O que Israel faz à Palestina
estamos nós a fazer ao Iraque
Há alguns dias as forças estadunidenses em Bagdad levaram 17
toneladas de escombros e pós à zona militar secreta do aeroporto
de Bagdad a fim de serem enviadas por via aérea aos Estados Unidos.
Nenhum jornalista informou acerca desta operação macabra, mesmo
sabendo dela. Os escombros provinham do lugar em que a força
aérea invasora cometeu uma atrocidade, no fim do seu bombardeamento do
Iraque.
Os estadunidenses acreditavam que Saddam Hussein estava escondido no
subúrbio de Mansur e, portanto, apesar de saber que era uma zona
abarrotada de civis a operação não estaria
"isenta de riscos", disse depois um dos porta-vozes dos invasores, e
isso foi o mais próximo que chegou no reconhecimento de que constituiu
uma grave violação das convenções de Genebra
lançaram bombas "devastadoras de fortalezas" sobre as casas.
Mataram 26 civis, dentre eles muitas crianças.
Mas onde estava Saddam? Um indício do desespero em que
estão os estadunidenses é que, passados dois meses desde que
ocuparam Bagdad, puseram-se a remover os escombros de Mansur. Lá nos
Estados Unidos porão os cientistas a rastrearam indícios do DNA
de Hussein nessa terra.
Não estou certo de que estes precedentes permitam a outros cometerem
crimes de guerra no futuro, ou sobre se a repetição de um facto
permite a outros justificar precedentes passados. Mas será que o
ocorrido em Mansur não recorda ao leitor a pequena
operação de Ariel Sharon em Gaza, há alguns meses, quando
ordenou a um piloto israelense que lançasse uma bomba maciça
sobre um populoso bairro de Gaza, a qual demoliu um edifício, matou um
oficial do Hamas e devido a essa estranha simetria que têm tais
atrocidades matou 16 civis palestinos, dentre eles muitas
crianças?
Na altura condenámos o assassinato de inocentes cometido por Sharon, que
para ele constituiu "um grande êxito". Como poderíamos
fazer o mesmo agora quando calamos acerca dos nossos próprios crimes em
Mansur?
Queremos criticar os soldados israelenses por matar brutalmente a tiros aqueles
que lhes lançam pedras na Cisjordania e em Gaza? Bom, pois pensemos
melhor agora que os estadunidenses fazem o mesmo. Quando soldados mataram 16
manifestantes iraquianos em Fallujah, pouco após o chamado
"fim" da guerra no Iraque, desencadearam uma
intifada
nesse país. Agora a matança de inocentes por forças
estadunidenses é coisa de todos os dias, e suas
"investigações oficiais" dos incidentes são de
uma categoria tão ordinária (e tão previsíveis nos
seus resultados) como a versão israelense.
Alguém pretende que se ponha fim à tortura de prisioneiros
palestinos no notório centro de interrogatórios
Complexo Russo
, no centro de Jerusalém? Já pouco importa. Com a morte de
três prisioneiros devido a golpes ou torturas em mãos de
interrogadores estadunidenses na prisão de Bagram, no
Afeganistão, e o escândalo de Guantánamo com seus
prisioneiros atados, drogados e encapuçados, seus tribunais de pacotilha
e suas prováveis câmaras da morte podemos esquecer das pancadarias
israelenses.
Com quanta veemência expressámos nossa repulsa quando a
indisciplinada soldadesca israelense saqueou e cometeu toda classe de atropelos
nos lares palestinos de Ramallah, no ano passado e oficiais israelenses
reconheceram diante de mim que tal coisa aconteceu , mas já
não podemos queixar-nos. Porque agora sabemos que a indisciplinada
soldadesca estadunidense (da terceira divisão de infantaria, para sermos
exactos) entregou-se à pilhagem durante os dias que se seguiram à
captura do aeroporto de Bagda, roubando álcool, perfumes, cigarros e
jóias das lojas isentas de impostos, e deixando como uma sucata cinco
aviões Boeing da Iraqi Airways (três 727, um 737 e um Jumbo).
Louvor à revista
Time
quem o diria por dar a conhecer este facto. Mas, por favor,
não critiquem mais os venais soldados israelenses.
Os europeus manifestaram em coro sua indignação pelo assassinato
de palestinos "fugitivos" perpetrado por israelenses, prática
repulsiva que Tel Aviv e a BBC gostam de chamar de
"eliminação selectiva". Mas agora que os Estados
Unidos alardeiam abertamente a mesma táctica vil atacando
automóveis no Yemen, comboios no Iraque, aldeias no Afeganistão
(e quantos mataram no seu recente ataque a um comboio, perto da fronteira com a
Síria?) devemos manter o silêncio.
No ano passado os israelenses elaboraram um "relatório" a
partir de documentos capturados aos palestinos a fim de "provar" que
Arafat dirigia actos "terroristas" contra Israel. Os documentos, mal
traduzidos e alterados, não provavam nada que se parecesse. Mas depois
do "relatório" mentiroso de Tony Blair anterior à
guerra do Iraque, quem somos nós para criticar Israel por suas mentiras?
E como poderíamos voltar a protestar pela flagrante
violação israelense da Resolução 242 das
Nações Unidas e pela sua ocupação do
território palestino, quando os Estados Unidos ocupam todo o antigo
território do Iraque depois de invadir ilegalmente o país,
matando milhares de civis, apoderando-se dos seus campos de petróleo e
sem sequer terem podido capturar o criminoso ditador que submeteu brutalmente o
seu povo (para não falar das armas de destruição
maciça que não existem)?
Sim, os precedentes são algo perigoso. Pensemos no êxito
emblemático mais importante que se verificou na vida de muitos dos
nossos leitores. Uma construção colossal, símbolo do
poderio de uma nação, foi destruída por
"terroristas". De imediato, o presidente dessa nação
firmou um decreto para "proteger o povo e o Estado", o qual
estatuía detenções em massa e o direito de impor
"restrições à liberdade pessoal... e
violações da privacidade das comunicações
telefónicas (...) e postais e ordens para vasculhar casas (...)" A
seguir o governo disse ter "provas" de que os "terroristas"
cometeriam ataques no território do país, destinados a destruir
"edifícios governamentais, museus (...) e instalações
essenciais", que se cometeriam actos terroristas contra as pessoas,
contra a propriedade privada e contra a vida e a integridade física de
"povoadores pacíficos" (...)" Esta
legislação permitiu ao governante eleito dessa
nação aventurar-se a uma série de ocupações
cruéis, e ao terminar a segunda delas anunciou que chegavam
"não
como tiranos, e sim como libertadores".
O edifício público destruído pelos "terroristas"
era o Reichstag, a "legislação de emergência" que
aboliu as garantias individuais foi assinada por Hindenburg, a
"prova" da conspiração terrorista foi proporcionada
pelo governo prussiano. O governante eleito que afirmou estar a
"libertar" a Áustria foi Adolfo Hitler.
Um monstruoso paralelismo, certamente: repulsivo, estranho, fora
de qualquer
proporção histórica. Bem, esperemos que assim seja.
O original encontra-se em
The Independent
. A tradução para o espanhol encontra-se no
diário mexicano
La Jornada
, edição de 12/Jul/03.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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