Os cães uivavam — sabiam que as bombas vinham a caminho

por Robert Fisk [*]

Cena da sangrenta batalha de Bagdad. O 20º dia da guerra americana para a "libertação" do Iraque foi mais um dia de fogo, sofrimento e morte. Começou com um ataque de dois jactos A-10 que dançaram no ar como acrobatas, inclinando sobre uma asa, deslizando céu abaixo para subir outra vez, e espalhando fósforo em chamas para enganar mísseis à procura de calor antes de virarem seus canhões sobre um ministério do governo e revesti-lo com bombas de urânio empobrecido. O dia terminou em corredores de hospitais marcados com listras de sangue e com três correspondentes estrangeiros mortos e cinco feridos.

Os A-10 passaram junto à janela do meu quarto, tão próximos que pude ver o cockpit Perspex, com o seu rastro de estrelas a pingarem das suas asas, uma mágica, actuação perigosa adequada para qualquer show aéreo, contudo infernal na sua intenção. Mas quando eles viraram suas bombas DU (depleted uranium) — concebidas para utilização contra blindagem pesada — contra o já arruinado Ministério Iraquiano do Planeamento, o efeito foi terrífico. Os canhões dos A-10 soavam como mobília pesada a ser arrastada numa sala vazia, uma espécie de berro final, antes de os tiros atingirem seus alvos.

Quando eles fizeram isso, o ministério pintado de vermelho — um desolado e sinistro edifício além da Ponte Jumhuriya sobre o Tigre que sempre suspeitei ser uma sede da inteligência — acendeu-se com um milhar de pontos vermelhos e laranjas de luz.

Veio do edifício uma grande densa nuvem de fumo branco, muito do qual deve ter contido o aerossol de DU em forma de spray que muitos médicos e militares veteranos temem que provoque o câncer.

Neste momento percebi o tanques sobre a Ponte Jumhuriya. Dois Abrams M1A1 de baixo perfil, um no centro da ponte, o outro estacionando sobre o primeiro balaustre. Apenas outro pequeno raid de ensaio, anunciaram os americanos, mas parecei muito mais do que isso.

Alcancei o extremo leste da Ponte Jumhuriya — uma vasta e deserta rodovia de quatro pistas que planava através do rio, encobrindo os tanques americanos do outro lado — uma hora e meia depois. Parecia tão assustador como aquela cena em A Bridge Too Far, a épica de Richard Attenborough sobre o desastre de Arnhem, na qual um oficial britânico passeia vagarosamente no grande espaço com um guarda-chuva na mão para ver se consegue detectar os alemães do outro lado. Mas eu sabia que os americanos estavam do outro lado desta ponte e conduzi a grande velocidade.

Aquilo proporcionou uma revelação notável. Enquanto os caças e bombardeiros americanos cruzam o céu, enquanto o terreno fica abalado com o som de munições a explodirem, enquanto os tanques americanos agora mantêm-se acima do Tigre, vastas áreas de Bagdad — espantosamente quando se considera que o americanos afirmam estar "no coração" da cidade — permanecem sob o controle de Saddam Hussein. Eu conduzi todo o caminho para Mansur, onde parentes dos 11 civis iraquianos morreram no massacre de segunda-feira — os americanos utilizaram quatro bombas de 2000 libras para desmembrar principalmente famílias cristãs na vã esperança de matar o presidente Saddam — ainda à espera de encontrar o último dos seus mortos.

Nas minhas costas, passada a Ponte Ahrar, encontrei uma multidão de espectadores de pé sobre o parapeito, a observar os tanques americanos com uma mistura de admiração e temor. Eles não sabiam o que estava a acontecer na sua cidade, ou — uma ideia que apoderou-se de mim nos últimos dias — serão os pobre de Bagdad mantidos em tal ignorância dos acontecimentos que eles simplesmente não percebem que os americanos estão prestes a ocupar a sua cidade? Será que aquele vendedor de cigarros e os presentes nas filas das padarias e os condutores de autocarros simplesmente não sabiam o que estava abaixo nas margens do Tigre?

Quando retornei ao Hotel Palestina, vi o fumo da bomba que o americanos tinham acabado de disparar dentro do escritório da Reuters. Aquilo ceifou duas vidas, além da do repórter do canal por satélite árabe al-Jazeera morto umas poucas horas antes por um ataque aéreo americano ao seu gabinete. Apesar de duas garantias separadas do governo americano de que a base de operações da al-Jazeera não seria atingida, ela foi destruída.

Apenas uma hora depois, um dos tanques sobre a Ponte Jumhuriya disparou uma salva para dentro das ruínas. Dezoito civis — 15 dos quais mulheres — foi informado estar ainda escondidas no porão sem qualquer esperança imediata de resgate.

A Cruz Vermelha Internacional tentou arranjar um comboio para fora de Bagdad. Inexplicavelmente informou-se que os americanos haviam recusado dar-lhe passagem para fora da cidade.

O pessoal da Cruz Vermelha esperava levar consigo o repórter da televisão espanhola seriamente ferido — sua perna fora amputada depois de o tiro do tanque ter explodido abaixo do seu gabinete no hotel — mas ele morreu durante a tarde. O comandante da infantaria divisional americana emitiu uma declaração a sugerir que o cameramen da Reuters estava a atirar num tanque americano, uma observação tão extraordinária — e tão inverdadeira — que provocou protestos de jornalistas no mundo todo.

Não sei o que se passa com os cães nas ruas de Bagdad, mas eles sempre sabem quando os bombardeiros estão voltando. Haverá alguma mudança na pressão do ar, alguns decibeis de alta tecnologia que nós humanos não podemos ouvir?

Os cães tinham sempre razão. Toda a vez que eles começam a ladrar sabemos que os bombardeiros estão a vir outra vez. E eles uivavam e latiam desde que a noite caiu na noite passada. E 15 minutos depois mesmo nós humanos podíamos ouvir o estrondo de explosões vindas da Bagdad sul.

09/Abr/2003

O original encontra-se em
http://argument.independent.co.uk/commentators/story.jsp?story=395416


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09/Abr/03