"O tirano agora é um prisioneiro"
BAGDAD, 15/Dez/03 Assim, eles acabaram por conseguir o Saddam.
Despenteado, os seus olhos cansados traíam a derrota, até os US$
750 mil em cash encontrados no seu buraco no chão humilhavam-no.
Saddam algemado. Talvez não literalmente, mas naquele
extraordinário videotape de ontem ele parecia um prisioneiro da antiga
Roma, o bárbaro finalmente capturado, a mão a acariciar a barba
emaranhada. Todos aqueles fantasmas de iranianos e curdos gaseados, de
shias metralhados nas sepulturas em massa de Karbala, dos prisioneiros a
morrerem sob torturas dolorosas nas villas da polícia secreta de Saddam
devem certamente ter testemunhado algo disto.
"Senhores e senhoras nós o conseguimos", vociferou Paul
Bremer, o procônsul americano no Iraque. "Este é um grande
dia na história do Iraque. Durante décadas, centenas de milhares
de vocês sofreram às mãos deste homem cruel. Durante
décadas este homem cruel lançou cada um vocês contra os
outros. Durante décadas ele ameaçou atacar os seus vizinhos.
Estes dias estão ultrapassados para sempre... o tirano é um
prisioneiro", disse ele.
"Saddam deixou o poder, não voltará. Agora o povo iraquiano
sabe disto, e ele é que decidirá o seu destino", disse Tony
Blair.
Foram precisos 600 soldados americanos para capturar o homem que durante 12
anos um dos melhores amigos do ocidente na região do Médio
Oriente, e durante outros 12 anos o seu maior inimigo. Numa mísera cova
de 2,5 metros quadrados, no fundo de um quinta do Tigre, perto da aldeia de
Ad-Dawr, o presidente da República Árabe Iraquiana, dirigente do
Partido Socialista Árabe Baath, ex-guerrilheiro, invasor de duas
nações, amigo de Jacques Chirac e outrora cortejado por Ronald
Reagan, foi encontrado escondido, quase certamente traído por amigos
seus. O seu destino agora se os americanos dizem a verdade
é um julgamento por crimes de guerra à escala de Nuremberg.
Durante semanas as forças americanas pentearam a zona rural ao longo do
Tigre, prendendo ex-funcionários baathistas, interrogando antigos
guarda-costas, combatendo os guerrilheiros em Trikrit e Samarra e assassinando
civis ao mesmo tempo. Mas, sem dúvida, o acontecido ontem foi uma
vitória americana, mas nem por isso põe fim à
insurreição contra eles.
As autoridades de ocupação mostraram repetidas vezes essas
imagens muitos mais pungentes para as vítimas do ex-ditador do
que para os ocidentais da Besta de Bagdad. Se os olhos fossem do Che
Guevara, a barba pertenceria a Fidel Castro. Havia mesmo uma espécie de
Karl Marx desvairado na cara. Brutal, naturalmente. Todos estes ditadores do
Médio Oriente pertencem a um lugar em que a crueldade pode ser louvada
como força. Tribal, quase certamente.
Mas havia uma sensação que ultrapassava todas as outras: a de
uma revolução que voltou à semente.
As ironias eram extraordinárias. Na sua juventude, em 1959, Saddam
Hussein havia tentado assassinar um presidente iraquiano e, com uma bala na
perna, escondeu-se na zona rural de Tikrit, não longe do lugar onde,
quase meio século depois neste fim de semana veio a ser
capturado pelos americanos. Ele havia, as imagens sugerem-no, regressar
à sua juventude. Saddam o Monstro tornara a ser Saddam o Guerreiro,
lutando contra probabilidades esmagadoras contra si, um patriota iraquiano ao
invés de um ditador.
"Conversador e cooperativo", disseram os americanos após a
captura. Não estou surpreendido. De repente já era importante
outra vez:: um criminoso de guerra, sem dúvida, mas não mais um
homem num buraco. Era difícil hoje, ao ver essas imagens do Leão
do Iraque (gostava de ser chamado assim), recordar o tratamento régio
com que era brindado antes.
Este era o homem que foi convidado de honra da cidade de Paris quando Chirac
era o mayor e quando os franceses podiam identificar jacobinos no seu regime
sanguinário. O homem que negociou com os secretários-gerais da
ONU Javier Pérez de Cuéllar e Kofi Annan, que certa vez conversou
tomando café nem mais nem menos com o actual secretário americano
da Defesa, Donald Rumsfeld, que se reuniu com o legendário jazzista
inglês Ted Heath, com o líder trabalhista Tony Benn e com um
bocado de chefes de Estado europeus.
Mas será realmente o fim do pesadelo? Certamente a criatura
destroçada que mostram os vídeos americanos não vai poder
fazer com que o filme anda para trás. O seu tempo acabou. Está
vivo, ao contrário das suas dezenas de milhares de vítimas.
Haveria porventura um livro de memórias na sua mente fatigada? A
indignidade final de ter um médico americano a puxar-lhe o cabelo com
força poderá ter sido mitigada pela recordação de
todos aqueles médicos franceses que já haviam atendido à
sua família. Porque jamais um médico iraquiano ousou operar os
de Tikrit.
Com certeza, ontem podíamos observar homens armados a celebrarem, as
salvas de tiros ascendendo no céu nocturno sobre Bagdad. O assassino
dos seus pais, irmãos, filhos, esposas, mães, estava finalmente a
ferros.
Foi no meio dos bairros de lata de Sadr City outrora Saddam City
quando uma sucessão de tiros de rifle varreu as ruas. Eu estava sentado
sobre o chão de betão de um clérigo shia que esmagado e
morto por um tanque americano, em meio a iraquianos com nenhum amor pelos
americanos, e as descargas de tiros tornaram-se mais estrondosas. Um rapaz
entrou na sala e contou que a rádio iraquiana estava a anunciar a
captura de Saddam. E rostos que haviam estado sombrios com o luto que
não sorriam há uma semana iluminaram-se de prazer.
Os disparos aumentavam cada vez mais, até que cartuchos de balas
enxameavam no ar em meio a explosões de granadas. Na rua principal,
carros chocavam-se uns com os outros em meio ao caos.
Mas isto foi alegria momentânea, não euforia. Não havia
multidões maciças nos bulevares de Bagdad, nem festas na rua, nem
expressões de alegria da parte das pessoas comuns da cidade capital.
Pois Saddam deixara como herança ao seu país e aos seus pretensos
"libertadores" algo singularmente terrível: a guerra
contínua. E era uma conclusão acerca da qual todos os iraquianos
com quem falei ontem concordaram.
Este homem difamado e patético com o seu cabelo desgrenhado e sujo,
vivendo num buraco no chão com três armas e papel moeda como
companheiros de cave, este homem não liderava a
insurreição iraquiana contra os americanos. Na verdade, cada vez
mais iraquianos estavam a dizer antes da captura de Saddam que uma das
razões porque não aderiam à resistência à
ocupação americana era o medo de que se os americanos se
retirassem Saddam retornasse ao poder. Agora este receio foi afastado.
Assim o pesadelo está ultrapassado e o pesadelo está
prestes a começar. Tanto para os iraquianos como para nós.
Encontrei-me com ele uma vez, quase um quarto de século atrás.
Apertámos as mãos antes de uma conferência de imprensa em
Bagdad em que ele tentou explicar os pormenores da cisão binária.
Naquele tempo ele estava louco por desenvolver armas nucleares. Usava roupas
largas, como as que os líderes nazis usaram outrora, casacos moles que
brilhavam demasiado. Tudo o que posso recordar é que a sua mão
era fria e húmida.
Copyright: The Independent
O original encontra-se em
http://www.informationclearinghouse.info/article5378.htm
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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