a fazer", que estão — isto não era dito antes ou durante a invasão — "a combater na linha da frente na guerra ao terror".

Que influência, pode alguém perguntar, tiveram os fundamentalistas cristãos sobre o exército americano no Iraque? Pois mesmo que ignoremos o rev. Franklin Ghaham, o qual descreveu o Islão como "uma religião muito má e perversa" antes de ser instruído por responsáveis do Pentágono — o que é que alguém pode fazer do oficial responsável por seguir a pista de Osama bin Laden, o general de quatro estrelas William "Jerry" Boykin, que disse ao público em Oregon que os islâmicos odeiam os EUA "porque somos uma nação cristã, porque os nossos fundamentos e as nossas raízes são judaico-cristãs e o inimigo e um tipo chamado Satã". Promovido recentemente a vice-subsecretário da Defesa para a inteligência, Boykin foi em frente ao dizer da guerra contra Mohammed Farrah Aidid, na Somália — na qual ele participou — que "eu sabia que o meu Deus era maior do que o seu -- eu sabia que o meu Deus era um Deus real e o seu era um ídolo".

Acerca destas extraordinárias observações o secretário da Defesa Donald Rumsfeld considerou "não parecer que quaisquer regras tenham sido quebradas". Informam-nos que um "inquérito" aos comentários de Boykin está em andamento — um "inquérito" tão perfeito, sem dúvida quanto aqueles organizados para as mortes de civis em Bagdad.

Desmamadas nesta espécie de insensatez, haverá alguma surpresa em que as tropas americanas postas no Iraque não entendam nem a sua guerra nem o povo cujo país estão a ocupar? Terroristas ou combatentes da liberdade? Que diferença faz?

24/Out/03

O original encontra-se em The Independent.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
27/Out/03