Cresce o assédio da resistência iraquiana
ao aeroporto de Bagdad
Hoje em dia é preciso levar uma escolta militar para chegar a Bagdad.
Sim, recorde-se que a cada hora que passa as coisas vão melhor no
Iraque, segundo o presidente George W. Bush. Mas os guerrilheiros andam
tão próximos dos caminhos que os estadunidenses eliminaram cada
árvore, maciço de palmeira ou tufo de ervas. As granadas
lançadas por foguetes mataram tantos soldados neste troço do
caminho que o exército estadunidense tal como havia feito o
israelense no sul do Líbano em meados da década de 1980
erradicou todo e qualquer vestígio de natureza. Para ir ao aeroporto de
Bagdad atravessa-se um deserto.
Não é exactamente um aeroporto do primeiro mundo. "Bem,
senhoras e senhores, podem deixar aqui as suas malas e ir ali dentro para o
check-in", diz sorridente um engenheiro do exército dos EUA aos
passageiros que seguem para Aman. Entramos, pois, num salão com pesados
móveis estilo baasista e recolhemos pedaços de papel que
não indicam qualquer número de voo nem de poltrona, nem
tão pouco lugar de destino e nem mesmo uma hora de partida.
Do outro lado há um Burger King, mas está numa "zona de alta
segurança" que a maioria dos passageiros não pode visitar.
Não existe quem venda água. Os assentos são tão
poucos que a maioria dos passageiros fica em pleno sol, fora daquilo que deve
ser o maior gabinete postal do mundo, uma enorme estante com 10 metros de
altura cheia de pacotes de cartas para cada um dos 146 mil soldados colocados
no Iraque.
Mas vamos dar uma olhadela aos passageiros. Há uma dama da
organização humanitária Care, que vai de férias
à Tailândia país que, calculo com rapidez,
está exactamente do outro lado do mundo em relação ao
Iraque , o bispo de Bassorá, com sua sotaina negra e vermelha e um
crucifixo pendurado no pescoço; uns operadores de câmara de TV
que regressam ao seu país, e o representante da Cruz Vermelha
Internacional, que é aguardado em Kirkurk por um pequeno avião
daquela entidade. Também um trabalhador britânico da
construção, procedente de Hilla, que passou a noite de
quinta-feira passada sob fogo junto com o batalhão polaco local.
"Granadas lançadas por foguetes e fogo contínuo de rifle
durante duas horas", murmura.
Naturalmente, as autoridades de ocupação nunca revelaram tal
acontecimento. Porque as coisas vão melhor no Iraque.
Por trás de nós, uma série de jactos com quatro motores
ascendem no caloroso céu matutino, enormes aparelhos sem
insígnias que voam em círculos estreitos depois de decolar e
antes de aterrar, tão baixos que parecem roçar o solo com a ponta
das asas, a fim de evitar os mísseis terra-ar pois os inimigos dos
Estados Unidos começaram a disparar contra aviões e
helicópteros no "novo Iraque".
É "manobra de rotina", diz-nos com ar confidencial um dos
engenheiros estadunidenses. "Todas as noites disparam contra
nós".
Dentre os demais passageiros há um trabalhador humanitário que
mostra sinais evidentes de colapso nervoso e umas damas iraquianas com ar
senhorial que são escoltadas por um oficial da Royal Air Force com
cabelo muito compridos por trás da nuca. Mais além, uns soldados
das forças especiais estadunidenses desfrutam do sol, sob o peso de
mochilas de lona, rifles e pistolas automáticas.
HOMENS DE NEGRO
Por que todos usam óculos escuros?, pergunto. Um deles tira-os e
responde: "Que garota nos olharia se nos visse como somos?".
Estou de acordo com ele. Mas são um grupo inteligente, com
conversação salpicada de ironias. Sim, têm uma casa de
segurança próximo de Fallujah e as baixas em combatem por vezes
são "contidas" como acidentes de caminho ou afogamentos. Um
jovem chamado Chuck quis fazer-me uma confidência: "Sabes qual
é o recurso mais apreciado desta terra?", pergunta-me. "Os
iraquianos", diz ele. "Têm um montão de
protoplasma".
Tentava eu entender a sua definição de protoplasma quando chegou
o primeiro obus, um rugido atroador que fez com que todos os passageiros se
agachassem como num coro teatral; uma coluna de fumo elevava-se
preguiçosamente do outro lado da avenida. Ouviu-se um silvo e a seguir
outro estrondo.
"Estão melhorando", disse o Chuck. "Esse deve ter
caído próximo da calçada".
Os outros rapazes das forças especiais fazem sinais de
aprovação. Os passageiros juntam-se em torno da porta tal como
animais estabulados; em troca, os estadunidenses de óculos escuros
preparam-se para o espectáculo. Outra tremenda explosão e todos
anuem com a cabeça. Outro grande círculo branco leva-se para o
céu, como se um gigante viciado em tabaco se houvesse sentido na
calçada a fumar.
"Nada mal", diz o amigo de Chuck. "Antes tínhamos um
perímetro de segurança de oito quilómetros em torno do
aeroporto", comenta ele. "Agora é de três. O alcance
máximo de uma antiaérea é de 8 mil pés. De modo
que três quilómetros é o limite".
Tradução: antes as forças estadunidenses controlavam oito
quilómetros em torno do aeroporto, distância demasiado grande para
que um homem com um lançados manual pudesse atingir um avião. As
emboscadas e os ataques reduziram o seu controle só a três
quilómetros. No limite desse raio, com alcance de mísseis de 8
mil pés (2400 metros), um atacante poderia atingir um avião.
Os estadunidenses dizem que há dois aviões que voam para Aman, um
às 10 e outro às 12 horas. A seguir o Airbus das 12 passa a ser
o da uma, o charter das 10 passa a ser o das 13, e finalmente informa-se que o
Airbus das 13 partirá às 23. Depois explode outra revoada de
obuses em frente aos hangares da extremidade oposta do aeroporto.
"Isto", pontifica o bispo de Bassorá dirigindo-se a mim,
"é a continuação da nossa guerra de 22 anos".
Telefono a um colega de Bagdad. "Ataque ao aeroporto com fogo de
obuses", informo-o. "Não ouvi falar disso", responde-me.
"Quantos obuses foram?"
Entretanto, os rapazes das forças especiais continuam a divertir-se. Um
helicóptero Apache passa em voo sobre nós a fim de bombardear os
guerrilheiros. "O que é que adianta", diz Chuck.
"Já se retiraram".
Como técnicos em guerra de guerrilhas reconhecem com frieza o
profissionalismo de qualquer um, inclusive do inimigo.
Aparece um engenheiro estadunidense. Se os rapazes da televisão
convidarem o seu pessoal para umas Cocas, deixa-os visitarem o Burger King. De
um lugar para além do perímetro do aeroporto chega o som do
disparo de rifles. Deve haver um filme por aqui, Walt Disney chegar ao Vietnam.
O Airbus pertence, ainda que pareça incrível, à Royal
Jordanian, a única linha aérea internacional que se atreve a voar
para Bagdad uma vez por dia. Na escada de abordagem um grupo de agentes de
segurança jordanianos que usa peúgas brancas os detectives
jordanianos e sírios usam sempre dessas peúgas insiste em
revistar outra vez a nossa bagagem, ali em plena pista. Acendem-se e apagam-se
computadores, abrem-se e fecham-se câmaras, abrem-se bolsas de
lavanderia, sacam-se cadernos, até um pacote de cartas de leitores tem
de submeter-se à revista. O Apache voa de regresso, com os foguetes
ainda no seu ninho.
A decolagem é mais rápida que de costume. Mas não
há uma subida uniforme até a altitude de cruzeiro. O Airbus faz
uma viragem brusca para bombordo, as forças G nos esmagam contra a
poltrona, e fora da minha janelinha aparece o campo de tendas onde os
estadunidenses retêm mais de 4 mil prisioneiros iraquianos sem julgamento
nem acusação.
As tendas começam a girar e o avião retorce-se para estibordo e a
seguir outra vez para bombordo até torna a aparecer o campo de
prisioneiros na janela, mas agora de cabeça e girando no sentido
contrário aos ponteiros do relógio. Lanço uma olhadela
pela cabina e vejo dedos a aferrarem-se com força nos braços da
poltrona. Os motores rugem, mordendo o ar fino, e nosso olhos procuram esse
ténue fio de fumo que ninguém quer ver. O Airbus gira de nova e
as tendas da prisão agora são vistas mais pequenas e a girarem ao
contrário de há bocado.
A seguir o piloto endireita a nave. Junto às nossas poltronas aparece
uma hospedeira com uma brilhante blusa branca. As coisas melhoram no Iraque.
"Prefere sumo ou vinho tinto?", pergunta-me. O que acha o leitor que
pedi?
17/Out/03
[*]
Jornalista neozelandês, especialista em Médio Oriente.
© The Independent
Este artigo encontra-se em
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