A garra dos invasores sobre Bagdad

Nas ruas, a amarga evidência de uma batalha sangrenta

por Robert Fisk [*]

Soldado iraquiano de moto passa frente a um dos tanques americanos destruídos ao sul de Bagdad. As consequências da batalha estavam por toda a parte. Camiões e transportadores blindados de pessoal queimados, campos de armas iraquianos arruinados, crateras e palmeiras enegrecidas e, bem no meio da avenida, bem à direita de um trevo, o inconfundível vulto de um tanque americano Abrams M1A1, com o canhão a apontar impotentemente para a auto-estrada, seu torreão servia de plataforma para sorridentes soldados iraquianos. Havia cinco outros tanques americanos destruídos, insistiu mais tarde o ministro iraquiano da Informação. Assim, para os iraquianos que conduziam pelas ruas de Bagdad, disparando suas armas automáticas para o ar por alegria, isto foi uma vitória famosa.

E uma vitória com pesado preço em termos de sangue e de vida. No momento que vi os mais óbvios e terríveis detritos da batalha — os cadáveres, o sangue e o vómito — haviam sido removidos, mas o exército iraquiano e o Pentágono fizeram o melhor que podiam para cobrir este pequeno campo de morte com mentiras. Dois mil iraquianos mortos, cacarejou o Pentágono. Cinquenta americanos mortos, jactaram-se os iraquianos, algo mais modestamente. Ambos os lados admitiram "baixas" e cabe ao leitor julgar quanto podem ter sido.

Um anti-tanque iraquiano de 106 mm, três transportadores blindados de pessoal, também iraquianos, e mais de 25 camiões militares e lançadores Katyusha, sim, mais uma vez iraquianos, estavam espalhados em brasas ardentes sobre as planícies de pó e de terra em torno da estrada a apenas sete milhas (13 km) do centro de Bagdad.

Quando eu subi sobre esta massa de metal torturado e ainda quente, os pilotos americanos voltaram, seus jactos invisíveis uivavam no ar acima do campo de batalha. E a seguir havia o tanque americano.

Ele tinha um buraco perfeito na sua blindagem, quase certamente feito por uma arma de 106 mm, talvez a mesma peça iraquiana de artilharia que eu havia visto de cabeça para baixo no meio dos detritos a 200 metros. Subi ao torreão afundado do tanque — o Abrams tem uma arma quase ao nível do seu casco a fim de reduzir o seu perfil como alvo — e passei em torno do veículo, espreitando para dentro da sua janela. Não, não havia americano mortos lá dentro. Um tenente iraquiano afirmou que os seus homens haviam removido três tripulantes mortos durante a manhã, mas não havia sinal de restos humanos. Havia apenas o nome sobre o canhão. "Cojone EH", dizia. Isto provocou diversidade cultural na nossa conversação com civis iraquianos, alguns dos quais haviam saído das suas vilas neste manha quente de domingo à procura de um pouco de vida real, um perigoso turismo no campo de batalha. Houve uma pequena dificuldade em traduzir cojones como "bolas" ("balls"). Perguntámo-nos porque "EH" — se eram na verdade as iniciais do comandante do tanque — porque baptizaria o seu tanque de apenas um testículo. Os iraquianos quiseram saber porque um soldado chamaria ao seu tanque de bola. Foi neste momento que um piloto americano decidiu nos dar uma olhadela.

A orquestra dos jactos de alto voo acima da neblina quente subitamente mudou de tonalidade para o som de um avião em ataque a aumentar sua velocidade e obrigou os nossos olhos a virarem-se para o céu. Vi Ramseh, um velho fotógrafo de Beirute, amigo desde o tempo da guerra civil libanesa, correr pela sua vida estrada abaixo. E eu sabia que quando Ramseh corre é tempo de fazer o mesmo. Saltei para fora dos destroços do tanque americano e também corri estrada abaixo, juntamente com mais de uma dúzia de soldados iraquianos e jornalistas. O jacto trovejou sobre nós. Estava apenas a dar uma olhadela? Estava ele, talvez, não muito satisfeito com jornalistas a vaguearem sobre um dos tanques arruinados do seu país?

Mas o que aconteceu realmente aqui? O buraco na blindagem do tanque foi causado evidentemente por um pequeno míssil. Mas as lagartas direitas do tanque haviam sido virtualmente despedaçadas por uma explosão maciça abaixo do veículo que havia cinzelado uma cratera de 5 pés (1,5 m) na estrada. A princípio pensei que as munições do tanque tivessem explodido. Mas isto teria despedaçado o Abrams. Assim, aqui está uma hipótese de campo de batalha. Durante a "missão de sondagem" dentro dos subúrbios de Bagdad, uma missão que realmente não atingiu os subúrbios pois antes disso foi emboscada pelos iraquianos, "Cojone" foi batido e sua tripulação foi resgatada por algum outro veículo.

Não querendo deixar o seu tanque avariado mas talvez reparável para os iraquianos, os americanos ordenaram um ataque aéreo para destruí-lo. Isto explicaria a cratera e os maciços bocados de asfalto atirados sobre e em torno do veículo. Talvez a tripulação não fosse salva. Talvez tenham sido capturados, embora certamente os iraquianos nos tivessem contado. Mas havia duas lições tácticas a serem aprendidas disto tudo. Primeiro, a missão americana, qualquer que fosse sua intenção original, foi um fracasso. Sua coluna de tanques não "irrompeu" dentro da cidade como o quartel-general anglo-americano declarou originalmente. A resistência iraquiana obrigou-a a voltar para trás. A resposta americana — assaltos aéreos a veículos individuais iraquianos — foi presumivelmente cometido por helicópteros Apache, porque cada destroço queimado fora atingido por um pequeno rocket a curta distância. A segunda lição era para os iraquianos: eles nunca deveriam ter trazido os seus blindados e camiões militares tão próximos do fronte.

E mesmo que tenha destruído seis tanques americanos como o ministro ambiciosamente afirmou, fizeram-no ao custo de mais de cinco-para-um dos seus próprios veículos e armas. Os ninhos de artilharia jaziam enegrecidos, armas de longo alcance assobiavam de lado e espalhavam-se no pó e na lama. Eu havia guiado cuidadosamente em torno dos ferros retorcidos de um camião iraquiano de munições que sofrera um impacto directo, com sua carcaça cercada por centenas de cartuchos explodidos e enegrecidos.

Assim, em termos militares — e apesar de todas as asneiradas dos americanos acerca do "êxito" da incursão abortada — os iraquianos até aqui mantiveram o seu terreno na Batalha de Bagdad. Mas eles devem ter suportado centenas de baixas.

Estes são dias desesperados, algo que mesmo o loquaz ministro iraquiano da Informação, Mohammed Saeed al-Sahaf, ontem não podia realmente ocultar ao mundo. Sua conferência de imprensa da tarde — às 14h30 como versão das loucuras próprias do Centcom — foi efectuada com os rugidos de explosões de mísseis e aquilo soava como fogo de artilharia e morteiro. "Como sabe o senhor que isto é o som de fogo de artilharia?" perguntou um repórter persistente. "Podia ser o som dos ataques aéreos contínuos destes vilões e mercenários". Mas havia um tema muito interessante para a peroração diária do ministro: a sua constante referência à táctica americana de testar as defesas militares do Iraque, só para retirar no momento em que os iraquianos contra-atacam.

"Isto aconteceu no aeroporto", disse ele. "Eles vieram e nós os empurrámos para trás e os golpeámos com nossa artilharia e eles desapareceram para Abu Ghoraib. Mas quando nós parámos, eles vieram de volta outra vez". A ocupação americana do aeroporto, ele insistiu, era "para filmagem e propaganda". Mas por duas vezes surgiu aquela intrigante admissão: "Eles vêm, nós os travamos e batemos e eles vão e quando paramos eles retornam". Poderia o porta-voz americano ter colocado isto de forma melhor? Havia relatos ontem à tarde de que os americanos estavam a tentar as mesmas tácticas outra vez, desta vez no subúrbio classe média de Mansour. Certamente a actividade aérea sobre a cidade aumentou para uma nova intensidade ao por do sol com jactos a voarem baixo sobre Bagdad, despenhando munições sobre áreas a oeste do rio Tigre, só a umas poucas centenas de metros do cenário das batalhas de sábado e domingo.

Na verdade, era tão grande o pó e o fumo das explosões que, misturado com os fogos de petróleo acesos pelos iraquianos em torno de Bagdad, a visibilidade foi reduzida a apenas umas poucas centenas de metros. Mas pelas ruas da cidade, carros civis podiam ser visto, com pilhas altas de cobertores, roupas, caçarolas e caixas. Os mais ricos, aqueles com vilas em outras províncias mais pacíficas do Iraque, estavam a deixar os seus lares na previsão de que o pior está para vir.

Outro sinal de dias mais perigosos foi a ausência dos jornais diários de Bagdad. Ninguém podia — ou queria — explicar porque Qaddasiyeh e Al-Iraq , ou mesmo o execrável Iraq Daily deixaram de estar presentes nas bancas. Ou, ainda mais importante, porque Babel , o diário que pertence a Uday, filho de Saddam Hussein, não foi impresso. Isto é, na verdade, um sinal dos tempos.

07/Abril/2003


[*] Correspondente em Bagdad de The Independent .

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
08/Abr/03