A garra dos invasores sobre Bagdad
Nas ruas, a amarga evidência de uma batalha sangrenta
As consequências da batalha estavam por toda a parte. Camiões e
transportadores blindados de pessoal queimados, campos de armas iraquianos
arruinados, crateras e palmeiras enegrecidas e, bem no meio da avenida, bem
à direita de um trevo, o inconfundível vulto de um tanque
americano Abrams M1A1, com o canhão a apontar impotentemente para a
auto-estrada, seu torreão servia de plataforma para sorridentes soldados
iraquianos. Havia cinco outros tanques americanos destruídos, insistiu
mais tarde o ministro iraquiano da Informação. Assim, para os
iraquianos que conduziam pelas ruas de Bagdad, disparando suas armas
automáticas para o ar por alegria, isto foi uma vitória famosa.
E uma vitória com pesado preço em termos de sangue e de vida. No
momento que vi os mais óbvios e terríveis detritos da batalha
os cadáveres, o sangue e o vómito haviam sido
removidos, mas o exército iraquiano e o Pentágono fizeram o
melhor que podiam para cobrir este pequeno campo de morte com mentiras. Dois
mil iraquianos mortos, cacarejou o Pentágono. Cinquenta americanos
mortos, jactaram-se os iraquianos, algo mais modestamente. Ambos os lados
admitiram "baixas" e cabe ao leitor julgar quanto podem ter sido.
Um anti-tanque iraquiano de 106 mm, três transportadores blindados de
pessoal, também iraquianos, e mais de 25 camiões militares e
lançadores Katyusha, sim, mais uma vez iraquianos, estavam espalhados em
brasas ardentes sobre as planícies de pó e de terra em torno da
estrada a apenas sete milhas (13 km) do centro de Bagdad.
Quando eu subi sobre esta massa de metal torturado e ainda quente, os pilotos
americanos voltaram, seus jactos invisíveis uivavam no ar acima do campo
de batalha. E a seguir havia o tanque americano.
Ele tinha um buraco perfeito na sua blindagem, quase certamente feito por uma
arma de 106 mm, talvez a mesma peça iraquiana de artilharia que eu havia
visto de cabeça para baixo no meio dos detritos a 200 metros. Subi ao
torreão afundado do tanque o Abrams tem uma arma quase ao
nível do seu casco a fim de reduzir o seu perfil como alvo e
passei em torno do veículo, espreitando para dentro da sua janela.
Não, não havia americano mortos lá dentro. Um tenente
iraquiano afirmou que os seus homens haviam removido três tripulantes
mortos durante a manhã, mas não havia sinal de restos humanos.
Havia apenas o nome sobre o canhão. "Cojone EH", dizia. Isto
provocou diversidade cultural na nossa conversação com civis
iraquianos, alguns dos quais haviam saído das suas vilas neste manha
quente de domingo à procura de um pouco de vida real, um perigoso
turismo no campo de batalha. Houve uma pequena dificuldade em traduzir cojones
como "bolas" ("balls"). Perguntámo-nos porque
"EH" se eram na verdade as iniciais do comandante do tanque
porque baptizaria o seu tanque de apenas um testículo. Os
iraquianos quiseram saber porque um soldado chamaria ao seu tanque de bola.
Foi neste momento que um piloto americano decidiu nos dar uma olhadela.
A orquestra dos jactos de alto voo acima da neblina quente subitamente mudou de
tonalidade para o som de um avião em ataque a aumentar sua velocidade e
obrigou os nossos olhos a virarem-se para o céu. Vi Ramseh, um velho
fotógrafo de Beirute, amigo desde o tempo da guerra civil libanesa,
correr pela sua vida estrada abaixo. E eu sabia que quando Ramseh corre
é tempo de fazer o mesmo. Saltei para fora dos destroços do
tanque americano e também corri estrada abaixo, juntamente com mais de
uma dúzia de soldados iraquianos e jornalistas. O jacto trovejou sobre
nós. Estava apenas a dar uma olhadela? Estava ele, talvez, não
muito satisfeito com jornalistas a vaguearem sobre um dos tanques arruinados do
seu país?
Mas o que aconteceu realmente aqui? O buraco na blindagem do tanque foi
causado evidentemente por um pequeno míssil. Mas as lagartas direitas
do tanque haviam sido virtualmente despedaçadas por uma explosão
maciça abaixo do veículo que havia cinzelado uma cratera de 5
pés (1,5 m) na estrada. A princípio pensei que as
munições do tanque tivessem explodido. Mas isto teria
despedaçado o Abrams. Assim, aqui está uma hipótese de
campo de batalha. Durante a "missão de sondagem" dentro dos
subúrbios de Bagdad, uma missão que realmente não atingiu
os subúrbios pois antes disso foi emboscada pelos iraquianos,
"Cojone" foi batido e sua tripulação foi resgatada por
algum outro veículo.
Não querendo deixar o seu tanque avariado mas talvez reparável
para os iraquianos, os americanos ordenaram um ataque aéreo para
destruí-lo. Isto explicaria a cratera e os maciços bocados de
asfalto atirados sobre e em torno do veículo. Talvez a
tripulação não fosse salva. Talvez tenham sido
capturados, embora certamente os iraquianos nos tivessem contado. Mas havia
duas lições tácticas a serem aprendidas disto tudo.
Primeiro, a missão americana, qualquer que fosse sua
intenção original, foi um fracasso. Sua coluna de tanques
não "irrompeu" dentro da cidade como o quartel-general
anglo-americano declarou originalmente. A resistência iraquiana
obrigou-a a voltar para trás. A resposta americana assaltos
aéreos a veículos individuais iraquianos foi
presumivelmente cometido por helicópteros Apache, porque cada
destroço queimado fora atingido por um pequeno rocket a curta
distância. A segunda lição era para os iraquianos: eles
nunca deveriam ter trazido os seus blindados e camiões militares
tão próximos do fronte.
E mesmo que tenha destruído seis tanques americanos como o ministro
ambiciosamente afirmou, fizeram-no ao custo de mais de cinco-para-um dos seus
próprios veículos e armas. Os ninhos de artilharia jaziam
enegrecidos, armas de longo alcance assobiavam de lado e espalhavam-se no
pó e na lama. Eu havia guiado cuidadosamente em torno dos ferros
retorcidos de um camião iraquiano de munições que sofrera
um impacto directo, com sua carcaça cercada por centenas de cartuchos
explodidos e enegrecidos.
Assim, em termos militares e apesar de todas as asneiradas dos
americanos acerca do "êxito" da incursão abortada
os iraquianos até aqui mantiveram o seu terreno na Batalha de Bagdad.
Mas eles devem ter suportado centenas de baixas.
Estes são dias desesperados, algo que mesmo o loquaz ministro iraquiano
da Informação, Mohammed Saeed al-Sahaf, ontem não podia
realmente ocultar ao mundo. Sua conferência de imprensa da tarde
às 14h30 como versão das loucuras próprias do Centcom
foi efectuada com os rugidos de explosões de mísseis e
aquilo soava como fogo de artilharia e morteiro. "Como sabe o senhor que
isto é o som de fogo de artilharia?" perguntou um repórter
persistente. "Podia ser o som dos ataques aéreos contínuos
destes vilões e mercenários". Mas havia um tema muito
interessante para a peroração diária do ministro: a sua
constante referência à táctica americana de testar as
defesas militares do Iraque, só para retirar no momento em que os
iraquianos contra-atacam.
"Isto aconteceu no aeroporto", disse ele. "Eles vieram e
nós os empurrámos para trás e os golpeámos com
nossa artilharia e eles desapareceram para Abu Ghoraib. Mas quando nós
parámos, eles vieram de volta outra vez". A ocupação
americana do aeroporto, ele insistiu, era "para filmagem e
propaganda". Mas por duas vezes surgiu aquela intrigante admissão:
"Eles vêm, nós os travamos e batemos e eles vão e
quando paramos eles retornam". Poderia o porta-voz americano ter colocado
isto de forma melhor? Havia relatos ontem à tarde de que os americanos
estavam a tentar as mesmas tácticas outra vez, desta vez no
subúrbio classe média de Mansour. Certamente a actividade
aérea sobre a cidade aumentou para uma nova intensidade ao por do sol
com jactos a voarem baixo sobre Bagdad, despenhando munições
sobre áreas a oeste do rio Tigre, só a umas poucas centenas de
metros do cenário das batalhas de sábado e domingo.
Na verdade, era tão grande o pó e o fumo das explosões
que, misturado com os fogos de petróleo acesos pelos iraquianos em torno
de Bagdad, a visibilidade foi reduzida a apenas umas poucas centenas de metros.
Mas pelas ruas da cidade, carros civis podiam ser visto, com pilhas altas de
cobertores, roupas, caçarolas e caixas. Os mais ricos, aqueles com
vilas em outras províncias mais pacíficas do Iraque, estavam a
deixar os seus lares na previsão de que o pior está para vir.
Outro sinal de dias mais perigosos foi a ausência dos jornais
diários de Bagdad. Ninguém podia ou queria
explicar porque
Qaddasiyeh
e
Al-Iraq
, ou mesmo o execrável
Iraq Daily
deixaram de estar presentes nas bancas. Ou, ainda mais importante, porque
Babel
, o diário que pertence a Uday, filho de Saddam Hussein, não
foi impresso. Isto é, na verdade, um sinal dos tempos.
07/Abril/2003
[*]
Correspondente em Bagdad de
The Independent
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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